O COMPUTADOR NO ENSINO: NOVA VIDA OU DESTRUIÇÃO?

Valdemar W. Setzer
www.ime.usp.br/~vwsetzer
24/5/07

Prefácio

Esta é uma transcrição do capítulo homônimo do livro de Eduardo O.C. Chaves e V.W. Setzer, O Uso de Computadores em Escolas: Fundamentos e Críticas, São Paulo: Ed. Scipione, 1988 (esgotado), pp. 69-127.

Este texto tem sua história. Inicialmente, ele foi publicado como Manifesto contra o uso de computadores no ensino de 1Ί grau, São Paulo: Ed. Antroposófica, 1984. Em seguida, Manifesto against the use of computers in elementary education, Relatório Técnico RT-MAP 8505, São Paulo: Depto. de Matemática Aplicada do Instituto de Matemática e Estatística da UPS, out. de 1985. Aí, em 1988, esse último foi traduzido para o português e apareceu no livro em co-autoria com E. Chaves. A próxima edição foi o livro Computers in Education, Edinburgh: Floris Books, 1989. A seguir, Computer in der Schule? Thesen und Argumente, Stuttgart: Verlag Freies Geistesleben, 1989, e finalmente Tietokoneet já Kouluikäiset? Väitteita ja Perusteluja, Tampere: Heikki Harjunen 1993. Em cada nova edição, eu acrescentava várias páginas. Resolvi deixar este texto praticamente como estava no livro de 1988, fazendo apenas algumas correções e alterações.

Para complementação deste texto, recomendo vários de meus artigos em meu site, especialmente Os meios eletrônicos e a educação: televisão, jogo eletrônico e computador, que contém uma comparação da TV, dos jogos eletrônicos e dos computadores, Computadores na educação: por que, quando e como, que contém uma proposta de currículo para ensino de computação no ensino médio, e especialmente o meu artigo Considerações sobre o projeto "um laptop por criança"pois trata de assunto atual e traz resultados de pesquisas recentes. No entanto, no presente texto, pela sua extensão, pude estender-me sobre muitos tópicos que não coloquei nos artigos e livro posteriores, de modo que sua leitura é recomendável. Por exemplo, só aqui encontra-se uma crítica detalhada às idéias de S. Papert. Em meu site encontram-se ainda vários materiais didáticos, como o meu "Computador a Papel", o simulador do computador hipotético HIPO para aprender-se o que é a "linguagem de máquina" e Algoritmos e sua análise - uma introdução didática.

Os jogos eletrônicos foram abordados superficialmente, pois não eram tão difundidos na época. Desde aquela época, já foi provado cientificamente que jogos violentos – os mais jogados, preferidos e recomendados – produzem aumento da agressividade a curto, médio e longo prazo. Para mais detalhes, vejam-se meus artigos Os riscos dos jogos eletrônicos na idade infantil e juvenil e Artigo com críticas a uma matéria de capa da revista Veja de 11/1/06.

Na época em que o texto foi escrito, ainda não havia a Internet (a Internet Society foi formada em 1991), de modo que o seu uso não foi mencionado. Na presente atualização, deixei de abordá-la para ficar fiel à época em que concebi o texto. No entanto, adicionei vários vínculos para artigos meus e outros materiais relevantes para o texto.

Não mudei nada na seção de referências, pois se fosse citar novas ela iria aumentar enormemente. Meus artigos posteriores contêm inúmeras referências autalizadas.

Depois de ter escrito esse texto, tive a experiência pessoal, conduzindo o programa "Dia da Computação" que introduzi em meu Instituto, de que jovens de até 15 anos só querem brincar com o computador; somente aos 17 os jovens são capazes de encarar essa máquina como um instrumento útil para várias aplicações. Isso corroborou minha afirmação de que só a partir dessa idade o jovem tem maturidade (que em boa parte dos casos, inclusive por adultos, não é usada!) para dominar o computador e não ser dominado por ele.

É impressionante o aspecto profético de minhas palavras de 20 anos atrás. Hoje já foi provado cientificamente que, quanto mais crianças e jovens usam o computador, pior o seu rendimento escolar (ver detalhes, por exemplo, em meu artigo contra o projeto "Um laptop por criança"). Atribui-se a isso principalmente o tempo gasto nesse uso, em lugar de estudo e confecção de tarefas escolares. Continuo concluindo, pela minha conceituação, a existência também de uma causa mais profunda: a influência do computador no pensamento e na vontade prejudica o desenvolvimento harmônico da criança e do jovem, com impacto no rendimento escolar. Um dia a pesquisa científica também vai confirmar essas e outras minhas conclusões conceituais.

Nesta revisão, numerei os capítulos e itens, para possibilitar a referência cruzada e facilitar o estudo e citação por parte do leitor.

1. Introdução

Costuma-se falar em duas revoluções industriais: a primeira consistiu na substituição do esforço físico humano pelo trabalho das máquinas; a segunda, que está em curso, tem como característica a substituição do esforço mental do ser humano pelo processamento de dados dos computadores.

Examinando-se o ambiente que normalmente cerca o ser humano moderno, principalmente o citadino, ver-se-á que quase tudo é fruto do pensar: os prédios, as mesas, o vestuário, os meios de transporte, tudo isso foi projetado por meio do pensamento. No entanto, uma reflexão mais profunda revela que esse pensar, que o ser humano contemporâneo consegue exercitar tão bem, é unilateral: baseia-se quase exclusivamente nas representações mentais ligadas a percepções transmitidas pelos sentidos físicos, principalmente a visão, e no pensamento abstrato formal, principalmente o matemático.

O computador veio incrementar tal unilateralidade, pois o pensamento que nele se pode colocar, fora textos e figuras desenhadas e não geradas por um programa ou copiadas de fotografias, deve ser necessariamente expresso sob forma de programas e de estruturas de dados que são formulados não na usual Matemática ampla, mas sim numa Matemática restrita.

No presente trabalho, procurarei enfocar sob esse prisma os efeitos do computador no ensino. Para isso, farei inicialmente uma breve apresentação das características mais importantes dos computadores. Como não faz sentido examinar a educação sem se ter uma idéia da evolução das crianças e jovens, abordarei sucintamente também esse assunto, adotando os estudos de Rudolf Steiner (1861-1925) e sua implementação por meio da Pedadogia Waldorf. Tive oportunidade de conhecer bem a Escola Waldorf Rudolf Steiner de São Paulo, uma das mais de 1000 escolas Waldorf no mundo, nas qualidades de pai de quatro alunos, marido da médica escolar e professor de Matemática durante 2 anos, quando o ensino médio daquela escola foi iniciado.

Os estudos e observações de Steiner e os resultados práticos de sua pedagogia servirão de base para minhas conclusões sobre os efeitos do computador no ensino, especialmente o fundamental, e para uma crítica aos argumentos dos proponentes desse uso. É importante salientar que meus argumentos têm caráter universal – não se necessita ser um estudioso ou admirador de Steiner para se entender e sentir a validade do que aqui será exposto. É também fundamental compreender que o que vou abordar não é o resulado de meros pensamentos abstratos, mas envolve experiências de vida que incluem cerca de 22 anos de atividades acadêmicas em Ciência da Computação.

Este trabalho é uma tradução, realizada por Geny Cemin de Amayo, do texto mencionado no prefácio, Manifesto against the use of computers in elementary education. Limitei-me a refazer a introdução, rever a tradução e complementar alguns pontos.

2. O computador

Os pontos característicos do computador que considero mais relevantes para a abordagem posterior são os seguintes:

2.1 O computador é um sistema discreto, ou seja, quantificado. Em termos formais, admite apenas um número finito de estados ou configurações diferentes, todos perfeitamente, matematicamente bem definidos e conhecidos. Esses estados são resultantes da combinação de um número relativamente pequeno de estados básicos. Tudo no computador é quantificado: programas, dados de entrada e intermediários, bem como resultados de saída. Mesmo saídas aparentemente analógicas, como gráficos, imagens ou sons são, na realidade, obtidos por quantificação prévia.

2.2 O computador é uma máquina "abstrata". Seu funcionamento, dos pontos de vista interno e do usuário, pode sempre ser descrito totalmente por meios matemáticos não-probabilísticos e algorítmicos. Não é o caso de qualquer outra máquina, como por exemplo um torno, ainda que automático. O resultado do funcionamento do torno não é totalmente previsível, pois depende de materiais físicos e é expresso com certa precisão. No computador tem-se exatidão, como na Matemática. É realmente uma maravilha da tecnologia uma máquina construída com materiais físicos mas cujo funcionamento transcende as propriedades físicas e as imprecisões. A máquina obriga a matéria a produzir resultados sempre corretos – a menos que haja um erro, que em geral é detectado e às vezes é corrigido automaticamente. Tudo isso acontece em conseqüência da quantificação interna.

2.3 O computador é um sistema determinista. Dada uma máquina e um programa nela carregado, um certo conjunto de dados de entrada produz sempre os mesmos resultados. Tudo é previsível – aliás, esta é a origem da potência dessa máquina, juntamente com sua velocidade. É o supra-sumo do princípio da causa e efeito. Em alguns casos especiais, como em sistemas em redes, pode-se ter um sistema não-determinista, mas, do ponto de vista do usuário e das aplicações do computador no ensino, a máquina funciona de maneira determinista.

2.4 Qualquer programa pode ser encarado como uma função matemática que mapeia o conjunto dos dados de entrada em um conjunto de dados de saída. O ato de programar é uma atividade matemática, independentemente da linguagem de programação empregada.

2.5 As linguagens de programação são estritamente formais. Qualquer comando expresso em uma dessas linguagens implica em uma e apenas uma seqüência de passos exatamente definidos de uma função matemática de manipulação de símbolos, que devem ser executados pela máquina. Isso também se aplica a certos usos de dispositivos de entrada de dados como joy stick e mouse. Os aplicativos em que o usuário, ao invés de programas, digita comandos, escolhe um item de um "menu" ou ativa um ícone, também definem linguagens estritamente formais.

3. O desenvolvimento do ser humano

Segundo Steiner, a evolução do ser humano, em sua fase inicial, pode ser subdividida em três setênios: de 0 a 7, de 7 a 14 e de 14 a 21 anos.

Durante o primeiro setênio, a criança é essencialmente um ser aberto para o mundo externo, com uma inigualável capacidade de imitação. Ela é dominada em primeiro lugar por seus impulsos volitivos, que se manifestam principalmente em atividades motoras. Esses aspectos podem ser percebidos se observarmos cuidadosamente uma criança.

O primeiro setênio é também a fase do desenvolvimento da base física do ser humano. O aprendizado deve estar ligado ao impulso volitivo – a criança aprende fazendo, brincando com pernas, braços e mãos, participando da atividade com todo o ser corpo. A vontade caracteriza-se (em qualquer idade) por sua profunda inconsciência; portanto, nesta idade o ensino não deve apelar para o intelecto, para os processos de pensamento, que são os processos humanos mais conscientes.

No segundo setênio, cujo início em geral caracteriza-se fisicamente pela troca de dentes, a criança torna-se, de um ser essencialmente ligado à natureza, unido a esta por meio de seus sentidos, um ser com capacidade de introspecção consciente, voltando-se para seu próprio ser interior. Um período crítico inicia-se por volta dos nove anos, quando as crianças descobrem que são seres isolados. Nesse período surge a primeira crise existencial, ainda não de forma intelectual, porém mais ligada aos sentimentos. Alguns exemplos da primeira aquisição de objetividade são as perguntas de praxe: "De onde eu vim?"; "Vocês são meus pais verdadeiros?" e dúvidas sobre o que é sonho e o que é realidade. Antes do segundo setênio uma criança normal não distingue o objetivo do subjetivo, não distingue fantasia de realidade. As forças que estavam dedicadas durante o primeiro setênio à formação do organismo físico e ao contato necessário com o mundo exterior é agora libertada (como que num segundo nascimento) para outros fins: a capacidade de pensar e ter sentimentos – estes, individualizados. Se deixarmos a criança desenvolver-se de modo normal e natural, o que é raro hoje em dia, sem expô-la precocemente a uma intelectualizão e escolarização formal, poderemos ver que o pensamento no segundo setênio é principalmente imaginativo, e não abstrato. A linguagem ainda é animista, cheia de inflexões e sem contornos precisos. Normalmente, a criança nesse período deveria ser incapaz de absorver pensamentos puramente abstratos – frios, sem cor e sem vida.

Devido a essa natureza do pensamento e ao intenso desenvolvimento dos sentimentos, a educação de crianças no segundo setênio (o ensino fundamental, da 1ͺ à 8ͺ séries) deveria ser totalmente– insisto, totalmente – baseada em atividades artísticas. Por exemplo, costuma-se ensinar o conceito de ilha com a definição "Ilha é um pedaço de terra cercado de água por todos os lados" (o que, aliás, está errado, pois não há água nem no lado de cima nem no de baixo, e, se o contorno não for redondo, haverá apenas os lados "de dentro" e de "fora"). Essa definição, ensinada talvez ao redor dos 8 anos, "mata" a ilha, pois apresenta à criança um conceito sem vida: nessa ilha não há praias, não há plantas, animais, pedras, etc. Em vez disso, o professor poderia contar a história de uma pessoa que estava em um barquinho e, em uma tempestade, naufragou. Ela nadou muito e chegou, finalmente, a uma praia; depois de descansar, começou a explorar o ambiente. Encontrou árvores e animais e deu com outra praia; em qualquer direção que andasse, encontrava sempre uma praia ou algumas rochas que acabavam na água. Contando todo o drama e a vivência do náufrago, fazemos a criança acompanhar com imagens interiores aquilo que se passa na realidade. Nessa idade a criança não quer e não deveria receber explicações abstratas. Tomemos o exemplo típico da criança que pergunta como surgem as ondas. O pai intelectualizado (talvez um físico ou engenheiro...) aproveita a deixa e se lança numa explicação entusiasmada sobre as marés e as órbitas terrestre e lunar, enquanto o pobre ouvinte fica quieto, atarantado, tentando formar alguma possível imagem com essas abstrações. Em vez disso, um pai que entende, sente e respeita a personalidade do filho (quem sabe um artista ou artesão...) poderia levá-lo a uma pia com água e soprar para fazer ondinhas. A criança "entende" com os sentidos e vai embora satisfeita com a explicação, aliás correta, no que se refere a ondas num lago ou as pequenas ondas longe da praia no mar.

Isso me recorda uma linda história passada na Europa sobre uma menininha cuja mãe resolveu contar-lhe tudo sobre como nascem os bebês, com todos os detalhes fisiológicos. No dia seguinte a menina diz: "Olhe, mãe, a Heleninha me disse hoje no jardim-de-infância que são as cegonhas que trazem os bebês. A história dela é muito mais bonita que a sua!" É fácil ver que símbolos como a cegonha são exatamente os mais adequados para as crianças, e não as explicações reais e lógicas do mundo dos adultos. É por isso que os genuínos contos de fadas, como os dos Grimm, que os adultos acham terríveis, são tão apropriados para as crianças. Os pequenos não os assimilam da mesma maneira que seus pais. As imagens internas originadas por esses contos (que, aliás, devem ser ouvidos, e não vistos no cinema ou no teatro) trazem um desenvolvimento extremamente positivo para as crianças. Felizmente, depois de Bruno Bettelheim, os psicólogos modificaram em geral sua atitude negativa em relação aos contos de fadas.

Na escola, mesmo a Matemática deveria ser ensinada artisticamente no segundo setênio; a geometria, que foi quase eliminada em favor da álgebra, apresenta efeitos estéticos ausentes desta última. Exemplos matemáticos deveriam ser retirados do dia-a-dia da criança, para conterem realidade para esta. Steiner criticou contra-exemplos do tipo "A soma da idade de meus pais é de 127 anos e a diferença de suas idades é de 5 anos", pois jamais alguém iria contar a idade de seus pais dessa maneira2. Não é usando idades e os pais que tornam esse problema um problema real.

Nesse período do segundo setênio o jovem é um artista instintivo, adorando contrastes, como por exemplo entre o azul ciano e o amarelo claro, o verde e o magenta, e canções em que tons menores se alternam com maiores. A criança é absorvida pela beleza e gosta muito de criá-la3.

Geralmente o começo do terceiro setênio caracteriza-se pelos primeiros sinais de puberdade. Diversos fatores, como clima, sexo e educação podem acelerar as mudanças fisiológicas. As muitas transformações físicas são acompanhadas de uma sexualidade consciente. Novamente, podemos comparar esses processos com outro nascimento, o terceiro. Os sentimentos individualizam-se e tornam-se conscientes, levando às conhecidas "paixonites". Há uma mudança nos processos de pensamento. Piaget observou muito bem essa alteração, descobrindo em entrevistas com muitos jovens de 12 anos que estes acreditavam residir o pensamento na laringe ou os ouvidos, mas não no cérebro3.

Assim como no primeiro setênio as crianças não têm consciência de seus sentimentos, no segundo, em geral, não são plenamente conscientes de seus pensamentos. Antes da puberdade os pensamentos não são livres (por exemplo, são suscitados pelas experiências sensoriais) e os jovens não têm consciência de possuir uma mente. Somente com a aproximação da puberdade começam a pensar como os adultos. Do mesmo modo como no segundo setênio deve-se respeitar a criança e ensinar muito lentamente os símbolos abstratos que constituem as letras, no terceiro deve-se introduzir de modo gradual o pensamento lógico, abstrato, formal e intelectual. Como já foi dito, na escola fundamental todo ensino deve basear-se nas artes. O professor deve ter habilidades artísticas, aproximando-se de seus alunos com a mesma sensibilidade e reverência com que um artista considera as fontes de suas obras. O mundo apresentado a uma criança dessa idade deve ser belo e cheio de características estéticas. Por outro lado, no ensino médio o jovem não está tão interessado nos aspectos artísticos da realidade e das matérias que ele aprende na escola, mas sim nos seus aspectos de verdade, aquilo que pode ser compreendido. Ele busca um mundo verdadeiro, aquele que pode ser expresso em conceitos. O professor do ensino médio deve conhecer muito bem sua matéria, deve ser um especialista, ao contrário do professor do ensino fundamental, que deve ser forte em conhecimentos gerais, dominando todas as matérias, isto é, deve ser um generalista.

Apenas para completar o panorama, vale a pena ressaltar que no primeiro setênio devemos apresentar à criança um mundo bom e harmonioso, como a natureza.

