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Re: Palestra do Castells (longo!)



Prezado Prof. Setzer,

Suas considerações sobre a conferência do Castells são extremamente
interessantes e pertinentes, segundo penso. Sou grato pela verdadeira aula
com que nos brindou, pela percuciência e pelo equilíbrio nas agudas
considerações. O prezado mestre fez-me lembrar de um poeminha do Millor
Fernandes:
"Tudo aquilo que eu digo
Teria mais solidez
Se em vez de carioquinha
Eu fosse um velho chinês.!"

Pois é, mestre. Não é de hoje que suas mensagens, em garrafas transparentes,

são jogadas ao mar.
Parabéns.

Nílson
FEUSP

Valdemar W. Setzer escreveu:

> Oi a todo(a)s,
>
> AM disse em mail para o g-mac (ou foi para mim?) que gostaria de ver
> minhas impressões sobre as palestras do Castells e do De Masi. Com isso,
> não posso me furtar de escrever algo. Aproveito para enviar para a lista
> edic. É preciso ficar bem claro que essas impressões baseiam-se
> exclusivamente nas respectivas palestras. Só poderei citar e comentar
> algumas frases pinçadas de minhas notas. Comecemos pelo Castells.
>
> A palestra dele foi de uma densidade exagerada. Tentei tomar nota do que
> ele dizia, mas como ele praticamente nunca repetia nada, se eu perdia
> uma frase não conseguia refazer seu conteúdo. E certas idéias estavam
> contidas em uma única frase. Até parecia que ele estava falando por
> obrigação, sem se preocupar se a audiência conseguia seguir os pontos
> que expunha.
>
> "A revolução tecnológica não determina a sociedade, ela _é_ a
> sociedade." Não estou totalmente de acordo, pois não se pergunta à
> sociedade se ela está interessada em uma nova tecnologia, e muito menos
> se apresentam a ela os efeitos positivos e negativos da novidade, para
> que ela possa decidir se a quer ou não. O que acontece hoje em dia é de
> um lado o impingir de produtos, convencendo-se o consumidor através de
> propaganda que ele deve comprar o que não precisa por um preço mais
> caro. Em segundo lugar, existe uma obsolescência forçada. Produtos que
> poderiam durar mais são substituídos por novos devido a custos de
> manutenção ou obsolescência forçada (não fazem tudo o que os novos
> produtos fazem). Na informática, provavelmente há um acordo entre Intel
> e Microsoft, de modo que esta esbanja mais recursos em cada nova versão
> do soft para que a primeira possa vender processadores essenciais para
> processar o excesso de recursos requeridos.
>
> Estou parcialmente de acordo, pois é preciso ter um fascínio pela
> tecnologia (que os europeus em geral têm relativamente pouco - não se vê
> por lá outdoors com endereços da www como aqui e nos EEUU) para embarcar
> nela com tanto fanatismo e achar que ela vai trazer a felicidade geral.
>
> "Temos uma nova economia, fundamentada em 3 aspectos: economia
> informacional, globalizada e em redes."
>
> Acho muito curioso essa história de economia informacional. Daqui a
> pouco seremos obrigados a nos alimentar de bits e bytes... A China está
> em todas não com informação, e não com invenções (que ele disse ser a
> grande fonte de renda de países avançados), mas com produtos em sua
> maior parte não-informacionais.
>
> Ninguém - nem ele - está dizendo que a globalização da produção é uma
> deturpação da positiva universalização cultural. Em lugar de atender a
> necessidades sociais ela atende à maximização dos lucros. E,
> contrariamente a Adam Smith, esse egoísmo vai levando a mais miséria (a
> "mão invisível" está totalmente invisível mesmo...).
>
> Essa história de redes é uma realidade. Mas é de informações (fora as
> das drogas). Ninguém come informações. Há redes de bolsas de valores,
> mas novamente não se trata de produção.
>
> "Não houve aumento na produtividade com a informatização e automação
> pois ainda não houve tempo para isso e não houve organização das forças
> de trabalho. Não sabemos por que as pessoas trabalham." Ele citou que o
> aumento de produtividade nos EEUU foi o dobro (4%) do que no período
> anterior (um ano?).
>
> Só que não adianta examinar um só país (ele também citou o Japão). Vejam
> a concentração de novidades tecnológicas vindas dos EEUU. Obviamente é
> preciso um monte de gente para criá-las e produzi-las. Justamente devido
> à globalização, é necessário examinar vários países para se chegar à
> conclusão de que a automação acabou produzindo mais ou menos empregos.