Resumindo, os elementos que atraem as crianças e jovens e lhes servem de alimentos adequados são estes: o bom, o belo e o verdadeiro, correspondendo ao primeiro, segundo e terceiro setênios, respectivamente.

O que aqui foi exposto é quase nada em relação ao que deveria ser dito. Mas oferece uma base para o que vem a seguir.

4. O ensino e o computador no ensino

Provavelmente ninguém dirá que o ensino tradicional é bom e que seus resultados são satisfatórios. Nesse ponto todos estamos de acordo. As divergências vêm à tona quando se começa a falar das causas e das soluções. Creio que o maior erro do ensino atual é ser puramente intelectual, voltado para a mente abstrata de crianças e jovens (como na definição de ilha citada no cap. 3), não cultivando nem seus sentimentos nem sua vontade (ou capacidade de agir). Daí resulta sermos quase todos nós cabeças ambulantes, aleijados de corpo e alma, restando-nos somente um espírito intelectual desenvolvido unilateralmente. A desastrosa introdução da Matemática Moderna, uma evolução natural do ensino cada vez mais baseado em meras teorias, mostra bem a mentalidade intelectualista e abstrata da pedagogia moderna. O número puro é já em si uma enorme abstração; quando apresentado como a cardinalidade (número de elementos) de um conjunto, redunda no que chamo de "abstração de segunda ordem". O erro reside em querer desenvolver abstração, raciocínio lógico e linguagem formais, antes da época adequada, ou seja, antes da puberdade. Mas mesmo no ensino fundamental eu introduziria o formalismo da maneira mais viva e estética possível. Há também outro engano terrível. Um dos princípios básicos da Matemática Moderna parece-me uma falácia completa: para que as estruturas algébricas sejam familiares ao aluno, começa-se por introduzir suas noções no ensino fundamental. Isso lembra-me a história contada pelo matemático Morris Kline, em seu extraordinário livro contra a Matemática Moderna25, de um pai que pergunta ao filho de oito anos "Quanto é 5 mais 3?"e obtém como resposta "Papai, é igual a 3 mais 5, pela propriedade comutativa da adição". Kline mostra como o tipo de pesquisa em Matemática que se passou a fazer no século XX, excessivamente formalista (por exemplo, com a axiomatização de todas as áreas) e divorciada dos problemas do mundo (até então, a Matemática era motivada por problemas práticos, era uma Matemática aplicada), acabou por determinar os novos currículos escolares na área. Os currículos das escolas e a forma de ensinar deveriam ser estabelecidos pelos educadores, e não por pesquisadores da área; nem uma reunião de ambos funciona, pois os últimos tendem a ter muito mais voz do que os primeiros, que se sentem inferiores.

Acredita-se que, se quisermos ter um adulto com bom raciocínio lógico, devemos introduzir nas escolas esse tipo de raciocínio e blocos lógicos o mais cedo possível. Tal argumento não leva em conta um fato fundamental: a criança metamorfoseia o que absorve, e isso vem a aparecer na idade adulta como capacidade – ou deficiência, ou aberração – um uma área completamente diferente. Assim, por exemplo, não é dando liberdade total à criança que se cria um adulto livre. O excesso de liberdade na infância, a famosa permissividade ou falta de limites do ensino libertário, pode dar como resultado um adulto desajustado, inseguro e anti-social. O estudo da evolução do jovem à luz das pesquisas de Steiner4 leva à conclusão de que as estruturas algébricas deveriam ser ensinadas somente no fim do ensino médio, quando aparece no aluno, com cerca de 17 anos de idade, o interesse por aspectos estruturais. Então elas podem ser rapidamente entendidas pelo estudante, e não apenas memorizadas, como acontecia antes. Não se cria um bom matemático ensinando cedo Matemática avançada – talvez o contrário seja até o correto.

Conta-se que um dos famosos matemáticos europeus que veio formar o Departamento de Matemática da antiga Faculdade de Filosofia da USP, perguntado o que se deveria ensinar aos alunos na escola para que depois ele recebesse bons alunos de Matemática na universidade, respondeu: "Por favor, não ensinem Matemática, ensinem latim!" Naquela época havia ainda a intuição de que o desenvolvimento do raciocínio lógico (no caso, envolvido no latim, uma linguagem natural, e portanto cheia de vida) era mais importante que o conhecimento específico, pois este pode ser adquirido facilmente.

A introdução do computador na escola representa a continuidade do processo de intelectualização do ensino. Vejamos como isso acontece.

5. Os modos de utilização do computador no ensino

Há quatro modos de usar o computador na educação: instrução programada automatizada, simulação, aplicativos gerais e ensino de programação de computadores. Os dois primeiros constituem o chamado Ensino Auxiliado por Computador, designado pela sigla CAI, (Computer Assisted Instruction), provavelmente pela primeira vez em 1967, denominação que no início da década de 1980 ganhou abrangência maior, alterando-se para Aprendizado Auxiliado por Computador CAL (Computer Assisted Learning).

5.1 A instrução programada

A instrução programada, introduzida por Skinner em 1954, foi inventada para uso em livros didáticos. O processo de aprendizagem segue caminhos que dependem de como o estudante responde às perguntas, depois de ler um trecho sobre certo assunto. O autor do texto deve prever com exatidão o caminho de estudo e as possíveis respostas do estudante. A instrução programada automatizada simplesmente substituiu o livro pelo computador, com grandes vantagens, devido às possibilidades gráficas, de animação e de hipertexto.

Quando se usa o computador, deve-se acentuar no processo de ensino (e de aprendizagem) a previsão e o planejamento, em virtude do determinismo da máquina e do caráter estritamente formal da linguagem em que se exprimem os dados de entrada, conforme já vimos. Passa-se algo um pouco semelhante ao jogo de damas ou de xadrez, no sentido de que cada jogada deve ser planejada com antecipação e todas as possíveis reações do adversário (no caso, as respostas que o estudante introduz na máquina) têm que ser examinadas. Além disso, os caminhos apropriados a serem seguidos também devem constar no programa que controla todo o processo. Em outras palavras, o processo de aprendizagem torna-se um jogo matemático. E há ainda outro problema quando se adota a instrução programada automatizada por meio do computador: a aprendizagem torna-se extremamente enfadonha, pois situações exatamente iguais repetem-se muitas vezes. Isso ocorria devido a limitações nas máquinas, e hoje devido ao trabalho que dá programar cada caminho diferente. Um dos principais argumentos a favor da instrução programada é que cada estudante pode progredir em seu próprio ritmo. Minha crítica a esse argumento será formulada no item 9.1

Felizmente, os educadores parecem ter reconhecido que a instrução programada não é um bom instrumento pedagógico, pois restringe demais, não dá a chances à criatividade e à improvisação, limita o campo do pensamento, etc. Eu gostaria de acrescentar que ela me lembra o treinamento de animais, não constituindo uma educação em sentido amplo. Não importa se o condicionamento ocorre com reforço positivo (incentivo) ou com castigo; as crianças não são animais e não devem ser tratadas como tais. Poder-se-ia argumentar que o professor, ao elogiar um aluno depois de uma resposta certa, age do mesmo modo. Mas tal argumento não leva em conta todos os fatos imprevisíveis que acontecem nesse caso, como por exemplo o tempo e o tipo de pergunta, a maneira como a resposta é dada (às vezes de forma ambígua, mas o professor talvez reconheça intuitivamente o que o aluno quer dizer, o que um computador jamais irá fazer), o tipo de recompensa e o carinho nela envolvido, enfim, todo o inconsciente jogo humano que acontece nas relações interpessoais, infinitamente mais ricas do que a interação máquina-pessoa.

Quero ainda ressaltar uma diferença importante: o autor de um texto de instrução programada ou de um programa de computador tem em mente, ao produzir esse material, um aluno abstrato. No caso dos computadores o material é completamente formal, como todos os programas. Porém, o professor real não tem diante de si uma abstração e sim um aluno concreto. Se a aula fosse completamente previsível, o professor estaria equiparando-se a uma máquina e fazendo o mesmo com o aluno. Isso ocorre quando se usa o computador, que trata o alunos como uma abstração, como uma máquina.

Quanto tempo os educadores vão levar para entender que os computadores não são bons instrumentos pedagógicos? O prejuízo pode ser ainda muito maior do que o causado no passado pelos textos de instrução programada. Isso se deve, em parte, à extenção com que o computador vem sendo usado em escolas. A previsão de R.J.Riding, de 1984, "Logo chegaremos a uma situação em que toda criança terá seu próprio computador, ou terá acesso a ele por longos períodos", praticamente confirmou-se nos EUA. Isso quer dizer que haverá praticamente um computador instalado diante de cada aluno, interposto com freqüência entre este e o professor.

5.2 Uso de simulação

A simulação com computador consiste na construção de modelos matemáticos de um fenômeno natural ou abstrato, sendo o computador programado para calcular o modelo e mostrar os resultados na tela. Por exemplo, um dos modelos mais simples simula a trajetória de um objeto com peso P, que forma no lançamento um ângulo inicial A em relação à horizontal e possui uma velocidade inicial V. Mostra-se a trajetória na tela de forma tal que, variando-se P, A e V, o estudante possa ver os efeitos desses fatores. Ele pode "descobrir", por exemplo, que a distância máxima atingida pelo objeto ocorre quando A=45Ί (se o modelo não levar em conta a fricção com o ar). Nas "experiências" de simulação, ao invés de o estudante trabalhar no laboratório com materiais reais, produz-se no computador uma situação puramente abstrata, sempre longe da realidade, que em geral tem um número enorme de variáveis e a interação entre elas não é clara. Esse é precisamente o caminho que descrevemos, o qual tenta reduzir todo o processo de aprendizagem a atividades puramente mentais e intelectuais (como no exemplo da definição de ilha, do cap. 3). No caso da trajetória, seria muito simples fazer experiências concretas; naturalmente, estas se submeteriam às condições reais, como fricção, precisão nas medidas, etc. O modelo da simulação implementa um modelo teórico, abstrato e a participação do aluno é puramente intelecutal.

Em certa ocasião, Steiner apresentou uma sugestão muito interessante para as aulas de Física, a se desenvolverem em seqüências de três dias. No primeiro dia, apresenta-se a experiência e faz-se todo tipo de observações fenomenológicas sobre os instrumentos, resultados, etc. No segundo, em sala de aula, pede-se aos estudantes que recordem com todos os detalhes o que viram no dia anterior, agora sem terem a experiência diante de si. Eles desenham e descrevem em seus cadernos o que presenciaram. Só no último dia apresenta-se aos estudantes a teoria, a explicação conceitual dos fenômenos que observaram. (Nas escolas Waldorf, as matérias principais são ensinadas de forma concentrada: duas horas diárias, em dias consecutivos, que formam as chamadas "épocas", geralmente de 3 ou 4 semanas; após uma época de Física, pode vir uma de Geografia, depois uma de História, etc.) Essa seqüência tem um efeito particular, pois o subconsciente também é ativado nos intervalos entre as épocas – Steiner chamou a atenção para o fato de esse tipo de ensino ser "econômico", aproveitando-se o trabalho do inconsciente em uma matéria enquanto o aluno concentra seu consciente em outra; na próxima "época" da primeira, em poucos dias recorda-se tudo o que foi visto na "época" anterior.

No ciclo de três dias, Os estudantes vivem as experiências, "dormem" com estas, antes de tomarem contato com abstrações que explicam conceitualmente o que eles observaram.

Há outro princípio envolvido nessa proposta: os conceitos devem ser dados para explicar a realidade, e não o contrário, como acontece com o método de ensino usual, dos tempos atuais. Por exemplo, em Matemática, deve-se procurar usar sempre exemplos tirados do mundo real, fazer exercícios e somente depois disso desenvolver a teoria correspondente. É exatamente o contrário do procedimento que em geral se adota, ou seja, a seqüência: definição, definição, definição, lema, lema, teorema; em seguida, repete-se essa seqüência algumas vezes – e os estudantes desinteressam-se totalmente pois não vêem nenhuma utilidade em tudo isso. Depois dessa fase, para aplicar a teoria, inventam-se alguns exemplos que não têm absolutamente nada a ver com o mundo real. Um caso típico desses exemplos seria a do problema das idades visto no capítulo 3, para exemplificar um sistema de um sistema de duas equações algébricas lineares. Como vimos, não basta falar de pessoas e de idades para que um problema seja proveniente da realidade.

No exemplo dado, faz-se com que a realidade se adapte à teoria, ou seja, é o caminho contrário que foi geralmente seguido pelo desenvolvimento histórico da Matemática que se ensina nos ensinos fundamental e médio. Como podem os estudantes, num ambiente tão abstrato, mostrar entusiasmo e identificarem-se com o processo de aprendizagem? É mais do que natural que os estudantes odeiem as escolas! A simulação com computadores só faz as coisas piorarem. Apenas nos últimos anos do ensino médio eu usaria um número limitado de experiências simuladas, em assuntos específicos, que não permitem a experimentação em laboratório e, mesmo assim, eu proporia a seguinte questão: vale a pena ensinar, antes da faculdade, algo que os alunos não podem experimentar na realidade? Quando os alunos tornam-se capazes de entender que o que estão estudando (por exemplo, Física atômica ou evolução darwinista) é simples teoria e não uma realidade? Se eles ainda não conseguem fazer tal distinção, é melhor adiar a introdução destes e de outros assuntos teóricos. Repetindo: normalmente, é só por volta dos 17 anos que o estudante tem a maturidade necessária para exercitar um raciocínio suficientemente livre, a ponto de efetuar aquela distinção.

5.3 Aplicativos de uso geral

Por trás da intenção de ensinar o uso de programas aplicativos, encontra-se o argumento de que alguns desses programas, como processadores de texto, planilhas eletrônicas de cálculo, sistemas de gerenciamento de bancos de dados, sistemas de confecção de palestras e sistemas gráficos são instrumentos úteis que devem ser conhecidos por todos. Estamos de acordo, mas resta saber em que idade o aprendizado é apropriado. Para nossas considerações é importante notar o fato de que tais aplicativos são usados por meio de comandos, que fazem parte de uma linguagem formal. Ou seja, o sistema define uma linguagem formal que deve ser empregada pelo usuário e que, apesar de não ter tantos recursos como uma linguagem de programação, tem os mesmos efeitos, no que se refere à imposição, ao usuário, do emprego de um formalismo.

5.4 Ensino de programação

Vejamos agora o quarto modo de usar computadores nas escolas – o ensino de programação. Infelizmente, um grande mal entendido envolve esse assunto. Em geral, associa-se tal ensino à aprendizagem de alguma linguagem de programação, como LOGO, BASIC, Pascal, C ou Java. No entanto, aprender a programar computadores quase nada tem a ver com aprender uma linguagem de programação. O primeiro processo consiste basicamente em aprender a especificar a solução de um problema em termos de algoritmos.

Um algoritmo é formado por uma seqüência de ações matemáticas bem definidas. Essas ações são executadas passo a passo, podendo-se especificar repetições de trechos da seqüência, de modo que um número finito de ações pode redundar em um número infinito de execuções para diferentes dados de entrada. Por exemplo, podemos construir um algoritmo para somar os números inteiros de 1 a n, sendo n um número qualquer, fornecido à máquina no início da execução do algoritmo. Um algoritmo, no sentido usual do termo, estipula que a execução pare em algum ponto, para qualquer dado de entrada (o valor de n, no exemplo).

Não é preciso ter um computador para processar um algoritmo, pois isso pode ser feito com lápis e papel; todavia, nesse caso, o tempo que se gasta é milhões a bilhões de vezes maior do que o necessário para a execução do mesmo processo por um computador. Há milhares de anos os seres humanos usam algoritmos sem computadores – por exemplo, quando somam dois números com muitos algarismos. Por outro lado, uma linguagem de programação é concebida para exprimir algoritmos de modo tal que a expressão (ou sentença, ou programa) obtida possa ser introduzida no computador, obrigando a máquina a executar exatamente as ações definidas no algoritmo.

 

Espero ter deixado claro que ensinar a programar um computador é ensinar a desenvolver algoritmos – por exemplo, um algoritmo para gerar os números primos menores do que 1.000 – e não ensinar linguagens de programação. Pode-se expressar esse algoritmo com símbolos gráficos que nenhum computador está preparado para reconhecer. Essa descrição, portanto, pode não ter nada a ver com as máquinas. Por outro lado, ensinar uma linguagem de programação seria, por exemplo, ensinar comandos de BASIC que façam repetir-se 100 vezes o mesmo processo, isto é, repetir-se 100 vezes um certo número de passos de um algoritmo.

Não é preciso ter um computador para ensinar a programar, mas ele ajuda se quisermos ensinar uma linguagem, na medida em que ela permite o teste, na máquina, de exercícios programados. Aprender programação é o mais difícil; aprender linguagens de programação, em seus fundamentos, é algo absolutamente banal.

5.4 O ensino de programação

A partir dessas idéias, há que admitir-se que um curso de programação deve incluir os seguintes pontos:

Tendo ensinado programação desde 1964, sou levado a opinar que uma boa introdução do primeiro tópico só pode ser feita usando-se a "linguagem de máquina". Trata-se do código numérico interno, armazenado na "memória" do computador e interpretado pela própria máquina. Nessa interpretação os circuitos "reconhecem" cada instrução a executar, o que é feito eletronicamente por meio de uma seqüência de mudanças nos estados (finitos) que a máquina pode assumir. Em geral, programas escritos nas chamadas linguagens "de alto nível", como BASIC, Pascal, C, Java, LOGO, etc., devem ser traduzidos com um todo para programas internamente codificados em alguma linguagem de máquina, por meio de um programa chamado "compilador". Ou, então, eles são traduzidos para essa linguagem durante a execução, passo a passo, por meio de um programa denominado "interpretador". Um estudante que só aprendeu a programar por meio de uma linguagem de alto nível jamais poderá entender corretamente o que é uma instrução de máquina, como esta executa um programa, como se dá o armazenamento de dados num computador, e assim por diante. Em geral, todas as linguagens de máquina são extremamente complicadas e leva-se muito tempo para aprendê-las. Por essa razão, inventei em 1968, para fins didáticos, um computador hipotético extremamente simples, chamado HIPO. Ele usa um código interno decimal (em vez do binário, comum a todos os computadores modernos), em "palavras" fixas (os menores de endereço de armazenagem) e instruções de um endereço. Um interpretador desse computador pode ser encontrado em meu site, para download. Nas primeiras aulas de cursos introdutórios é necessário usar somente 15 instruções: 4 aritméticas, 2 de entrada/saída, 2 para transferir de um registrador para a "memória" ou vice-versa, 1 desvio incondicional e 6 desvios condicionais (todos são variações de um mesmo tema: a comparação que verifica igualdades ou desigualdades). Essas instruções são tão simples, que o aluno consegue aprendê-las todas, fazer seus próprios programas e testá-los em poucas horas. O HIPO é simulado em máquinas reais, mas o estudante tem a impressão de estar usando "uma máquina HIPO". A fim de tornar as coisas mais "reais", e evitar a aprendizagem inicial "abstrata", inventei um computador que é "construído" apenas com papel e gente, que denominei "Computador a papel" (ver descrição dele em meu site). Na primeira aula, o professor "constrói" o computador na classe, carrega um programa em sua "memória", e faz a "máquina" funcionar. Por meio dessa dramatização, os estudantes vêem e experimentam por si próprios como o computador funciona por dentro, do ponto de vista lógico da linguagem de máquina. Os alunos conservam tão bem a imagem, que esta é usada em aulas posteriores, para recordar o funcionamento básico de um computador, quando necessário. O "computador a papel" é um subconjunto do HIPO, com as instruções escritas em palavras textuais, ao invés de serem codificadas em um código numérico.

Infelizmente são raros os cursos atuais de programação de computadores que incluem todos os pontos mencionados. De acordo com minha experiência, um curso que se concentra em ensinar o que é um computador e como construir algoritmos, e relega a um plano secundário as linguagens de programação, dispersando-as ao longo de sua duração, tem muito bons resultados. Essa experiência pessoal baseia-se na organização e no ensino em cursos para mais de 2000 estudantes por semestre, na Universidade de São Paulo, e em cursos introdutórios de um dia (6 horas), para alunos do último ano do ensino médio, além de outros cursos para várias audiências. Destacados cientistas da computação de todo o mundo organizaram cursos em universidades da Europa e dos EUA, nos quais também se ressalta a construção de algoritmos em lugar das linguagens de programação.

Papert, em seu livro Mindstorms: Children, Computers and Powerful Ideas (a propósito, eu jamais permitiria que se causassem tempestades mentais em meus filhos crianças ou jovens), afirma que a Instrução Programada e a simulação não são bons instrumentos pedagógicos7. Por isso, ele volta-se para o ensino de programação. É exatamente isso que seus alunos fazem ao usar o sistema LOGO, pois aprendem a construir algoritmos e, ao mesmo tempo, a especificá-los nessa linguagem. Não tenho nada contra essa linguagem (a menos do problema de ela permitir indução matemática sem base – ou recursão sem parada, e medidas sem grandeza), mas é preciso entender que se trata fundamentalmente de mais uma linguagem de programação, embora extremamente interessante, com comandos gráficos simples mas, ao mesmo tempo, potentes. Como ilustração, vejamos a seguinte seqüência de comandos:

PARAFRENTE 10
DIREITA 90
PARAFRENTE 10
DIREITA 90
PARAFRENTE 10
DIREITA 90
PARAFRENTE 10

Ela desenha na tela um quadrado cujo lado mede 10 unidades de deslocamento do cursor. Este é um pequeno triângulo chamado de "tartaruga" (note-se a degradação do seres vivos associados a elementos produzidos pela máquina). Tal nome originou-se do primeiro sistema, do qual fazia parte um aparelho munido de rodas e marcador, que andava sobre o chão desenhando com o marcador em um papel.

O comando PARAFRENTE 10 move o cursor 10 unidades na direção indicada pelo triângulo, traçando um segmento de reta. Com o comando DIREITA 90, o cursor faz uma rotação de 90o à direita – observe-se a necessidade de se saber o que significa 90o (com que idade espera-se que uma criança entenda o que é a medida de um ângulo? Papert advoca o uso de computadores por crianças a partir de 4 anos de idade...). Além dos comandos gráficos, a linguagem LOGO contém os comandos de controle de qualquer linguagem de programação "de alto nível", bem como comandos de processamento de listas, e até procedimentos recursivos. No item 8.2. comentarei as idéias de Papert e o uso da LOGO como instrumento pedagógico. Por ora, é suficiente ressaltar que a criança que usa esse sistema deve reduzir todo o processo de raciocínio à construção de algoritmos e a sua expressão em linguagem de programação formal, como acontece com todas as outras linguagens.

É também importante observar que a Matemática algorítmica não é a clássica, pois esta última não tem passos seqüenciados, que se sucedem uns aos outros, no decorrer do tempo. A Matemática clássica, em geral, usa sentenças de especificação que nada têm a ver com a seqüência em que são formuladas – por exemplo, a especificação de axiomas ou definições de conjuntos por meio de predicados. Em geometria clássica, a circunferência é um todo, e não uma seqüência de pontos desenhados ou especificados numa dada ordem. Todos nós sempre aprendemos algoritmos, como nas somas armadas (com vários algarismos). Mas, como éramos crianças, não tínhamos consciência desses algoritmos, ou seja, eles não eram formalizados, eram aprendidos intuitivamente. Linguagens de programação não-algorítmicas que constituem sistemas de especificação particulares, como PROLOG, apresentam problemas semelhantes, por que, evidentemente, obrigam a um raciocínio formal. Riding6 propõe o uso dessas linguagens para produzir um "raciocínio flexível" (sic): "Como a linguagem PROLOG usa declarações lógicas, a criança é obrigada a pensar com clareza, a fim de expressar em termos precisos, os itens de informação requeridos, e a relação entre eles." Consideremos atentamente a frase com que ele prossegue sua exposição: "Pode ser que essa experiência facilite o raciocínio lógico, embora até agora não haja confirmação experimental clara dessa possibilidade." O problema é que, como veremos, há idade adequada para que um jovem pense com a clareza exigida pelo formalismo de uma linguagem, principalemente de programação em Lógica, como PROLOG. O ensino de programação, como instrumento pedagógico, obriga a uma processo de abstração e formalização da linguagem ainda maior do que o exigido pela Instrução Programada e pela simulação.

 

Portanto, os quatro modos de usar a computação no ensino obrigam ao pensamento abstrato, e à formalização da linguagem. Já mostrei que os dois primeiros não são bons instrumentos pedagógicos. Sou também contrário à aprendizagem de programação de computadores como meio para aprender Matemática e desenvolver o raciocínio lógico, que são precisamente os pontos que Papert tenta desenvolver com seu sistema. Mas acho absolutamente necessário que todo estudante chegue ao fim do ensino médio com um conhecimento razoável dos tópicos que enumerei antes, no esquema de um curso de computação. Isso por que, infelizmente, o computador entrou em todas as atividades humanas; todos devemos entender como ele funciona, para que serve e os problemas que causa. Dessa forma, ninguém seria enganado pelos mitos veiculados por frases como "o computador cometeu um erro"; "computadores são instrumentos neutros"; "o computador pode substituir o ser humano no processo de tomada de decisão". Os estudantes deveriam chegar ao fim do ensino médio com conhecimentos básicos também sobre o funcionamento dos motores elétricos e a combustão interna, dos refrigeradores, dos aviões, etc. O próprio Steiner recomendou que o currículo das escolas Waldorf incluísse no ensino médio os princípios da tecnologia utilizada em sua época (de 1919 a 25): telefone, telégrafo, motores, etc. Tenho a impressão de que, se fosse vivo, Steiner recomendaria hoje o ensino de princípios de computação, pois considerava os ensinos fundamental e médio como preparo do jovem para atuar no mundo. Isso implica necessariamente a conceituação de tudo o que rodeia o ser humano, pois assim é possível estabelecer uma relação consciente com o mundo.

Quando observamos algum objeto ou fenômeno desconhecido, imediatamente deve manifestar-se a curiosidade de compreender aquilo que existe na realidade e que nossos sentidos estão captando. Essa compreensão só se dá quando, por meio do pensamento, podemos estabelecer uma ponte entre a observação sensorial e a idéia, o conceito que temos do objeto ou do fenômeno17. Por exemplo, aproximando-nos de um objeto retangular vertical, com dimensões um pouco maiores do que as nossas, cuja cor contrasta com a da superfície que o cerca, imediatamente nosso pensamento estabelece a ligação entre essa percepção e a idéia porta, que contém a funcionalidade do objeto. Se nosso pensamento não conseguisse estabelecer essa ponte, ficaríamos frustrados e imediatamente deveríamos ter a curiosidade de compreender o objeto desconhecido; essa curiosidade inata e sadia (que é fruto da separação do ser humano em relação ao seu ambiente, o que não acontecia na Antigüidade), é a origem da pesquisa científica. Infelizmente, o desconhecimento cada vez maior dos objetos produzidos pela tecnologia está diminuindo a curiosidade, tornando-nos menos humanos. Quantas pessoas sabem o princípio de sustentação das asas de um avião que, por sinal, é muito simples?

Por outro lado, a incapacidade de criar, por meio do pensamento, uma ponte entre a percepção sensorial e o conceito provoca uma paralisia interior e bloqueia a consciência. Por isso, creio que é imprescindível proporcionar a conceituação do funcionamento lógico das máquinas; não é necessário estudar termodinâmica nem conhecer detalhes de construção para compreender o princípio do funcionamento de um motor a explosão ou de um computador. É missão da escola dar aos alunos a conceituação desses objetos, acabando com a paralisia mental que impede a crítica e o uso positivo da tecnologia.

Bem, se os estudantes devem chegar ao fim do ensino médio com conhecimentos básicos de computação, surge a pergunta: quando deve ocorrer esse aprendizado?

6. Quando ensinar computação

Combinando-se nossas considerações sobre as características do computador e sua influência sobre seus usuários, bem como o desenvolvimento do ser humano visto segundo os princípios da Pedagogia Waldorf, que desde 1919 têm resultado em grande sucesso educacional no mundo todo, obtém-se a resposta óbvia: não antes da puberdade. Como vimos, o computador obriga a criança a usar uma linguagem que é formal, portanto absolutamente estranha, completamente morta, sem vida nem sentimentos. Obriga a um raciocínio lógico que criança não deveria ter. Obriga a um raciocínio matemático, ou melhor, algorítmico, que a criança não deveria praticar de maneira formal. Obriga a uma experiência de causas e efeitos exatos, que não existe natureza. Mistifica a máquina quando introduzido por meio de uma linguagem de "alto nível", como BASIC, LOGO, etc. (tenho certeza de que é impossível ensinar linguagem de máquina a uma criança), pois a criança não aprende como a máquina funciona: esta torna-se um grande mistério. Intelectualiza a criança, roubando-lhe energias e forças que deveriam ser dedicadas a seu desenvolvimento normal. É extremamente limitado e pobre como instrumento de arte – aliás, eu o considero um instrumento de anti-arte, pois elimina completamente o elemento subjetivo e inconsciente que toda obra de arte deveria ter, obrigando o "artista" a formalizar completamente seus sentimentos e pensamentos (ver meu artigo O computador como instrumento de anti-arte). Depois da puberdade, o jovem liberta seu pensamento e pode começar a usá-lo para formular conceitos puros e teorias formais, como a prova de teoremas na Matemática. Como afirmei antes (cap. 4), estruturas algébricas devem ser ensinadas por volta dos 17 anos de idade, assim como a programação de computadores. Mas há outras razões. O computador exerce uma fascinação quase incontrolável, como veremos no item 7.2, exigindo um enorme auto-controle para que o usuário não fique preso a ele. Além disso, exige um discernimento muito grande para que seja bem utilizado. Portanto, recomendo que o aluno entre em contato com o computador somente nos últimos anos do ensino médio e, repito, sob a forma do aprendizado de programação e, posteriormente, dos usos de aplicativos como editores de texto, planilhas de cálculo, sistemas gráficos, etc., compreendendo seu funcionamento básico lógico. Para uma proposta de currículo de ensino de computação, ver meu artigo Computadores na educação: por que, quando e como.

7. Outros problemas causados pelo computador

7.1 A massificação

O computador trata, para cada programa, todos seus usuários exatamente da mesma maneira: ele obriga ao uso exatamente da mesma linguagem formal, cujos termos possuem exatamente o mesmo significado (matemático). Assim, tem um efeito de massificação, contrário aos processos de individualização. Obriga ao desenvolvimento de pensamentos universais, e não individualizados – o que é correto a partir do ensino médio. O leitor deveria distinguir claramente esse tratamento do que ocorre com outros instrumentos, como o lápis ou o telefone. Estes não forçam um único tipo de raciocínio e podem ser usados para exprimir sentimentos de maneiras intuitivas, como desenhar com infinitas variações de intensidade do risco e de cor, e manter discussões ao vivo (embora com a despersonalização da ausência da presença do interlocutor), respectivamente.

7.2 O programador obsessivo

É extremamente fácil e rápido aprender a programar um computador, por que só se precisa executar um desenvolvimento mental específico. Pode-se ensinar a escrever um programa em poucas horas, especialmente com uma linguagem de máquina simples e limitada como é o caso da máquina HIPO citada no item 5.4. Compare-se essa rapidez com o tempo que se leva para aprender a nadar, a andar de bicicleta, ou a falar um idioma estrangeiro. Além disso, o computador sempre faz o que se lhe manda fazer. Esses dois fatores levam à criação de uma sensação de poder em um ambiente totalmente alienado da realidade. Quando se comete um erro na programação, ou no uso do computador por meio de um aplicativo, a sensação de poder transforma-se em sensação de frustração. Então o programador (ou o usuário) entra no que eu denomino de Estado do programador (usuário) obsessivo, algo parecido com o Compulsive Programmer que . Weizenbaum descreve em seu extraordinário livro8. A diferença é que ele estabelece uma distinção entre os programadores fanáticos (como os hackers) e os profissionais, mas eu não. A razão da frustração e obsessão é que se tem absoluta certeza de conseguir corrigir qualquer erro e, a menos que se tenha um autocontrole enorme, é extremamente difícil permanecer calmo enquanto não se o descobre e se o corrige com sucesso. Trata-se, portanto, de um desafio puramente intelectual. Compare-se essa situação, por exemplo, com uma partida de tênis. Neste caso, também sente-se frustração ao cometer um erro mas, como não existe fórmula para corrigi-lo, e como se sabe que é preciso praticar centenas de vezes até que a jogada talvez melhore, normalmente não se entra em um estado obsessivo; o próprio jogo impede que se fique tentando acertar até consegui-lo. Aliás, é interessante comparar as duas situações: no tênis, como em quase tudo na vida real – e certamente no âmbito social –, não é possível voltar atrás ou criar a mesma situação para se tentar uma ação um pouco diferente; no caso do computador, pode-se voltar atrás para a mesma situação (estado da máquina) onde ocorreu um erro, ou recriá-la com exatidão matemática para se tentar outra ação e ver se dá certo. No caso do computador, a pessoa sabe que, se o resultado não corresponde ao esperado, é por que há um erro que pode ser encontrado e corrigido. Lembre-se de que estamos em um ambiente puramente artificial, virtual, e matemático. Uma obsessão semelhante, mas não tão drástica, ocorre quando o programador não consegue fazer um algoritmo ou um programa para resolver um problema computacional. É essa razão pela qual tantos jovens e adultos já passaram noites inteiras diante de um computador.

Na minha opinião, todo programador ou usuário deveria estar consciente do perigo de entrar num estado obsessivo, e observar-se constantemente para verificar se ainda se controla a si próprio ou se está sendo controlado pela máquina. A comparação que faz Weizenbaum com o jogador compulsivo de Dostoyevsky é muito ilustrativa8. Um dos sintomas do estado obsessivo é quere corrigir o erro tentando ininterruptamente combinações de comandos aleatórias, sem ler os manuais e sem examinar cuidadosamente o programa ou o processo que se deseja completar. Deixa-se de aplicar à computação a regra bem conhecida: "Quando nada mais funciona, leia o manual." Porém há uma diferença muito importante: aqui a tentativa e o erro são puramente intelectuais. A situação piorou com a programação on-line, isto é, a confecção de programas diretamente em um terminal ou em um microcomputador, contrastando com a calma elaboração de um programa no papel, sobre uma mesa, sem contato com o computador, como acontecia nos primórdios dos computadores (até o fim da década de 1960). Nesse caso, após a elaboração do programa, este era simplesmente digitado, produzindo cartões perfurados (inicialmente, usava-se fita de papel perfurada) e introduzido no computador. A programação on-line de hoje permite usar-se o computador para detectar erros no programa, à medida que se o desenvolve. Antigamente, com o processamento em lote (tipo batch), cada programador recebia uma listagem impressa se seus programas e resultados e, na sua mesa de trabalho, examinava cuidadosamente o que poderia ter ocorrido no caso de haver erros. Não havia o perigo de ficar "ligado" à máquina; geralmente a procura do erro era realizada de forma global, não se limitando aos pequenos trechos de código que aparecem nas telas de agora.

A certeza de poder corrigir qualquer erro é outra causa de alienação da realidade (isso não existe no mundo real, principalmente no âmbito social – um mal feito a uma pessoa pode ser compensado, mas não corrigido). Especialmente nas crianças, que ainda estão formando sua representação interna do mundo, essa certeza pode até produzir um efeito esquizóide, que as leva a confundir a imaginação com a realidade (crianças até 8 anos de idade normalmente não fazem essa distinção). Isso se deve ao surgimento da sensação de que qualquer erro cometido na vida real pode ser corrigido, como ocorre com os erros que se cometem no uso do computador.

7.3 Mentalidade mecanicista

O efeito esquizóide pode ainda surgir quando uma criança, influenciada por meses ou anos diante do computador, começa a achar que também no mundo real tudo é redutível a sim-ou-não e a causa-e-efeito. Nesse caso pode haver a indução de uma mentalidade mecanicista (que culmina com a noção – errada – de que o ser humano é uma máquina) e de uma crença cientificista na tecnologia e na ciência (ver meu artigo O computador como instrumento do cientificismo). É muito possível que crianças educadas com computadores adquiram profunda admiração (veneração?) pelas máquinas. Lembremos que as crianças não têm a possibilidade de se isolar de seu ambiente e que para elas tudo é subjetivo.

É notório que os programadores tendem a formar grupos fechados. Para eles os indivíduos "normais" não são tão interessantes e previsíveis como os computadores; as pessoas só despertam seu interesse na medida em que são capazes de discutir aspectos de computação. Isso pode dar uma idéia da influência do computador na formação do indivíduo. A indução de uma mentalidade mecanicista e cientificista pode induzir a uma futura visão materialista do mundo. Infelizmente seria preciso estender demais essas consideração para entrar em maiores detalhes. Sendo assim, deixo a presente advertência aos pais que gostariam que seus filhos escolhessem mais tarde, quando adultos, uma visão de mundo a partir de um ato de vontade livre. Só para ressaltar esse lado do problema, é importante reconhecer que toda criança pequena tem por natureza uma visão religiosa do mundo. Induzi-la a uma visão de mundo materialista é violentar sua natureza. Imagino que nesse caso problemas psicológicos poderiam advir, o que seria mais uma conseqüência do uso de computadores pelas crianças.

7.4 O ser humano ao nível da máquina

O processo de raciocínio especial, matemático, necessário para programar ou usar computadores parece quase reduzir o programador ou o usuário a uma máquina. De fato, é necessário pensar apenas nas instruções e comandos disponíveis, isto é, enquadrar o pensamento naquilo que pode ser introduzido na máquina e corretamente interpretado por ela. Denomino esse tipo de pensamento de "pensamento maquinal". A atividade interior mais elevada do ser humano, o pensar, é reduzido a um pensar maquinal.

A única atividade puramente humana é a intuição que se dá quando uma estrutura de dados ou um algoritmo novo é idealizado pelo programador. Estou ciente das objeções que poderiam ser levantadas por pensadores materialistas: eles afirmariam que a intuição não é nada mais do que o resultado de combinações casuais de processos físicos ocorrentes no cérebro ou em outro local. Se têm essa crença, eles não reconhecem que os seres humanos transcendem o mundo físico das moléculas e das máquinas, o que corresponde a minha hipótese de trabalho básica (não é uma crença!). É interessante que eles baseiam suas opiniões em certos pensamentos, mas quem já provou (e onde estão os indícios de que algum dia se provará?) que pensar é um processo puramente material? Ou, então, que os átomos ou as "partículas" sub-atômicas são materiais? Hoje, estes assemelham-se mais a entes matemáticos, ou seja, teorias e fórmulas abstratas (portanto, não-materiais) – com muitas contradições (em particular, o elétron não é uma bolinha nem revolve em torno do núcleo, pois se assim fosse perderia energia por irradiação eletromagnética e cairia no núcleo).

Retomando o assunto, em geral o processo de raciocínio necessário para usar um computador poderia ser congelado (ou petrificado) no próprio computador. Na obra já citada, afirma Papert: "Requer-se que o computador execute muitas tarefas mas, para conseguir que ele faça algo, o processo subjacente deve ser descrito, a certo nível, com precisão suficiente para ser executado pela máquina." (Aqui ele comete um erro, pois deveria dizer exatidão em vez de precisão suficiente) Ou seja, um certo tipo de pensamento, que é lógico, formal, matemático – e seqüencial – deve ser exercido pela criança (ou por qualquer pessoa) quando usa um computador. Ela tem que limitar seu pensamento a um espaço de trabalho muito restrito, seguindo especificações pré-definidas, semelhantes às de um programa de computador. Por exemplo, não existem nos editores de texto comandos para alinhar as linhas de um parágrafo em forma triangular. Repito que é importante distinguir as atividades humanas substituíveis por máquinas, como aparar a grama ou cavar o solo, que são atividades físicas, das que correspondem a processos puramente mentais, realizados quando se programa ou se usa um computador. Nesses casos, a atividade humana mais elevada, o pensamento, é reduzida a um processo mecânico e, com isso, reduz-se todo ser humano a uma máquina.

7.5 A aceleração do desenvolvimento

É importante reconhecer uma conseqüência fundamental do uso do computador por crianças, resultante dos fatores enumerados na discussão anterior. Trata-se da aceleração indevida do desenvolvimento infantil ou juvenil, especialmente o intelectual. Há um exemplo clássico desse fato: aprender a ler e a escrever muito cedo. Muitos pais ficam entusiasmados com seus filhos, tão "inteligentes", que conseguem ler aos 4 ou 5 anos de idade. Para mim, isso é uma tragédia; tenho profunda pena dessas crianças (ver a esse respeito o meu ensaio contra a leitura precoce, em inglês).

Atualmente as letras de imprensa são símbolos abstratos, sem realidade, fantasia, vida ou arte. Em lugar de brincar e fantasiar acerca de um mundo real ou imaginado, a criança pequena é forçada, ao ler, a exercer uma atividade própria da maturação que deveria vir apenas com a idade escolar. Tal aceleração desvia a criança de uma evolução "normal", sadia, o que traz inevitáveis prejuízos para seu desenvolvimento global, isto é, físico, volitivo, emocional e intelectual. Observe-se uma criança intelectualizada (precocemente seria um pleonasmo): ela mostra-se, em geral, pálida; seu olhar é mortiço e sem brilho; falta-lhe a vitalidade própria da infância; seus gestos e palavras são de adulto. Na verdade, não se deixou a criança ser infantil. A troco de quê? O que se ganha com a intelectualização, com esse precoce desenvolvimento mental (e mesmo físico, no caso dos atletas infanto-juvenis)? Na minha opinião, a longo prazo, e do ponto de vista da totalidade do ser, nada se ganha e muito se perde. A criança perde a chance de passar por um período necessário de infantilidade em todos os aspectos, para tornar-se no futuro um adulto equilibrado, e não apenas uma "cabeça" ambulante, cheia de pensamentos abstratos – mas duvido até de que se possa obter um espécime desse tipo, tão prezado por nossa degenerada sociedade. Não é forçando a abstração prematuramente que se confere ao futuro adulto uma boa capacidade de abstração; do mesmo modo, não creio que se formem bons matemáticos por meio do aprendizado precoce de Matemática avançada, como já afirmei no cap. 4.

Essa mania de aceleração do desenvolvimento levou ao uso do "andador", um carrinho em que a criança pequena é forçada a ficar sentada (pois as perninhas ainda não a sustentam) e verdadeiramente "remar" com pernas e pés. Hoje em dia já se sabe que o andador pode provocar graves distúrbios posteriormente, como por exemplo dislexia (se a criança deixou de passar pela fase de engatinhar, que desenvolve a lateralidade no movimento). Nenhuma criança sadia deixou de aprender a andar, quando estava madura para isso (o ideal é que nem se a ajudasse antes de poder fazê-lo sozinha). Pois bem, para mim, o computador usado por crianças e jovens antes da puberdade é como se fosse um "andador mental".

Bem, todas essas considerações aplicam-se ao uso do computador sob qualquer forma, por crianças e jovens que ainda não alcançaram a puberdade. Uma das maneiras seguras de fazer uma criança perder sua deliciosa – e necessária – infantilidade é dar-lhe um computador. Ele faz o adolescente começar a perder sua juventude e o torna senil dos pontos de vista mental, emocional e volitivo. Uma das características fundamentais da infância e da juventude é a generalidade; o computador, em virtude de suas peculiaridades, obriga a uma especialização mental precoce. Neste ponto, lanço uma observação que a muitos parecerá absurda, mas que talvez sensibilize ao menos um leitor (e então dar-me-ei por realizado): a especialização precoce é uma característica dos animais, e não do ser humano. Ao se aproximar da idade adulta, ou mais tarde, o ser humano pode começar a se especializar, adquirindo habilidades muito mais sutis e refinadas, do que as dos "apressados" animais. Estes, pobres coitados, ficam sujeitos ao "programa" "gravado" em seu corpo. O ser humano, com o intelecto, consegue suprir em qualquer direção – em não unilateralmente, especializadamente, como o animal – todas as suas deficiências físicas, projetando máquinas especializadas para navegar, voar, etc. Mas suas mãos, tão rudimentares e embrionárias, em comparação com as patas dianteiras dos animais, são capazes de fazer soar divinamente um instrumento musical como os de cordas, fazer uma escultura, acariciar, etc. É a falta de especialização das mãos (nesse sentido, o ser humano é menos evoluído do que o animal), que lhe permite fazer com elas coisas tão refinadas e diversificadas! O animal tem um desenvolvimento extremamente rápido, e especializa-se. Por exemplo, um potro recém nascido em poucas horas já está de pé; há uma espécie de macaco em que o recém-nascido já tem tanta força que se agarra na mãe, mamando enquanto esta pula de galho em galho. É necessário manter a lentidão do desenvolvimento do ser humano, que dura de um quarto a um terço de sua vida, para que ele possa vir realmente a tornar-se um ser humano completo, com todas as suas capacidades e habilidades.

O computador no ensino acelera e especializa o desenvolvimento mental. E, por não atingir o corpo, não reduz o ser humano a um animal mas, o que talvez seja ainda pior, a uma máquina. De fato, ao dar comandos para o computador, o usuário é obrigado a pensar apenas naqueles que são corretamente interpretados pela máquina, enquadrando assim os seu pensamento. Conjeturo que o uso do computador na infância e na adolescência produz problemas mentais mais tarde, como pensamentos fixos e inflexibilidade mental.

Dediquemos agora algumas palavras aos jogos eletrônicos, esses "filhotes" dos computadores. Trata-se de dispositivos que exigem um alto grau de especialização física. Além dos problemas que derivam desse aspecto particular, há um outro, que chamo de "curto-circuito neurológico". Os jogos eletrônicos do tipo ação-reação, os mais jogados, obrigam o usuário a reagir com seus dedos a estímulos visuais o mais rápido possível. Ele precisa "desligar" completamente seu raciocínio consciente, pois este é muito lento. As reações devem ser automatizadas ao máximo. Sabe-se que, uma vez destruído, o tecido neurológico tem grande dificuldade de se reconstituir. Quem sofreu um traumatismo ou um acidente vascular cerebral, pode desenvolver, por meio de fisioterapia apropriada, um caminho alternativo para substituir os "circuitos" danificados. É provável que caminhos alternativos e especializados são desenvolvidos por meio dos jogos eletrônicos, praticados muitas vezes e durante um longo período de tempo, particularmente no caso de crianças, cujo corpo é altamente adaptável. Pergunta-se então: não poderiam ser esses "curto-circuitos" neurológicos prejudicar a pessoa como um todo? Educar uma pessoa para que tenha reações rápidas e inconscientes, não acabaria por condicioná-la a aplicar, em casos de reação inconsciente (como em situações de emergência, de estresse, de raiva ou de medo) tal tipo de reação a outros estímulos físicos, emocionais ou mentais, tornando-a um autômato animal? É interessante atentar para os tipos de ruído e para as figuras dos vide games. Geralmente, trata-se de estímulos brutos, vulgares, grosseiros e exagerados, sem nenhum refinamento artístico ou sutileza. Eles não mobilizam as capacidades ou valores superiores que trazemos em nós, mas apelam para os mais baixos; despertam o animal que há no ser humano, de modo tal que este permanece inconsciente disso, ao invés de ensiná-lo a controlar conscientemente o animal dentro de si e tornar-se cada vez mais humano. O amor, em seu mais alto sentido, isto é, o amor altruísta, só pode ser praticado pelos seres humanos. Por exemplo, nenhum animal faminto oferece sua comida a outro, a menos que se trate, em poucos casos, de um filhote. Os seres humanos fazem-no, como um ato de amor altruísta consciente. O isolamento, o ambiente de competição e combate, e os "curto-circuitos" neurológicos associados aos jogos eletrônicos podem, a longo prazo, produzir indivíduos anti-sociais.

7.6 A perda de criatividade

O processo de raciocínio exigido para a programação ou para o uso de computadores (abordado no cap. 2), conduz-me a esta conjetura: o computador talvez produza uma perda de criatividade. Para ser criativo – fora da Matemática – é necessário ter um pensamento flexível, prático, isto é, ligado à realidade, e não puramente intelectual, formal, abstrato e sem vida. Mesmo na Matemática, vários pesquisadores afirmam que sua capacidade de criação deve-se à sua habilidade de imaginar construções geométricas. A criatividade de um programador de computador, além de limitada pelo ínfimo espaço definido pela máquina e pelos programas, tem que ver exclusivamente com combinações de elementos abstratos pré-fixados. Esse tipo de criatividade pode atrapalhar a outra, a verdadeira, ligada aos elementos pouco ou nada bem definidos, fixados, que constituem a vida real e a criatividade artística. Também nesse caso é possível antever algumas conseqüências trágicas para interação social, em que a criatividade está mais ligada à sensibilidade, consciência do mundo real, calor humano, improvisação e bom-senso, do que a racionalidade. Além disso, seria muito interessante averiguar se a criatividade em Matemática não se vincula à criatividade em outros campos, mesmo nos sociais e artísticos. Se isso for certo, poder-se-ia afirmar que o computador provavelmente prejudica a criatividade inclusive na Matemática.

7.7 Outros problemas

Um interessante problema causado por microcomputadores em geral foi-me sugerido por Juán Mangione, de Mendoza, Argentina, que assistiu a uma palestra minha sobre computadores na educação e, entusiasmado, procurou-me para discutirmos os pontos abordados. Trata-se do fato de crianças e jovens que têm acessos a micros, estarem roubando ("pirateando", no jargão da área), programas que são comercializados. Essa apropriação indevida é incentivada por colegas, e mesmo professores e pais. Se uma criança rouba uma maçã na feira, ela sabe que está cometendo um ato imoral, e que será castigada se for pega. No entanto, no caso dos micros, há uma institucionalização do roubo, o que inclui também a compra de software ilegal; algo imoral e desonesto passa a ser incentivado por adultos, e o infrator não é sujeito a castigos. Qual é o efeito de um ato imoral tolerado, e mesmo incentivado, especialmente se praticado por crianças e adolescentes?

Mais um ponto levantado por Mangione: há sistemas em que vários micros são ligados em rede, onde há um computador central operado por um professor. Este pode consultar qualquer dos micros usados pelos alunos, podendo acompanhar seu trabalho sem que eles o saibam, e mesmo modificar o processamento que eles estão fazendo. Essa interferência subreptícia é oposta à consciência do aluno, de que o professor o está observando quando passa perto de sua carteira. A situação do controlador invisível equivale à de um estado policial, em que os cidadãos são observados e controlados sem que o saibam, e pode levar a uma inconsciência do direito à privacidade.

Mas há outras conseqüências funestas para o uso de computadores por crianças e jovens, que posso conjeturar baseado no tipo de pensamento e atitude que eles impõem nos seus usuários. Por exemplo, parece-me que eles induzem admiração pelas máquinas, atitudes anti-sociais e uma visão materialista do mundo; diminuem a capacidade de concentração mental e a imaginação; prejudicam o interesse por coisas calmas e profundas, que não sejam apresentadas de maneira excitante e, finalmente, induzem um desrespeito à pessoa humana e à natureza.

8. O ensino piagetiano de Papert

8.1 O ambiente "natural" LOGO

Papert advoga que a criança faça seu aprendizado num "ambiente natural", mesmo no caso da Matemática: "A matematelândia (mathland) que estou propondo, baseada em computadores, estende o tipo de ensino natural, piagetiano, responsável pelo aprendizado da língua materna, para o aprendizado da Matemática. [...] Neste livro nós abordamos o problema de como a Matemática pode ser aprendida em ambientes que se parecem com a escola de samba brasileira, em ambientes que são reais, socialmente coesivos, onde todos, especialistas e novatos, estão aprendendo"7.

No primeiro setênio, a criança está realmente integrada no meio-ambiente. Steiner elaborou uma imagem interessante a respeito disso: afirmou que, durante esse período, a criança toda é um "órgão dos sentidos". Aí cabe falar em aprendizado natural. É tão natural que transcende nossa lógica cotidiana: a criança aprende a falar antes de aprender a pensar9. Como dissemos, pode-se considerar a criança pequena essencialmente como um ser natural. No entanto, a partir do segundo setênio, a criança já não é um ser natural, pois algumas de suas características e atividades emergentes (originalidade, individualidade, pensamento abstrato, auto-consciência, etc.) não estão presentes no resto da natureza. O aprendizado nesse período, portanto, não deveria se natural. É necessário criar um ambiente meio artificial, para educar uma criança, a fim de que ela torne-se mais tarde um adulto não-natural que saiba integrar-se, até certo ponto, na natureza. A evolução da humanidade pode ser considerada, em parte, como a separação crescente que vai ocorrendo entre o ser humano e a natureza, dando a ele mais e mais liberdade. Quando o homem das cavernas produziu a primeira pintura rupestre, deixou de ser um ente natural; pode-se até conjeturar se ele alguma vez o foi. Naturais são os animais e as plantas; o ser humano transcende a natureza. O ambiente natural antes mencionado, deveria ser o mais humano possível, cheio de amor (palavra que, significativamente, não aparece no livro de Papert), respeito e compreensão pelos problemas e tipos de temperamento das crianças. Ensinar é renunciar à própria visão de mundo, e transportar-se para a personalidade da criança, a fim de ajudá-la a desenvolver-se segundo sua própria natureza. Nesse sentido, ensinar é um ato de sacrifício e de amor.

A transição para o mundo artificial deve dar-se gradualmente; qualquer máquina acelera e prejudica esse processo. Que ambiente natural oferece Papert com um computador totalmente artificial, o qual atinge exclusivamente o intelecto infantil, se é em nosso intelecto que somos justamente menos naturais? Como já disse, o ensino fundamental deveria ser todo artístico e imbuído de realidade por meio de exemplos do mundo cotidiano, principalmente do ambiente da criança. Por exemplo, nas escolas Waldorf, começa-se a ensinar geografia na 3ͺ série, fazendo-se os alunos descreverem e desenharem a planta de sua própria casa; na 4ͺ série, os alunos fazem um reconhecimento, exame e descrição pessoal do ambiente escolar, ou seja, ruas, vizinhança, etc. Em Matemática, pode-se ensinar divisão distribuindo-se belas pedrinhas entre os alunos, e assim por diante. Steiner recomendou várias vezes que é muito importante partir do todo, da unidade, e não das partes, pois para a criança, o todo é a realidade. Assim, não se deve ensinar que 2 mais 3 são 5, e sim que 5 é igual a 2 mais 3, o que leva a uma flexibilidade, pois pode ser também 1 mais 4, 1 mais 1 mais 3, etc. Dessa maneira, não se cria uma mentalidade atomista e inflexível. Como veremos adiante, a geometria do LOGO é altamente atomista.

Quanto à escola de samba, é realmente de estarrecer que se possam comparar tais alhos com tais bugalhos. Afinal, sambar não é uma atividade intelectual, e sim motora. Experimente-se pensar em cada passo que deve ser dado – não se sai do lugar! Para sambar decentemente, é necessário fazer com que a atividade intelectual torne-se secundária (como no caso de se seguir certa coreografia), passando-se a atuar essencialmente com a atividade volitiva e, talvez, um pouco com a emocional. Pelo contrário, para fazer Matemática corretamente, é necessário eliminar qualquer outra atividade que não a mental. Se as atividades são diferentes, também o aprendizado deve sê-lo.

No que toca a esse problema, a formulação de Papert gerou confusão: ele talvez quis dizer que o mesmo entusiasmo que permeia o aprendizado numa escola de samba deveria prevalecer no aprendizado da Matemática. Não há dúvida quanto a isso, só que não é necessário um computador para produzir tal entusiasmo. Devo dizer que nas escolas Waldorf ensina-se Matemática de maneira muito mais parecida com a das escolas de samba do que na matematelândia computadorizada de Paper. Por exemplo, quando se ensina a tabuada, leva-se em conta que a criança não é apenas um intelecto ambulante – faz-se o aluninho participar com todo o seu corpo, marchando ao ritmo dos números, batendo o pé mais forte ou batendo palmas quanto se atinge o resultado ("um dois!, três quatro!, cinco seis!, ..."). Mas, a certa altura adota-se um processo de pura memorização, que é a culminação do processo de aprendizagem. Parece-me que aprender Matemática, particularmente a tabuada, faz a criança entrar um pouquinho mais no mundo intelectual dos adultos. E, inversamente, aprender a dançar leva o adulto um pouco na direção do mundo volitivo da criança.

Insisto que o ambiente natural de Papert baseia-se em nada mais do que no uso do fascínio da criança pelo brinquedo eletrônico. É possível causar entusiasmo em ambientes parcialmente naturais como as salas de aula tradicionais, com professor e alunos reais, sem o uso prejudicial de máquinas artificiais. A Pedadogia Waldorf mostra, a quem tiver mentalidade aberta e queira visitar uma de suas escolas (ver diretórios de escolas e jardins-de-infância Waldorf em www.sab.org.br), o que recomendo fortemente, que se pode aprender qualquer matéria em um ambiente tradicional, com entusiasmo, participação, amor, sem tensões, temores ou lágrimas. Nessas escolas, quando realmente seguem os princípios da pedagogia, não há provas, notas, repetições de ano e recursos semelhantes para apavorar os alunos, conforme exporei em 9.1. Existe entusiasmo pelo aprender, em um ambiente totalmente real, e sem máquinas.

8.2 A geometria da tartaruga

Papert justifica o uso da palavra natural dizendo que sua "geometria da tartaruga" – ou seja, as figuras geométricas desenhadas na tela por um programa em LOGO – é um sistema diferencial. Ele cita como exemplo o modo de desenhar uma circunferência mediante aquela linguagem: um passinho para frente, uma pequena mudança de direção, mais um passinho de mesmo comprimento, outra pequena mudança de direção com o mesmo ângulo da anterior, e assim por diante. Ele reconhece que o resultado não é a circunferência da geometria euclidiana clássica (a circunferência como lugar geométrico), ou da geometria cartesiana (geometria analítica, onde a circunferência é descrita algebricamente como uma equação). Segundo Papert, desenhar uma circunferência na geometria da tartaruga da linguagem LOGO "[...] é mais do que desenhar circunferências de acordo com o bom-senso. Isso põe a criança em contato com um conjunto de idéias que formam a parte essencial do cálculo. [...] O programa da tartaruga é um análogo intuitivo da equação diferencial, um conceito encontrado em quase todos os exemplos da Matemática aplicada tradicional." Eu valorizo o fato de a criança, ao traçar com o pé a "circunferência da tartaruga" "entender" o processo com seu corpo, o que é um ponto positivo nas idéias de Papert. Mas eu pergunto: é esse o conceito de circunferência que a criança desenvolva antes de ter uma certa maturidade intelectual? O fato de a humanidade ter desenvolvido a geometria diferencial mais de 2.000 depois da geometria euclidiana poderia indicar que a primeira requer um alto grau de abstração, que simplesmente não se possuía antes. Uma maneira segura de ensinar Matemática é acompanhar sua evolução histórica, por que assim se segue a construção de seu edifício conceitual, pedra por pedra, construção essa em que não se faz um andar antes de se aprontar a infra-estrutura que lhe serve de base. Geralmente, introduz-se o conceito de equações diferenciais na faculdade – não se confunda a noção de derivadas, que era ensinada no fim do ensino médio, quando este tinha alto nível. Eu não jogaria fora essa tradição, sem antes estudar muito, de maneira global, as conseqüências de tal aceleração da aprendizagem. Também não concordo com o "análogo intuitivo". É claro que a criaça não tem consciência das equações diferenciais, mas ela torna-se muito mais consciente do processo quando usa a linguagem LOGO do que quando traça a circunferência com o próprio corpo. Com essa linguagem, ela tem que descrever o processo com a exatidão Matemática requerida pelo computador, tem que pensar em segmentos de reta e medida de ângulos. Isso não acontece quando emprega seu corpo.

Algumas palavras sobre a história da ciência podem ilustrar essa questão. Copérnico, Galigleu e Kepler intuíram o sistema heliocêntrico mas não conseguiam explicá-lo totalmente. Co ube a Newton desenvolver a teoria abstrata – seus conceitos de mecânica e da gravitação – que permitiu a formação de um bom conceito físico do sistema planetário (veja-se o magnífico livro de Koestler Os Sonâmbulos10, que narra isso de maneira fascinante). Só 300 anos após Kopérnico, Foucault idealizou uma prova física da rotação da terra, com seu pêndulo. Mas, muito antes dele, a humanidade já tinha evoluído em sua capacidade de abstração, para admitir a possibilidade do sistema heliocêntrico. Eu nunca diria a uma criança que a Terra gira em torno de si e o Sol fica parado, por que essa não é a realidade que ela vê no céu, todos os dias. Deixar de lado uma impressão sensorial tão forte requer um alto grau de abstração, como ocorreu com a humanidade como um todo. Nas escolas Waldorf, ensina-se o sistema heliocêntrico somente na 6ͺ série, de modo intuitivo, o único modo possível naquela idade. Mesmo o conhecimento intuitivo deve esperar a maturidade aprorpiada. Para programar um computador que simule esse processo, é necessário avançar muito mais; é preciso fazer uma abstração, uma modelagem matemática do processo, como já expliquei anteriormente.

É também importante ressaltar dois aspectos da geometria da tartaruga: seu caráter algorítmico e seu atomismo. O primeiro é claro, e resulta da descrição dos elementos por meio de uma linguagem de programação algorítmica. O segundo aspecto é uma conseqüência da necessidade de subdividir cada figura em suas partes elementares. usando o mesmo exemplo de antes, compare-se o conceito de circunferência da geometria euclidiana com o da geometria da tartaruga. A primeira é um todo, com sua bela e harmoniosa forma, quer seja desenhada com compasso, quer o seja com um pedaço de linha fixo em uma das pontas, ou com o usa tão somente da imaginação.

A segunda, por sua construção, é uma seqüência de pequenos segmentos de reta; a forma que se vê na tela é muito mais tosca do que a obtida com o compasso. Todas as figuras curvas d livro de Papert, cópias das visíveis na tela, são incrivelmente imperfeita. Os monitores de vídeo funcionam com tubos idênticos aos de televisores, que geram as imagens por meio de varreduras horizontais de um feixe de elétrons. Assim, as curvas, por serem construídas ponto por ponto, aparecem como muitos segmentos de linha, cortados irregularmente. No citado livro, mostra-se uma flor desenhada provavelmente com lápis de cera e, em seguida, o resultado que se obtém com a linguagem LOGO. Recomendo fortemente ao leitor comparar essas duas figuras, pois assim poderá entender melhor a minha expressão incrivelmente imperfeitas. Note-se também como as figuras desenhadas com o computador são totalmente destituídas de estética artística, ao contrário das desenhadas com lápis de cera. Em particular, o "jardim" com muitas "flores" é um repetição monótona do mesmo padrão. Eu não gostaria que meus filhos pequenos tivessem contato com essa aberração de "desenho", e muito menos com os programas que o criaram. Talvez eu esteja sendo muito parcial, por ter convivido com os lindos desenhos que meus filhos, como todos os outros alunos, fizeram na escola Waldorf, desenhos esses que, em hipótese alguma, são caricaturas do mundo, como as flores, pássaros (estes, feitos com dois segmentos de circinferência), e casinhas (um triângulo sobre um quadrado) do livro de Papert. Os alunos das escolas Waldorf desenham com lápis de cera (com preferência os feitos com cera de abelha, como os da marca Apiscor), sem fazer contornos, e cobrindo toda a folha de papel. Invariavelmente, seus desenhos são cheios de imaginação, de cor e de vida. Não são caricaturas, que dissecam, atomizam e ridicularizam o mundo. Essas caricaturas fazem lembrar histórias em quadrinhos e desenhos animados, que a Pedagogia Waldorf considera prejudiciais às crianças. As figuras da linguagem LOGO são muito piores, por sua imperfeição, de forma padronizada e, o que é mais grave, por resultarem de puras abstrações matemáticas.

Ainda a respeito da questão do atomismo, temos que reconhecer que a natureza não se apresenta atomizada. Ela se compõe de elementos que sempre constituem um todo: uma folha é um todo, uma mão é um todo, etc. Para uma criança, as partes do todo não devem ser separadas pois, como é comum na natureza, elas perdem seu significado profundo quando isoladas. Uma folha sem árvore, uma mão sem corpo, deixam de ser uma folha e uma mão vivas. A criança não se interessa por detalhes. Uma boneca de plástico, cujo rosto e corpo imitam todos os detalhes humanos, é um brinquedo enfadonho – a criança não consegue imaginar quase nada, e assim não estimula sua vida rica imaginativa interior. Por outro lado, ela usa a imaginação ao brincar com uma boneca de pano, pois precisa completar mentalmente os olhos, nariz, boca, orelhas e dedos. Só muito mais tarde o conceito de átomo deve ser introduzido. É absolutamente essencial que o jovem possa reconhecer que o atomismo é pura teoria (que, aliás, está deixando tontos os físicos sinceros). Os átomos não existem na natureza, muito menos suas partes constituintes. Não passam de modelos abstratos, úteis para construir reatores nucleares, bombas e outros artefatos interessantes. Fico irritado quando, da janela de meu escritório na USP, vejo um instituto de pesquisa nuclear, cujo símbolo é um átomo de Bohr, com a representação tradicional planetária, de um núcleo rodeado de elétrons em órbita. Isso é uma completa falsificação da realidade, pois os elétrons não são bolinhas e não orbitam em torno do núcleo. Os alunos só deveriam estudar esse modelo quando tivessem a maturidade necessária para entender que não se trata da realidade. Para evitar essa concepção errônea do mundo, é necessário manter as crianças afastadas das idéias e experiências atomistas,introduzidas, em minha opinião, pelos ambientes LOGO.

É interessante notar que Papert considera louvável o fato de a criança aprender com o professor, ou descobrir por si mesma a chamada "programação modular". Ele a denomina "programação estruturada", termo técnico da Ciência da Computação, que abrange a programação modular. Esta, em poucas palavras, é uma técnica para escrever um programa como uma seqüência de subprogramas, cada um dos quais desempenhando uma subtarefa, uma parte da tarefa total. Cada subprograma é elaborado e testado (ou tem sua correção comprovada) separadamente, o que possibilita enorme simplificação do esforço de programação. Aqui se coloca novamente a pergunta que já foi formulada várias vezes: quando a criança deve tornar-se consciente de que existe essa técnica para resolver problemas? Na vida real a regra do "divida e conquiste" (divide and conquer) nem sempre pode ser aplicada, pois causas e efeitos em geral aparecem totalmente interligados, perdendo as partes algumas de suas características quando se separam do todo (sinergismo). Num programa de computador, sempre é possível modularizar a tarefa total Na vida real, geralmente não é assim. Portanto, deve-se tomar extremo cuidado ao introduzir esse conceito, o que recomendo seja feito apenas quando o jovem consiga distinguir conscientemente as ocasiões em que se pode e as em que não se pode aplicá-lo. Provavelmente isso ocorre quando a capacidade de abstração está plenamente desenvolvida, no fim do ensino médio.

Resumindo, a geometria da tartaruga introduz conceitos não apropriados para os primeiros anos do ensino fundamental, e talvez nem mesmo para os últimos ano. Ela obriga a criança a abordar a solução de problemas sob um ponto de vista atomista, o que é muito alienante.

8.3 Ambiente socialmente coesivo

Voltando ao mencionado no começo deste capítulo, passo a comentar a afirmação de Papert, segundo a qual o ambiente LOGO é socialmente coesivo. Ele se refere ao fato deas crianças gostarem de mostrar aos outros suas descobertas sobre os programas em LOGO, de até mesmo professores e especialistas cometerem erros nos programas (bugs, no jargão da computação) e de os menos adiantados poderem ajudar na correção. Toda atividade intelectual é individual, pois se realiza melhor na solidão, no isolamento.

Eu não posso pensar junto com outra pessoa, meu pensamento é um assunto estritamente pessoal. Mas posso jogar e fazer outras coisas em companhia de terceiros. O livro Logo: Computadores e Educação não nasceu de um pensamento composto de pensamentos originados simultaneamente em várias pessoas. O livro é uma seqüência de pensamentos individuais. Entendo que estes são muito desejáveis para adultos, mas não para crianças, que nunca deveriam realizar um processo mental puro. É exatamente isso que acontece numa sessão de programação. Sem dúvida ha interação social quando a criança mostra e explica a outras suas descobertas. Mas é muito limitada e baseia-se em situações intelectuais, isto é inapropriadas para a idade. Compare-se isso com a coesão social produzida numa aula tradicional por um professor com muita sensibilidade, abertura e atenção para cada tipo de problema e para o temperamento e interesse dos alunos. Ao ensinar qualquer matéria, ele pode orientar a aula de modo que a classe funcione como um grupo socialmente coeso. Papert argumentaria que há pouquíssimos professores com essas características. Isso significa que, em vez de atacar o problema pela raiz e educar os professores, não com simples teorias, como ocorre em geral nos cursos de pedagogia, mas sim com a prática real, ignoramos a causa das deficiências e atribuímos ao computado a tarefa de consertar nossas falhas de ensino... (o que ele jamais fará). De novo Papert confunde duas situações completamente diferentes, em termos de coesão social: programar um computador e aprender a dançar (no caso da escola de samba, dançar em grupo). Para não estender demasiadamente esta seção, não me deterei nas diferenças óbvias entre essas duas atividades e seu impacto na coesão social.

9. Alguns argumentos dos propositores do computador no ensino

9.1 A adequação ao ritmo individual

"O computador permite que cada aluno aprenda em seu próprio ritmo." Esse argumento surgiu com a instrução programada. O princípio que adoto é uma das pedras fundamentais da pedagogia Waldorf: o ritmo do ensino e aprendizagem deve acompanhar evolução física, volitiva, emocional e mental da criança, fato que depende de sua idade. Sendo assim, não é recomendável adiantar ou atrasar o processo de aprendizagem com base nos conhecimentos e habilidades de cada criança. Por isso, não há repetição de ano nas escolas Waldorf – todos os alunos ficam na mesma classe, desde a primeira série do ensino fundamental até o fim do médio. Há casos excepcionais de crianças que se atrasam ou se adiantam, mas isso depende apenas de sua maturidade e não de conhecimentos específicos que adquiriram ou deixaram de adquirir. Tais casos não são decididos em função das notas(inexistentes nessas escolas), mas em um demorado processo que envolve professores, pais e quase sempre o médico da escola. O processo de seleção das crianças que serão promovidas do jardim-de-infância para a 1ͺ série não se baseia só na idade, embora esse seja um fator decisivo para as que já completaram 6 anos e meio. Leva-se em consideração a criança como um todo, inclusive o ambiente em que vive. Recolheram-se assim observações bem interessantes. Por exemplo, há casos de alunos que vão mal em Matemática por vários anos. De repente ocorre um "estalo" e eles passam a ser os melhores da classe nessa matéria. Graças ao sistema escolar, toda uma vida foi salva do ponto de vista psicológico, pois qualquer escola tradicional teria feito o aluno repetir continuamente, com trágicas conseqüências tanto para seu estado psicológico como para seu processo de maturação. Provavelmente, um aluno assim massacrado jamais chegará ao "estalo" e será uma nulidade em Matemática para o resto da vida. No sistema tradicional de ensino, criaram-se escolas ou classes especiais para os superdotados. Nas escolas Waldorf, eles recebem cuidado especial, não nas matérias em que se destacam, mas precisamente nas outras, a fim de que o equilíbrio seja atingido. Neste mundo artribulado, não precisamos de gênios (aliás, onde estão eles, acaso foram eliminados pelos métodos pedagógios atuais?). Temos urgência de pessoas normais, equilibradas. É falso que o aluno brilhante deve ter oportunidades de progredir mais rapidamente; esse progresso prejudicará seu desenvolvimento integral, o que deve ser a maior preocupação do ensino. O estudante não deve avançar de acordo com seu próprio ritmo, mas de acordo com sua idade, com seu progresso global, impossível de avaliar nas matérias isoladas. Recomendo a leitura de boletins escritos por professores das escolas Waldorf, quando o ano escolar se encerra. Em vez de notas impessoais, que não dizem quase nada, encontram-se observações profundas e comoventes sobre os progressos, habilidades e esforços dos alunos, ao lado de indicações de como e onde melhorar. O importante não é o que o aluno sabe sobre esta ou aquela matéria; é o próprio processo de aprendizagem. Por exemplo, a quantidade de informação contida na tabuada é quase nula; ali o não é o conteúdo que interessa, mas o processo de memorização que a criança realiza para aprendê-la. De tudo que aprendemos na escola, quanto lembramos agora?

O computador permite que o estudante progrida por si próprio mais rápido ou mais devagar, o que é um grave erro pedagógico. Os professores devem ser artistas da educação, sensíveis ao problema (lentidão ou rapidez) de cada aluno, e dosar o ensino de modo que todos atinjam o grau de maturidade apropriado para a classe. Não é fácil evitar que alunos brilhantes se entediem quando se deve repetir várias vezes um ponto que os menos rápidos ainda não entenderam. Não é fácil manter a atenção e o interesse do estudante mais lento durante a explicação de um assunto que está acima de suas capacidades intelectuais. O ensino é uma arte e não uma ciência. É interessante notar que os passados de Piaget e de Papert impregnam as suas idéias e pesquisas. Eles tentam desenvolver teorias de aprendizagem, o primeiro usando a formalização lógica, pesquisando apenas o aspecto cognitivo, e o segundo, os conceitos da ciência da computação. Se a educação é tratada como uma ciência (clássica), os estudantes são tratados como abstrações ou, pior ainda, como máquinas. Em 10.2 retomarei esse problema.

9.2 A "alfabetização" em computadores

"Os ‘analfabetos’ em computação são profissionais menos capacitados e com menores oportunidades em qualquer área." Essa é uma falácia, pois não leva em conta que os computadores estão cada vez mais fáceis de serem usados. Quantos adultos de hoje aprenderam a usá-los quando crianças ou jovens? Certamente, dentre os de mais de 40 anos, nenhum. No entanto, essas pessoas estão usando computadores sem nenhum problema. A quase totalidade não os programa, pois usam programas que não requerem programação, como editores de texto, planilhas eletrônicas, gerenciadores de bancos de dados fáceis de usar (como o MS Access), sistemas gráficos, etc. "Alfabetização em computadores" significa apenas a capacidade de aprender o uso básico dos programas aplicativos, de gerenciar e organizar arquivos, ler os sistemas de ajuda e os manuais. Assim, todo aquele que não for um idiota completo será capaz de se "alfabetizar em computador" quando adulto – não é preciso começar quando criança. Veja-se quantos jovens e adultos aprenderam a usar computadores sozinhos, talvez com uma pequena orientação de pessoas que já sabem usá-lo. A Revolução Industrial permitiu que, desde o século XIX, pessoas se habilidade e força física executassem grandes tarefas, como cavar enormes buracos (com uma retroescavadeira). A Revolução da Informática permite que verdadeiros idiotas executem tarefas que antes requeriam uma inteligência razoável.

É um fato que muitas empresas só empregam funcionários que tenham familiaridade com o uso do computador. Mas esse é um atestado de ignorância dessas empresas, e tenho esperança de que um dia elas vão perceber o seu engano. O importante é a capacidade de aprender; saber usar um computador qualquer um aprende com relativa rapidez.

Muitos pais ficam preocupados se seus filhos não adquirem o mais cedo possível familiaridade com os computadores. Não há nenhuma, absolutamente nenhuma necessidade desse aprendizado se dar muito cedo. Se esse aprendizado se der quando os jovens estiverem nos últimos dois anos do ensino médio, será mais do que suficiente.

9.3 A melhoria do ensino

"O computador vai melhorar o ensino." Estou plenamente de acordo que o ensino está péssimo, principalmente o ensino público no Brasil. Mas, em vez de atacar os problemas educacionais em suas raízes, quer-se eliminá-los por meio da maravilha tecnológica, que resolve tudo. Precisamos basicamente de um modo novo de encarar a criança, que veja nela um ser global e não um mero repositório de teorias abstratas ou um animal a ser condicionado. Em nosso país precisamos de escolas, e não de maquinaria; quando há escolas, nelas não há telhas; se o edifício está completo, possui paredes, teto, sanitários, carteiras, não há professores, que são terrivelmente mal pagos – tendo que dar mais de 40 horas por semana de aulas para poderem sobreviver. Como tentei mostrar, o computador vai piorara o ensino, e não melhorá-lo. O problema do ensino é humano, e não tecnológico.

9.4 A modernização tecnológica

"Se nosso país não adotar computadores nas escolas, ficaremos para trás." No meu modo de ver, ficaremos adiante, e não atrás, por que as outras nações estarão criando gerações de pessoas intelectualizadas, esclerosadas mentalmente e não-criativas. Já é tempo de fazer recuar a mania de modernismo, segundo a qual toda inovação tecnológica é boa para a humanidade. No Brasil, só essa mania pode explicar a instalação de usinas nucleares – o que está sendo feito numa das regiões mais chuvosas do país. Os países subdesenvolvidos estão repetindo precisamente os mesmos erros dos países industrializados – desflorestamento, poluição do meio ambiente, etc. Será que é tão difícil entender que eles têm um jeito muito diferente do nosso e que não resolveram os seus problemas sociais, muito pelo contrário? Que teorias como a lei da oferta e da procura e a luta de classes são meras abstrações e não correspondem à realidade? Que o crescimento econômico contínuo é uma solução falaciosa e não melhora a condição humana? Queremos atingir os mesmos níveis de alcoolismo, consumo de psicotrópicos, separações conjugais e suicídios (até infantis)?

Então, por que aceitar as teorias que afirmam que a sociedade informatizada será melhor e que só poderemos acompanhar o progresso de outros países se introduzirmos computadores nas escolas? Do ponto de vista de conhecimento técnico, não ficaremos para trás se oferecermos educação superior em ciência da computação, diplomando anualmente um certo número de pessoas capazes de desenvolver o equipamento e os programas que serão usados por milhões. Sou completamente contra o ensino profissionalizante de processamento de dados nas escolas técnicas, ou cursos superiores de baixo nível como os de tecnólogos. Programação é coisa séria e exige o melhor preparo possível, e o correto nesse sentido é fazer um curso pleno de ciência da computação.

9.5 As cobaias

"Devemos experimentar." Como é mesmo? Experimentar com crianças? E, o pior de tudo, com seu desenvolvimento e suas capacidades mentais? Não vêem que estão brincando de Dr. Mengele? Está claro que se trata de uma experiência com processos mentais, e não de experiências fisiológicas em campos de concentração – mas as conseqüências podem ser ainda mais trágicas! Só uma enorme ignorância e falta de sensibilidade e de compaixão justificaria uma experiência desse tipo. Se isso fosse feito com dezenas de crianças, transformadas em cobaias, seria terrível, porém, em países como os Estados Unidos, a Inglaterra e a França, essa experiência está sendo feita com milhões, dezenas de milhões de crianças. Ninguém, absolutamente ninguém, pode prever seu resultado a longo prazo – este se evidenciará apenas quando as crianças de hoje chegarem à idade adulta ou à meia-idade. Mas, por falar em experiências, como se fazem avaliações? Será possível verificar o rendimento escolar, expresso através de notas que não dizem nada de profundo sobre a maturação e a real capacidade dos alunos? Não se avaliam, por exemplo, a criatividade, a sociabilidade e o amadurecimento.

Como afirmei antes, uma das conseqüências garantidas do uso do computador no ensino é uma intelectualização precoce da criança e do jovem. Sendo assim, qualquer teste que tente avaliar a intelectualização poderá eventualmente acusar um avanço das crianças que usaram o computador no ensino. Mas, num sentido mais amplo, esses "melhores" resultados mostram que a avaliação do aproveitamento deve ser sempre subjetiva, não-numérica, global e feita a longo prazo. Do contrário, estaremos reduzindo o ser humano a um animal treinado ou a uma máquina que armazena dados. Os testes estão em geral dentro do esquema do ensino por computador e por isso podem revelar melhores resultados para este. Para bem criticar e avaliar o ensino com o computador, é necessário superar seu esquema recorrendo a uma área mais subjetiva e global.

10. As origens de todo o problema

Tenho a impressão de que as causas profundas da introdução do computador no ensino são duas: a perda da sensibilidade humana e visão de mundo daí decorrente, e a tentativa de destruir a humanidade, reduzindo-a a condições sub-humanas.

10.1 A perda da sensibilidade e visão de mundo

Há pouco, sugeri que só a ignorância, a falta de compaixão e de sensibilidade explicam por que tanta gente não percebe que há algo de errado em colocar crianças em contato com máquinas que imitam processos de raciocínio matemático. Lembro-me de ter lido na revista Time que, há vários anos, os pais e mestres reagiam negativamente à introdução de computadores no ensino. Talvez a propaganda e os abomináveis jogos eletrônicos tenham mudado a mentalidade, pois hoje são poucos os que acham que as crianças não devem ter aquela experiência. Tenho absoluta certeza de que há muitos anos quase todos seriam contra o computador no ensino. O conhecimento intuitivo do ser humano diminuiu e foi substituído pelas explicações racionalistas que a ciência tenta dar e que de fato estão estreitando a visão de que o ser humano tem de si próprio. Essa visão é muito clara: é materialista, tentando sempre mostrar que o ser humano é uma máquina complexa, automática, feita somente de processos físicos e químicos. Trata-se de uma visão injustificável, pois até a gora a Psicologia e a Fisiologia não explicaram processos humanos essenciais, como por exemplo o sono. As funções neurológicas são grandes questões em aberto; não se sabe se algum dia conheceremos esses processos razoavelmente bem. Por exemplo, não temos idéias como a visão funciona; não se encontrou a imagem transmitida ao cérebro pelos nervos ópticos. Por outro lado, a Física atômica assemelha-se a uma coleção de fórmulas abstratas tentando explicar um número crescente de partículas sub-atômicas que parecem ser criadas nos aceleradores cada vez mais potentes. São infindáveis as teorias astronômicas, mas freqüentemente se descobrem corpos celestes que não se enquadram em nenhuma delas. A situação nesse campo é tão caótica que alguns astrônomos sérios imaginaram a chamada "Teoria Antrópica do Universo": as condições da Terra, o sistema solar e a nossa galáxia, bem como as constantes físicas são tão especiais que talvez o universo tenha sua forma atual só para tornar possível nossa existência11,12. Aliás, a origem da matéria e da energia, bem como os limites do universo, não fazem sentido físico.

Portanto, não há nenhuma razão para considerar o ser humano (ou o universo) como um conjunto de reações químicas e físicas. A idéia de que o ser humano é uma máquina não é nova: La Mettrie publicou em 1748 um livro intitulado L’Homme-Machine. Ele adiantou-se à sua época, em que pouca gente pensava assim. Atualmente, em parte devido a métodos educacionais e teorias como a evolução darwinista, o marxismo (materialismo histórico) e o freudianismo, quase todos consideram o ser humano como uma máquina, o que está errado já do ponto de vista lingüístico, pois tudo o que se denomina de máquina ou instrumento foi projetado e construído por seres humanos, eventualmente com a ajuda de outras máquinas. No entanto, nenhum ser vivo, em particular o ser humano, foi projetado e construído. Mas vou mais longe: conjeturo que nada em nenhum ser vivo poderá ser explicado de maneira puramente mecânica. Por exemplo, associa-se aos músculos dos braços ações como se fossem de uma alavanca. No entanto, a complexidade desses músculos é enorme, como no caso das fibras que não são fios, pois interagem com as fibras vizinhas. Além disso, o que faz com que as células mudem, e alguns músculos contraiam-se e outros se expandam? Não adianta dizer que são impulsos elétricos, pois como é que são detectados pelas células produzindo esta ou outra reação? E de onde vêm esses impulsos? Não adianta dizer que provêm do cérebro ou da medula, pois como é que eles se originaram nesses órgãos?

Se o ser humano faz de si próprio a idéia de que é uma máquina, então qualquer coisa é justificável já que, por exemplo, não faz sentido em se ter compaixão por uma máquina. Ao contrário, pensemos na hipótese de que o ser humano não é uma máquina, o que me parece muito razoável, considerado o conhecimento científico de nosso tempo. Nesse caso, nem todas as ações são justificáveis. Ações que envolvem seres humanos devem ser consideradas em termos globais, o que contradiz o atual reducionismo da ciência. Uma inovação tecnológica pode causar mais prejuízos que benefícios. Confirma minhas palavras a existência dos mais variados tipos de poluição ambiental não-natural, causados pela tecnologia. Outro exemplo: um raciocínio global mostra facilmente que as usinas nucleares são anti-econômicas – basta levar em conta os custos para armazenar e proteger os resíduos radiativos durante milhares de anos.

Se o ser humano é uma máquina, vamos alimentá-lo com a maior quantidade de dados possível e deixemos que outras máquinas o eduquem. Mas se o ser humano não é uma máquina, usemos de cautela, porque o contato entre ambos pode diminuir as características humanas que nada têm a ver com as máquinas. Recomendo a leitura do extraordinário livro de J. Weizenbaum, Computer Power and Human Reason – from Judgement to Calculation8. O último capítulo tem profundas reflexões sobre a mentalidade científica e sobre sua influência nas pessoas, bem como sobre o papel que os computadores, a ciência e os cientistas da computação têm desempenhado na formulação de idéias perigosas. Ele aconselha particularmente que as pessoas não se deixem seduzir pela visão de um mundo melhor a ser obtido por meio dos computadores e da tecnologia em geral: "A ciência prometeu poder ao ser humano. Mas, como acontece tantas vezes quando as pessoas se deixam seduzir por promessas de poder, o preço exigido antes e durante todo o trajeto, mais o preço que realmente se paga depois, são a escravidão e a impotência. O poder não é nada, se não for o poder da livre escolha." Ele afirma corretamente que "[...] há funções humanas que não devem ser substituídas pelos computadores. Isso nada tem a ver com o que se pode ou não fazer os computadores executarem. Respeito, compreensão e amor não são problemas técnicos." No entanto, parece-me que Weizenbaum não indica uma saída para essa situação, isto é, não sugere outros tipos de pensamento que podem ser desenvolvidos. É certo que os pensamentos e ações devem ser enriquecidos com os sentimentos mas, pois só assim deixam de ser frios e mortos; além disso, precisamos realmente pensar de novas maneiras, mais adequadas à natureza viva e à constituição humana, que nada têm a ver com a máquina. R. Steiner indicou detalhadamente como desenvolver esse tipo de pensamento vivo. A alternativa a um pensamento vivo é a eliminação da racionalidade – basta olhar em volta e ver a quantidade de seitas religiosas e de culturas de drogados. Todas elas levam invariavelmente à eliminação da racionalidade e da autoconsciência, conduzindo ao egoísmo e a um tipo de materialismo ainda pior do que o científico. Este último ao menos é adequado à constituição humana moderna, ao passo que o materialismo daqueles grupos faz o ser humano regredir a tempos antigos, quando ele era outro, e o resultado é degeneração.

Por um desses mistérios da humanidade, só por meio da intuição podemos escolher uma das duas hipóteses opostas, isto é, existem ou não processos não-físicos no universo e nos seres vivos. Nenhuma delas pode ser provada. Num certo sentido, esse mistério é justificável: se fosse possível provar alguma delas, não haveria liberdade para decidir entre as duas visões de mundo. E, de acordo com a hipótese que rejeita a idéia de homem-máquina, o ser humano sem liberdade não é um ser humano.

Para maiores detalhes sobre o materialismo, veja-se meu artigo Por que sou espiritualista.

10.2 A destruição

A segunda causa da introdução do computador no ensino é a tentativa de destruir a humanidade. Trata-se de uma destruição muito mais refinada do que a destruição física, pois tenta eliminar as características humanas do ser humano, reduzindo-o a um animal ou uma máquina. É uma destruição anímica e espiritual que ser realiza hoje dia primordialmente pelos meios eletrônicos: TV, jogo eletrônico e computador (aqui incluindo a Internet). A televisão coloca o telespectador normalmente em estado de sonolência, como já foi demonstrado por pesquisas neurológicas13,14. Esse estado é onírico como os dos animais, em que as imagens provêm do exterior, e não do mundo interior. Ela elimina a autoconsciência e a possibilidade de exercer a crítica. Quase não tem efeito educativo ou informativo tendo, isso sim, um efeito condicionador 15,16. Uma clara indicação disso é o gasto que grandes empresas têm com propaganda na TV, na ordem de centenas de milhões de dólares por ano; obviamente elas não jogam esse dinheiro todo no lixo, gastam-no dessa maneira pois ele se multiplica em forma de vendas e lucro, induzindo as pessoas a consumirem.

Quanto ao computador, ele reduz o processo de raciocínio a combinações de passos algorítmicos ou de asserções lógicas elementares, que podem ser reduzidas a algoritmos. Os processos mentais reduzem-se ao que pode ser simulado pelo computador. Isto é, o pensamento, a nossa mais alta atividade espiritual, aquilo que mais foi desenvolvido em termos de capacidade humana, é reduzido a conceitos que podem ser introduzidos numa máquina, condenado a estar para sempre ligado a processos físicos e a abstrações matemáticas. Aprender que o pensamento pode ser exercido sem se ligar a representações físicas é uma experiência pessoal. O pensamento matemático é uma representação mental não-física – ninguém já viu uma circunferêcnia perfeita! No entanto, é cada vez mais necessário que as pessoas exerçam também outros tipos de raciocínio não-físico, para que continuem desenvolvendo-se e avançando como seres humanos9,17. Por exemplo, um pensamento puramente lógico seria o seguinte: há excesso de população no mundo; vamos deixar as pessoas matarem-se umas às outras, assim diminui esse excesso. É interessante notar que nenhuma lei social é fruto somente de pensamentos abstratos; todas contêm algo de sentimento.

Os computadores poderão impedir que a humanidade atinja seus próximos estágios de desenvolvimento, pois não contribuem com nada em termos de idéias. Ao contrário, padronizam e congelam o processo de raciocínio. Em minha opinião, a televisão, os jogos eletrônicos e os computadores no ensino, no lar e na escola, são mais destrutivos do que a bomba atômica. Esta causa uma destruição física visível e abominável. A destruição provocada pelo computador é imperceptível fisicamente; centenas de milhões de crianças e pessoas estão embarcando nesse processo, que provavelmente é um caminho sem volta. Uma vez eu a mentalidade tenha sido influenciada, pode ser extremamente difícil inverter o sentido do processo. Um dos piores efeitos que o computador no ensino poderá causar na mentalidade das pessoas é o desaparecimento da intuição de que os seres humanos são essencialmente diferentes das máquinas – e, de um pondo de vista global, infinitamente superiores a estas. Em conseqüência, os adultos do futuro, educados com computadores (mesmo sendo pouco o contato com essas máquinas), poderão chegar a pensar, por exemplo, que é mais do que natural delegar a um computador a tomada de decisões individuais e sociais. Afinal de contas, os computadores são muito mais rápidos e não cometem erros... Eu não vejo um futuro cor-de-rosa. Acho que a situação atual vai piorar muito. Esse é o duro caminho que a humanidade tem de percorrer para conquistar a liberdade, cujo exercício será cada vez mais difícil. Teremos de ser cada dia mais fortes, corajosos e conscientes para escapar dessas influências destrutivas. Serão necessários esforços progressivamente crescentes para tornar outras pessoas conscientes da destruição que está ocorrendo. Invade-me a consciência um pesadelo: vejo meus netos obrigados a freqüentar escolas onde o computador é usado intensivamente. Voltarei a essa questão em 11.2.

Televisão, jogo eletrônico e computador – qual a próxima maravilha tecnológica a ser usada para destruir a humanidade? Estou procurando-a para combatê-la também, mas ainda não a encontrei. (Na época em que escrevi esse parágrafo, ainda não havia telefones celulares; certamente eles vieram ajudar a diminuir a privacidade e a liberdade, pois a pessoa que os carrega sempre ligados, é interrompida a qualquer momento. Eu ligo o meu muito raramente usando-o somente em casos de emergência; sempre prefiro ligar para um telefone fixo do que um celular, para não interromper a pessoa em sua atividade. No entanto, na medida em que apenas transmitem a voz, eles não diferem essencialmente de telefones fixos, de modo que por enquanto eu não os classificaria na pergunta do início deste parágrafo.)

11. O que fazer?

Este último capítulo deveria ser lido apenas pelos que se sensibilizaram com meus argumentos e sentem que talvez haja algum fundamento em meu alerta. Sugerirei algumas ações que podem ser realizadas por indivíduos ou por grupos, em meio a alguns argumentos adicionais referentes à liberdade do e no ensino. Não acredito em soluções de massa. Creio que qualquer mudança positiva no mundo deve provir da ação individual, deve levar tempo e partir da liberdade de cada um, isto é, sou contra proibições. Nesse contexto, sou evolucionista, mas não no sentido darwinista, pois, como disse antes, não encaro o ser humano como um ser natural, isto é, um produto simplesmente de forças naturais. (A propósito, em termos do que eu escrevi no item 10.1, note-se que o neodarwinismo está baseado em dois pensamentos mecanicistas: a mutação dos genes, como se um componente tivesse sido trocado ou alterado, e a seleção natural; acontece que a natureza não é um mecanismo, de modo que o darwinismo tem uma falha lógica intrínseca.) Cada indivíduo adulto deve tomar o destino em suas mãos, procurando agir o mais conscientemente possível – o que é uma raridade: para comprovar isso, o leitor poderia fazer uma retrospectiva do dia que passou e verificar quantas vezes parou para pensar que, naquele momento, poderia fazer uma de várias coisas diferentes, e decidir calmamente, conscientemente, qual delas iria realmente executar; muitas vezes, isso simplesmente não aconteceu! Note-se que não estou me referindo a se ser racional no sentido abstrato, significando aquele que se orienta por meras teorias. Muitas vezes devemos seguir nossos sentimentos ou intuições, isto é, não agir devido somente ao que podemos raciocinar. Todos nós podemos fazer alguma coisa.

11.1 Não instalar nem TV nem jogo eletrônico em casa – eles não são necessários. No texto original, também recomendei que se fizesse isso com computadores, mas reconheço que eles tornaram-se muito úteis para comunicação pessoal (e-mail, chat, baratear custos de comunicação por voz) e na aquisições de informações. No entanto, acho que o usuário deve prestar muita atenção em si próprio, e verificar se não se tornou dependente da maquina e a usa exageradamente. Esse seria o caso, por exemplo, se a pessoa não consegue passar um dia sem usá-la. Aliás, minha recomendação é que, na medida das possibilidades se a use apenas em dias alternados.

Para isso, apenas este artigo não basta; deve ser complementado com mais estudo, observação da realidade e meditação sobre os temas que aqui foram simplesemente esboçados. Não se deve ter medo de ser diferente. Ao contrário, deve-se temer ser semelhante aos outros, pois isso pode indicar sacrifício da própria individualidade. Todos temos um Eu superior que nos torna diferentes dos demais. Rudolf Steiner, em um dos seus livros, escreveu uma bela frase: "[...] cada indivíduo humano é uma espécie, ao contrário dos animais, que formam espécies contendo grande número de representantes individuais, como as espécies de leões, de cães, etc. As diferenças essenciais entre animais de mesma espécie devem-se aos ambiente, que condiciona cada espécie de modo ligeiramente diferente. A principal diferença entre dois seres humanos não deveria estar nas características herdades ou condicionadas, mas na manifestação do seu mundo interior, do ‘eu" superior. O mau ensino pode impedir que esse ‘eu’ se manifeste, com trágicas conseqüências não só para o indivíduo mas para a própria hmanidade, pois esta não poderá contar com as contribuições que o indivíduo deveria ter sido capaz de dar"18.

11.2 Escolher para seus filhos uma escola que não use e não pretenda usar computadores no ensino – com exceção dos últimos anos do ensino médio, no ensino de computação, como indiquei antes.

Suponhamos que um pai encontre-se nesta terrível situação: ele é contra o uso de computadores no ensino, mas seus filhos têm de freqüentar, por algum motivo, uma escola que os emprega. Recomendo, neste caso, que se adotem simultaneamente três medidas, para contrabalançar a influência negativa da máquina. Primeiro, a criança precisa receber muito amor, para compensar a frieza e a racionalidade da máquina. Segundo, a criança deve ser exposta a uma atmosfera religiosa, em casa ou na igreja, na sinagoga, mesquita, templo ou comunidade. Não estou falando de seitas fanáticas, mas de ambientes que cultivem a reverência pela parte não-física da natureza e do ser humano. As religiões antigas cumprem satisfatoriamente esse requisito. Note-se que essa é uma recomendação para crianças e jovens, e não para adultos; toda criança tem naturalmente uma atitude de religiosidade – se já não foi deturpada pelos meios eletrônicos. Por último, não menos importante, a criança ou adolescente deve receber uma educação artística intensiva. O melhor seria combinar artes plásticas com teatro, música, poesia e literatura. Vale a pena citar uma observação extraordinária, que um dos maiores cientistas de todos os tempos fez sobre si mesmo. Quando era um jovem estudante, ele admirava todas as manifestações artísticas. Adora tanto a música que uma vez contratou o coral da faculdade para cantar em seu apartamento (não havia música enlatada e nem rádio naqueles tempos graciosos...). No fim da vida, ele escreveu (traduzo de uma biografia em alemão: "Já há muitos anos não tenho mais conseguido tolerar uma linha de poesia. Tentei, há pouco, ler Sheakespeare; achei-o intoleravelmente monótono, de modo que chegou a enojar-me. Perdi quase totalmente o meu amor pela pintura e pela música. [...] Uma espantosa e lamentável perda do sentido estético superior." Segue-se então uma frase incrível, para a qual chamo a especial atenção do leitor, por sua atualidade e ligação com nosso tema: "Meu espírito parece ter-se tornado uma espécie de máquina, que serve para destrinchar leis gerais a partir de coleções de dados."19 O cientista que lamentou ter chegado a tal grau de insensibilidade com relação à arte e atribuiu ao seu trabalho científico intensivo e unilateral a causa desse estado, foi um dos maiores observadores da natureza – portanto, suas observações sobre si mesmo merecem crédito. Ele foi Charles Darwin. Ele também escreveu que, se pudesse começar tudo de novo, leria ao menos um poema todos os dias. A arte é um dos melhores antídotos para uma vida cheia de raciocínio tecnológico ou abstrato unilateral (ver a esse respeito meu ensaio Um antídoto contra o pensamento computacional). Eu mesmo já vivenciei isso pois, sendo flautista amador (cheguei a ser solista de orquestra em minha juventude), pude avaliar até que ponto ter uma atividade artística contínua serviu de alimento à minha alma. Pude vivenciar como essa atividade produziu em mim s emoções intuitivas intensas que estavam completamente ausentes na escola de ensino médio e nos estudos de engenharia eletrônica que fiz no ITA, uma faculdade exclusivamente de tecnologia extremamente exigente na época, e que tinha sido planejada para ser o MIT do Brasil. Tenho certeza de que só não fiquei transtornado psicologicamente graças à minha arte. Farei mais comentários sobre isso no fim deste capítulo.

 

No mundo de hoje não basta atingir o próprio Nirvana, abandonando-se egoisticamente os demais à miséria do mundo. É necessário agir socialmente, lutando contra as diferentes espécies de destruição que no momento atingem todos os seres humanos. Nesse sentido, creio que cada um deveria:

11.3 Combater a moda do computador no ensino, conscientizando outros indivíduos dos perigos que podem advir desse novo modernismo.

11.4 Lutar para que haja total liberdade de ensino, isto é, a pedagogia de cada escola deve ser escolhida pelos mestres e pais dos alunos. Deve haver uma multiplicidade de sistemas pedagógicos para que os pais possam escolher aquele que considerarem melhor para seus filhos. A liberdade de ensino parece-me essencial para o futuro da humanidade e, por isso, vou deter-me nos seus fundamentos. Veremos também como o computador perturba tal liberdade.

 

Após a Primeira Guerra Mundial, Rudolf Steiner entendeu que ficara demonstrada na prática a falência dos sistemas sociais vigentes e a necessidade de grandes mudança para tornar a sociedade mais estável e justa, impedindo nova hecatombe. Ele formulou então a doutrina que denominou de Trimembração (Dreigliederung) do Organismo Social. Um de seus aspectos fundamentais consiste na constatação de que a sociedade deve ser considerada como um organismo (como o uso de "membros" indica), com três membros independentes mas interligados por meio dos indivíduos, que participam, em maior ou menor grau, de cada um dos três. Como sempre, Steiner toma o ser humano como base para exemplificar a interligação de três membros independentes: a cabeça, o tronco e os membros. Cada um tem funções e características específicas, mas depende dos outros. Na sociedade, ele distinguiu os seguintes membros: vida econômica, vida política-jurídica e vida espiritual. (A ordem que escolhi corresponde, no seu significado profundo, aos membros do corpo humano.) Na primeira temos a satisfação de necessidades, caracterizada pela produção, comercialização (distribuição) e o consumo. No âmbito intermediário, temos a região dos contratos, acordos e leis. Na última, temos o exercício de habilidades ou prestação de serviços, como as artes, as ciências, a religião e o ensino, no sentido da atividade do professor. Note-se que, assim, o organismo social reflete os indivíduos que o formam, pois cada ser humano adulto é um ser com necessidades e com habilidades, prestando serviços por meio de seu trabalho, bem como interage com outros indivíduos.

Steiner deu várias características de cada um dos três membros; vejamos as mais fundamentais. A vida econômica existe para satisfazer vários tipos de necessidades do ser humano, incluindo as físicas e culturais, e deve ser regida pelo espírito básico de fraternidade ou solidariedade. Só se deveria produzir aquilo que a sociedade decida que é realmente necessário, e necessidades não deveriam ser impostas, como o faz a propaganda. Por outro lado, como indivíduos, não devemos consumir em demasia, pois talvez estejamos impedindo outrem de consumir o que necessita. A vida político-jurídica refere-se à interação entre as pessoas e existe para dar uma base às interações sociais. Nela, o espírito básico deve ser a igualdade. Todos os cidadãos devem ter direitos e deveres (palavra muito esquecida hoje em dia...) iguais, com respeito às outras pessoas e ao Estado; por exemplo, em um contrato, todas as partes devem entrar em igualdade de condições, sem que uma imponha algo às outras. A vida espiritual refere-se à execução de tarefas, especialmente as profissionais, e deve ter como espírito básico a liberdade. Sem liberdade, a atuação individual é tolhida, e não pode haver ciências, artes, religião e ensino, por parte do professor, sadios. São os ideiais da Revolução Francesa, vindos da antiga Grécia, colocados agora cada um em seu devido lugar. Vou indicar mais uma característica de cada membro do organismo social, a fim de chegar aos pontos relevantes para a educação. Na vida econômica deve haver raciocínio, planejamento; os condutores desse setor devem ser especialistas. Na vida político-jurídica, a interação entre as pessoas é o essencial; as leis e acordos não devem ser fruto dos sentimentos e dos valores, envolvendo planejamento e do cálculo apenas como apoio. Como se pode, por exemplo, provar que é ruim matar uma pessoa? Contribuiria para diminuir a densidade demográfica, como eu já citei em 10.2. Na vida espiritual deve-se oportunidade para os impulsos individuais e coletivos manifestarem-se, o que seria impedido pelo planejamento e pela igualdade. Aliás, esse âmbito baseia-se justamente sobre a desigualdade – uma pessoa produz uma obra de arte ou uma inovação científica por ter uma capacidade diferente de outras; obviamente um professor está à frente de seus alunos devido à desigualdade que existe entre eles.

É interessante examinar os males sociais de nossos tempos sob o prisma da transposição das características básicas de um membro da sociedade para outro. Por exemplo, é claro que o capitalismo significa um setor econômico totalmente livre, produzindo o que ele próprio determina, e impondo à vontade necessidades nos consumidores. Isto é, colocou-se a liberdade no setor errado. O comunismo tem como base o domínio do setor político-jurídico sobre os outros dois, impondo a igualdade onde esta não cabe. Em ambos os casos há interferência no setor espiritual, principalmente no ensino.

Acostumamo-nos a tratar o ensino através do prisma dos outros dois setores – por exemplo, planejando-o e medindo sua eficiência como se faz com uma fábrica (por exemplo, comparando custos com resultados), ou obrigando todo o estudante a aprender exatamente a mesma coisa. Tudo isso por meio dessas aberrações que são as provas e exames, usados também como meios de pressão compensatórios da falta de capacidade dos professores para atrair o interesse dos estudantes pela sua matéria e para manter a disciplina em classe. Isto é, o professor, em lugar de ser um artista em interessar e entusiasmar os alunos, torna-se um feitor forçando-os a trabalhar e comportar-se senão serão castigados.

Concentremo-nos no ensino, enquanto atividade do professor. Como vimos, deve reinar absoluta liberdade nesse setor, como em qualquer outro da vida espiritual, isto é, que envolve o exercício de habilidades. Por exemplo, o professor deve improvisar durante a aula aquilo que for mais adequado aos seus alunos, em situações que são sempre imprevisíveis. Os livros didáticos são abomináveis, pois bitolam a seqüência, a abordagem a e a nomenclatura (na época da revisão deste texto, continua-se a aberração, proveniente da infeliz Matemática Moderna, de determinar o "conjunto verdade" de uma equação, em lugar de suas "raízes" – antes de os alunos terem tido aulas de lógica, o que só alguns terão na faculdade). Ora, o computador também bitola o ensino, pois só pode ser usado dentro dos esquemas dos programas, esses pensamentos bitolados petrificados. Ele não dá margem à improvisação em sentido amplo: o aluno deve amoldar sua criatividade e imaginação a um sistema muito limitado que, como já vimos no cap. 2, é sempre formal e matemático. Assim, podemos dizer que o computador introduz em altos graus o planejamento e a igualdade no ensino, pois a máquina sempre reage exatamente do mesmo jeito, com qualquer usuário.

A liberdade de ensino deveria eliminar qualquer intervenção do Estado ou do poder econômico na educação. Idealmente, as escolas não deveriam buscar o lucro e nem depender financeiramente do Estado, pois estariam sujeitas a influências políticas ou aos caprichos de algum burocrata de escrivaninha que resolvesse arvorar-se em conhecedor da melhor solução para o ensino de todas as crianças e jovens. Endossamos aqui a palavra do saudoso Alexander Bos, do Netherlands Pedagogical Institute (NPI) de Zeist, Holanda, que procurou implementar as idéias de Steiner no campo do social, especialmente em empresas. Bos afirma que do "direito de cada criança ou jovem a ter ensino" passou-se ao "dever de cada criança ou jovem ter o mesmo ensino". É o espírito de igualdade do setor jurídico invadindo a esfera do setor espiritual. Nesse sentido, sou absolutamente contra currículos mínimos, reconhecimento oficial de cursos, regulamentação profissional e outras baboseiras. Isso tudo tende a matar o ensino e não deixa os impulsos locais manifestarem-se adequadamente. Entre parênteses: a criação dos cursos de Tecnólogo em Processamento de Dados, por volta de 1975, ilustra bem uma desastrada interferência do setor público no ensino, por meio da antiga CAPRE.Interferência porque foi quase uma imposição a faculdades e universidades, às quais se acenou com currículo mínimo já aprovado pelo Conselho Federal de Educação, equipamentos (naquela época não havia microcomputadores) e verbas por alguns anos. Desastrada, pois com isso aliciou-se uma geração de jovens que, em grande parte, tinham a capacidade para seguir um curso universitário pleno de alto nível, mas que foram atraídos para o curso de curta duração de tecnólogo, com baixíssimo nível – compare-se o que é ensinado em Matemática nesses cursos com os Bacharelados em Ciência da Compuatação de universidades decentes.

Combati publicamente esses cursos de tecnólogos desde a sua criação; felizmente as boas universidades. Com raríssimas exceções, caíram em si e os extinguiram. Essa geração de formados por cursos de baixo nível perdeu a chance de ter uma ampla e profunda formação básica universitária, trocando seus preciosos anos de estudo superior por trivialidades profissionalizantes.

Tudo isso por interferência do setor político-jurídico no setor espiritual. Como contraste, temos no Brasil os cursos de Bacharelado em Ciência da Computação, que nasceram em varias universidades por iniciativa pessoal e local de professores e pesquisadores na área, em uma demonstração do espírito de liberdade na educação. Cada um desses cursos, com grande sucesso no mercado de trabalho, segue uma linha diferente, caracterizando-se no entanto pelo alto nível, a menos de universidades de segunda a quinta categorias. Eles foram agraciados com a falta de um currículo mínimo oficial e a não-regulamentação das profissões. A regulamentação oficial protege os profissionais incompetentes, pois os competentes não precisam de proteção alguma. Se ela existisse, os cursos de bacharelado perderiam a liberdade tão necessária a uma educação dinâmica e sadia, especialmente numa área em rápida evolução. Para caracterizar esse estado de coisas em nosso pobre país, usa-se a expressão sistema cartorial, que é interessante por mostrar bem a influência de um dos três setores nos outros dois.

Voltando ao tema da liberdade de ensino, um de seus aspectos fundamentais é a possibilidade de os pais escolherem o tipo de pedagogia que desejam para seus filhos. Assim, é essencial lutarmos para que algumas escolas de ensino fundamental e médio não instalem computadores para uso geral no ensino, de modo que existam alternativas para os pais que sabem melhor e são contra o uso dessas máquinas no processo educacional.

11.5 O papel dos profissionais de processamento de dados e dos cientistas da computação parece-me crucial. São eles que vão produzir os programas adequados ao uso do computador no ensino. Quem achasse que essa utilização pode ser maléfica para a humanidade, não deveria – por iniciativa estritamente pessoal – trabalhar nesse tipo de desenvolvimento. É uma questão de autoconsciência e de coerência. Se esses dois fatores fossem determinantes da conduta dos engenheiros e cientistas que trabalham nas indústrias bélicas (estou partindo do princípio de que eles são pacifistas), muitos países deixariam de ser belicistas (esse tópico tinha sido escrito no original referindo-se exclusivamente ao Brasil, mas felizmente no entretempo nosso país deixou de exportar armamentos).

São os profissionais de processamento de dados que sabem (ou deveriam saber) o que é um computador. Portanto, eles devem alertar os leigos, inclusive os professores de ensino fundamental e médio, acerca do mau uso da máquina. Tenho encontrado continuamente profissionais dessa área que me dão razão, pois têm conhecimento do que é aquela máquina; é raro encontrar um professor que concorde comigo. Em minha conceituação, eles também não têm idéia precisa do que deveria ser o desenvolvimento de uma criança ou jovem.

11.6 As pessoas que porventura sensibilizaram-se com os argumentos aqui expostos, ou outros quaisquer apontando na mesma direção, poderiam formar grupos de trabalho. Considero esses grupos como parte fundamental do processo social, pois traduzem a união em torno de ideais comuns. Nem todas as pessoas têm todas as habilidades necessárias para levar a mensagem e conscientizar outras pessoas. Uns escrevem outros falam melhor, outros ainda têm maior capacidade de organização. Alguns estendem de computação, outros de ensino, outros do sistema jurídico. Nos grupos de trabalho, em que cada um coloca livremente suas habilidades a serviço dos objetivos comuns, o resultado é sinergético, maior do que a soma das partes.

11.7 Uma palavra aos jovens que se interessaram por minha exposição e que estão se perguntando o que poderiam fazer para contrabalançar a educação abstrata e unilateral que receberam ou que ainda estão recebendo. Existe um antídoto maravilhoso para isso: a educação artística. Gostaria de enfatizar e detalhar o que afirmei em 11.2. Quando se pratica alguma atividade artística, seja ela pintura, modelagem (escultura), cerâmica, música, teatro, poesia ou literatura, não se lida, em essência, com o pensamento abstrato, apesar de o pensamento estar ativo, mas com sentimentos profundos. Em particular, o espaço de trabalho não é bem definido, o que faz com que os pensamentos deixem de ser precisos e lhes dão maior flexibilidade e vida. Tudo isso pode ser aprendido sozinho, como autodidata, ou tomando aulas. Ao executar uma atividade artística, a pessoa deve sentir o mais profundamente possível as emoções que podem ser extraídas de seu próprio trabalho. Todos podem pintar; não é necessário pintar figurativamente, pois só combinar cores e espalhá-las numa folha de papel já ajuda. Devem-se experimentar diferentes combinações de formas e cores, tentando sentir os seus efeitos; a aquarela oferece possibilidades maravilhosas de fazer mudanças dinâmicas de cores e formas. De fato, parece-me que a pintura com aquarela seja a melhor terapia contra o pensamento computacional. O teatro tem aspectos maravilhosos como antídoto: é uma atividade essencialmente social, contrabalançando a antisocialidade do computador; exige uma sensibilidade social para com os outros atores e o público; qualquer texto pode ser interpretado de infinitas maneiras, como por exemplo amorosamente ou com raiva (o que é denominado de "subtexto"). Quero ressaltar que usei a expressão "atividade artística". Uma outra forma é a contemplação da arte, como por exemplo observar longamente uma obra de arte, ler, ouvir boa música clássica, etc. Tudo isso é muito bom, mas não é o suficiente, especialmente no caso dos discos e o rádio, que transmitem uma música eletronicamente enlatada, sempre exatamente a mesma se se tratar do mesmo disco. A pessoa deve agir, realizar algo. Não se deve usar a desculpa: "Não tenho talento para isso." Toda criança é um artista nato, mas nosso maravilhoso ensino mata-lhe esse talento – com exceção da Pedagogia Waldorf; verifique-se na prática o que ela é, visitando uma escola, para constatar o que significa ter um ensino artístico durante toda a escolaridade. No entanto, estou convencido de que todos, absolutamente todos, podem aprender a tocar um instrumento simples como a flauta-doce, o piano ou o violão e desfrutar profundas emoções. O mesmo acontece com a pintura e as outras artes. No momento da revisão deste artigo, estou praticando, além da música, cerâmica, que comecei há pouco tempo.

12. Conclusões: a nova vida e a destruição

As idéias aqui expostas foram fortemente influenciadas pela visão de mundo de Rudolf Steiner, que em 1912 ele chamou de Antroposofia. Uma das aplicações específicas da Antroposofia, a Pedagogia Waldorf, inspirou a maioria de minhas reflexões sobre a educação e o sistema escolar. (Há outras aplicações dela, como a Medicina Antroposófica, a Pedagogia Curativa, várias formas de terapia (como a Terapia Artística, a Massagem Rítmica, a Quirofonética, etc.), a Agricultura Biodinâmica, a Arquitetura Orgânica, a organização social, e as artes criadas por Steiner, a Euritmia e o Cultivo da Fala. Mas o leitor deve entender que as objeções ao uso do computador no ensino fundamental não dependem da Antroposofia ou da Pedagogia Waldorf. Todos que consideram o ser humano como um ser que transcende a natureza provavelmente chegarão às mesmas conclusões. A Antroposofia oferece uma moderna base conceitual e prática para encarar o ser humano como um todo, sem precondições dogmáticas, místicas, secretas (toda sua obra de 28 livros, e 326 volumes com cerca de 6.000 palestras está publicada, com muitas obras traduzidas para o português), ou sectárias. Tive a graça de conhecê-la e vivenciá-la já nos meus primeiros anos de adulto; no entanto, tenho certeza de que uma pessoa sem preconceitos e com a mentalidade aberta não precisará estudar a Pedadogia Waldorf ou os trabalhos dos seus continuadores, nem visitar uma escola Waldorf (o que recomendo vivamente), para concordar com muitos de meus argumentos. Eles dirigem-se consciência de cada um e são universais.

Como já disse, considero necessário ensinar a o que é um programa de computador (mas não ensinar a programar) e o uso de aplicativos gerais nos últimos anos do ensino médio. Sou contra o uso do computador para ensinar outras matérias em qualquer série; sou contra qualquer tipo de uso que se possa fazer de computadores no ensino fundamental ou, muitíssimo pior ainda, antes dele (como vimos em 5.4, Papert recomenda que crianças comecem a usar o computador aos 4 anos de idade; muitos pais acham muito importante que a criança comece a usá-lo logo que consegue usar um dedinho para apertar uma tecla, talvez antes para ver algo na tela. Tudo isso é uma tragédia). Por isso, parece-me que os esforços para introduzir o computador no ensino tiveram sua ênfase totalmente desviada do que deveria ser. Em vez de usá-lo como um instrumento para ensinar o que ele é, qual sua utilidade e quais os problemas que causa no indivíduo e na sociedade, ele está sendo usado primordialmente para outros propósitos educacionais (e por criança e jovens para brincarem), fora das idades apropriadas.

Gostaria de deixar bem claro que não sou contra a tecnologia, mas contra o mau uso que dela se faz. Nas palavras de Gary Boyd: "[...] encara-se como bom o desenvolvimento que colocou aparelhos domésticos, veículos e roupas feitas à disposição de qualquer um, a preços módico. [...] Infelizmente há uma profunda diferença entre os artigos cuja principal função é o sustento (por exemplo, alimentos, roupas, móveis, etc.) e aqueles cuja função principal é inspirar esperança, como a música, as artes e o ensino. A automatização da indústria automobilística permite eliminar funções subumanas, até então desempenhadas pelos seres humanos. Mas a tentativa de automatizar as atividades artísticas, musicais e pedagógicas significa eliminar a funções que equivalem à quintessência do ser humano."21 Joseph Weizenbaum ressalta: "Tem havido muitos debates sobre ‘computador e mente’. Nossa conclusão é que as questões importantes não são nem tecnológicas e nem matemáticas, mas são éticas. Elas não se resolvem com perguntas que começam com ‘pode’. Os limites da aplicabilidade dos computadores podem ser, em última instância, apenas enunciados em termos de deveres. O discernimento mais elementar que emerge é o seguinte: já que ainda não temos um modo de tornar o computador sábio, não devemos dar a ele tarefas que requeiram sabedoria."8

Boyd empregou uma expressão muito interessante: "inspirar esperança". Essa expressão não abrange tudo o que eu gostaria de caracterizar como função da educação, mas mostra que ela (que demanda sabedoria) deve ser abordada com uma atitude completamente diferente da que é apropriada para encarar a tecnologia em geral (que requer conhecimento tecnológico). Há problemas educacionais graves em todo o mundo; nos países em desenvolvimento, alguns deles são quase insolúveis. Os mais graves, no entanto, não são os problemas tecnológicos, e sim problemas humanos. É urgente mudar a maneira de encarar a educação. É difícil acreditar que o romantismo científico, prevalecente no início do séc. XX, ainda impregne tantas pessoas cultas, fazendo-as acreditar que a ciência vai resolver todos os problemas individuais e sociais. Em, 1976 salientei que os computadores tinham se tornado o instrumento ideal nas mãos dos que fazem da ciência sua doutrina religiosa22. A ciência e a tecnologia não solucionaram os problemas humanos mais profundos. Ouçamos uma voz cheia de sabedoria e de experiência (também com tecnologia!), a voz de E.F. Schumacher, autor de O Negócio é ser Pequeno23. Em sua obra póstuma podemos ler: "Não tenho dúvidas de que a ciência pode resolver qualquer problema individual, desde que esteja claramente definido. Mas, conforme minha experiência, quando a ciência soluciona o problema A, cria toda uma multidão de problemas novos. É notável que hoje em dia haja mais cientistas vivos do que todos os que existiram na história humana anterior, considerados juntos. O que fazem todos eles? Solucionam problemas, com grande eficiência. Os problemas estão acabando? [No original, "are we running out of problems?"] Não. Cada vez aparecem mais. É como um buraco sem fundo. Os problemas crescem mais rápido do que o tempo que se leva para solucioná-los. A esta altura, temos que perguntar: que diabos está acontecendo aqui? No auge do sucesso, com uma competência tecnológica inigualada em toda a história, só se ouve falar em problemas de sobrevivência. Que fizeram nossos antepassados? Eles sobreviveram, obviamente, sem todos esses cientistas. E sem todos esse problemas. Temos então que nos perguntar o que deu errado no desenvolvimento da tecnologia, a melhor coisa que conseguimos para nossa vida material."24 Sim, vida material, embora a tecnologia esteja cada vez mais presente em atividades espirituais, como a educação.

Que diria Schumacher ele se tivesse vivido para presenciar as tragédias do efeito estufa global, tão na moda na época da revisão deste artigo? Já está mais do que na hora de se repensar os rumos da ciência e de sua filha predileta, a tecnologia.

Espero ter deixado clara a destruição que o computador pode operar no ensino. E a nova vida? Parece-me que o computador pode vir a significar um novo enfoque no ensino da tecnologia. Se introduzido no ensino da maneira indicada, ele permite que se produza uma conscientização acerca de suas características, usos, potencialidades, bem como seus efeitos negativos, sociais e individuais. Assim, o computador oferece uma oportunidade única para uma nova relação com as tecnologias. Por ser o "rei" das máquinas e por poder ser totalmente compreendido (e também dominado) do ponto de vista lógico, permite criar um senso crítico em face de todas elas.

Uma conscientização geral acerca dos benefícios e males da tecnologia poderá significar uma nova vida para a humanidade, já que a vida presente se pauta pelo domínio das máquinas sobre o ser humano e pelas conseqüências disso. O computador usado para ensinar o que é um computador, seus usos e problemas que causa no indivíduo e na sociedade poderá talvez servir para a redenção das forças que permeiam as máquinas e o materialismo, conferindo à tecnologia sua grande missão histórica: permitir que o ser humano se torne um ser livre em relação às forças da natureza que ele tem dentro de si e que o impelem do exterior (a esse respeito, ver meu ensaio "A missão da tecnologia", em inglês).

Penso que a sociedade, por si mesma e naturalmente, não conseguirá trilhar o caminho certo, num processo de correção auto-regulador. O tempo em que éramos guiados pela divindade ou pelas tradições já passou. Como se compõe de um conjunto de indivíduos, a sociedade não é um ser natural. Por isso, não se pode cruzar os braços e esperar as coisas melhorarem; elas não vão melhorar sem nossa ação consciente, isto é, não-natural. É necessário lutar, obviamente sem interferir na liberdade das outras pessoas.

Referências

(Algumas datas de publicação e número de edição foram atualizadas.)

[1] Setzer, V.W. Manifesto contra o uso de computadores no ensino de primeiro grau. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1984.

[2] Steiner, R. A Arte da Educação Baseada na Compreensão do Ser Humano (7conferências proferidas em Torquay, 12-20/8/1924, GA [Edição completa] 311) Trad. R. Nobiling. São Paulo: Associação Pedagógica Rudolf Steiner, 1983.

[3] Spock, M. Teaching as a Lively Art. Spring Valley: The Anthroposophic Press, 1978.

[4] Steiner, R. O Estudo Geral do Homem, uma Base da Pedadogia (14 conferências proferidas em Stuttgart, 21/8-5/9/1919, GA 293). Trad. R. Lanz e J. Cardoso. 3a ed. São Paulo: Ed. Anroposófica, 2003.

[5] Education Computer News. Alexandria, VA: Capitol Publications, V. 1, 1984.

[6] Riding, R.J. Computers in the Primary School – A Practical Guide for Teachers. Somerset: Open Books Publishing, 1984.

[7] Papert, S. LOGO: Computadores e Educação. Trad. J.A. Valente et al. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1985.

[8] Weizenbaum, J. Computer Power and Human Reason – From Judgement to Calculation. San Francisco: W.H. Freeman, 1976.

[9] Kuelewind, G, Von Normalen zum Gesunden – Wege zur Befreiung des erkanten Bewwustseins [Do normal para o sudável – caminhos para a libertação da consciência congnitiva]. Stuttgart: Verlag Freies Geistesleben, 1983.

[10] Koestler, A. Os Sonâmbulos – História das Idéias do Homem sobre o Universo. Trad. A. Denis. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1961.

[11] Tipler, F.J. Extraterrestrial intelligent beings do not exist. Physics Today, 34, 4, april 1981, pp. 9, 70, 71.

[12] Barrow, J.D., F.J. Tipler e J.A. Wheeler. The Anthropic Cosmological Principle. Oxford: Oxford University Press, 1986.

[13] Krugman, H.E. Brain wave measurements of media involvement. Journal of Advertising Research, 11, 1, Feb. 1971, pp. 3-9.

[14] Emery, F. e M. Emery. A Choice of Futures: to Enlighten or to Inform? Leiden: H.E. Stenfert Kroese, 1976.

[15] Mander, J. Four Arguments for the Elimination of Television. New York: The Viking Press, 1977.

[16] Winn, M. The Plug-in Drug. New York: The Viking Press, 1977.

[17] Steiner, R. A Filosofia da Liberdade (GA 4). Trad. M. Veiga. São Paulo: Ed. Antroposófica, 2000.

[18] Steiner, R. Teosofia (GA 9). Trad. D.B. Brito. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1983.

[19] Hemleben, J. Darwin. Reineck bei Hamburg: Rowolt Taschenbuch Verlag, 1968.

[20] Steiner, R. O Futuro Social (6 conferências proferidas em Zürich, 24-30/10/1919, GA 332a). São Paulo: Ed. Antroposófica, 1986.

[21] Boyd, G. Education and miseducation by computer. In: Megarry, J. e al. (eds.). World Yearbook of Education 1892/83 – Computers and Education. New York: Nichols Publishing Co., 1983 e London: Kogan Page Ltd., 1984, pp. 50-54.

[22] Setzer, V.W. O computador como instrumento do cientificismo. Anais do I Simpósio Anual da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. São Paulo, 1976, pp. 68-88.

[23] Schumacher, E.F. O Negócio é Ser Pequeno. Trad. O.A. Velho. São Paulo: Ed. Zahar, 1981.

[24] Schumacher, E.F. Good Work. New York: Harper Colophon Books, 1979.

[25] Kline, M. O Fracasso da Matemática Moderna. Trad. L.G. Carvalho. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1976.

Leituras complementares

Durante palestras feitas por mim, são constantes os pedidos de bibliografia sobre a Pedagogia Waldorf. As obras abaixo foram selecionadas por terem sido editadas em português. Apesar de não terem sido mencionadas no texto, são recomendadas como leitura complementar sobre assuntos que foram aqui abordados. Em particular, o livro do Dr. Rudolf Lanz deveria ser estudado cuidadosamente.

Hemleben, J. Rudolf Steiner. Trad. H. Wilda. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1984.

Heydebrand, C.V. A Natureza Anímica da Criança. Trad. H. Wilda. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1986.

Kugelgen, H.V. A Educação Waldorf: Aspectos da Prátia Pedagógica (conferências proferidas no México, 20/7-12/8/1960). Trad. A. Grandisoli. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1984.

Lanz, R. A Pedagogia Waldorf – Caminho para um Ensino mais Humano. 8a ed. São Paulo: Ed. Antroposófica, 2003.

Steiner, R. O Conhecimento do Homem como Fundamento do Ensino (8 conferências proferidas em Stuttgart, 12-19/6/1921, GA 302). Trad. R. Nobiling. São Paulo: Associação Pedagógica Rudolf Steiner, 1980.

Steiner, R. Educação na Puberdade (conferência proferida em Stuttgart, 21/6/1922, in GA 302a). Trad. R. Lanz. São Paulo: Associação Pedagógica Rudolf Steiner, 1983.

Steiner, R. Causas Espirituais do Conflito entre as Gerações (Curso Pedagógico para jovens - 13 conferências proferidas em Stuttgat, 3-5/10/1922, GA 217). São Paulo: Ed. Antroposófica, 1985.

Steiner, R. A Educação da Criança Segundo a Ciência Espiritual (in GA 34). Trad. R. Lanz. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1987.