> Mas, digamos que os tenha produzido. Certamente muita gente teve que
> mudar de profissão (os engenheiros daqui que estão vendendo cachorro
> quente, por exemplo). Qual o custo social disso, por exemplo em termos
> psicológicos, e as depressões e doenças daí advindas? Economistas não se
> interessam por esse aspecto...
>
> "As redes são flexíveis, mas têm o inconveniente de concentrar
> recursos." Redes flexíveis são só as de informação... Uma rede de
> produção leva muitos meses para ser alterada.
>
> "Na arquitetura da economia global gera-se emprego qualificado e se
> destrói emprego desqualificado." Conversei com o motorista Amauri da
> Fundação Anchieta, que veio me pegar para levar à transmissão do Opinião
> Nacional de 6a. Feira. Ele mora em Perus. Perguntei se há muito
> desemprego por lá. Ponha muito nisso. Perguntei se alguém estava
> passando fome. Ninguém está passando fome, pois sempre há alguém
> empregado em cada família, e além disso todos estão se virando com
> bicos. Eu também estou fazendo vários bicos, entre eles um (na PROMON)
> em área sobre a qual não entendia nada antes de começar há alguns meses.
> Quem sabe vai sobreviver que for capaz de improvisar rapidamente vários
> bicos diferentes??? Aliás, o Amauri tem computador (a filha de 16 anos
> usa para trabalhos da escola) mas não está ligado à Internet. A esposa é
> técnica de laboratório de análises clínicas e está fazendo Biologia
> noturno numa faculdade particular de um nome que eu nunca tinha ouvido,
> para ganhar mais. Eles têm um dormitório só, de modo que a filha dorme
> atrás do armário. Não há mutirões e as famílias não se ajudam mais para
> ele construir mais um cômodo.
>
> "Hoje em dia o trabalhador tem que ser auto-programável, para mudar com
> as mudanças do ambiente. A aprendizagem tradicional (saber manejar uma
> máquina) não vale nada." Ótimo, o ensino tem que ser básico e não
> profissionalizante.
>
> "Há uma explosão da desigualdade social e da pobreza. 40% da população
> mundial sobrevive com menos do que US$2 por dia." Já está na hora de
> repensarmos toda a sociedade. O Amauri disse que vai haver uma revolução
> social aqui, pois vai chegar um ponto em que vai estourar. O campo já
> está estourando.
>
> "O meio que tem mais crédito é a TV, pois se acredita no que se vê."
> Acho que não é crença, é condicionamento subliminar.
>
> "Os meios de comunicação não determinam a política." Um querido amigo
> americano, de mais de 80 anos, ex-professor de matemática, escreveu-me
> que os meios de comunicação americanos estão dominados pela direita
> radical (Murdoch, Moon, - sic - etc.). Ele diz que há lá tão pouca
> liberdade de imprensa quanto na antiga União Soviética. Papagaio, não
> pensei que chegasse a tanto. Mas procurem algum artigo na Veja, cujos
> repórteres são independentes da diretoria financeira, que seja contra a
> opinião do Civitta (que, aliás, é americano). Ou no Estadão algo que
> seja contrário à visão dos Mesquita. (Bom, até que eles se dão ao luxo
> de deixar aparecer algumas opiniões esquerdistas de articulistas - não
> de repórteres - para dar a impressão de liberdade de opinião.)
>
> Ele mesmo formulou um aspecto interessante: os meios de comunicação são
> tão importantes que estamos na "política dos escândalos" (feitos pelos
> meios de comunicação, uai!). Nos países anglo-saxões são os escândalos
> sexuais, nos latinos são os financeiros, pois sabemos ser mais discretos
> na área mais baixa (do corpo).
>
> "As enquetes mostram uma crise de credibilidade - o prestígio dos
> políticos vem em último lugar." Vejam só como o Brasil foi avançado há
> muitos anos: de há muito não acreditamos nos políticos. (Mmmm, todas a
> camadas sócio-culturais? Talvez...)
>
> "O tempo está se convertendo em tempo a-temporal, devido à sua
> compressão e à ruptura de seqüências." Óbvio ululante. Um dos resultados
> é que estão todos pirando...
>
> "Teoricamente, houve o aparecimento do _espaço dos fluxos_: meios
> financeiros, comunicação, Internet. Não existem cidades globais - as
> grandes cidades são altamente localizadas em bairros ou regiões." Sim,
> pois não dá mais para se locomover nelas...
>
> "Está se produzindo uma segregação social: há concentração de riqueza e
> de pobreza em espaços. Os ricos estão construindo guetos de ricos, estão
> saindo das cidades." Qualquer um vê isso, principalmente entre nós. Mas
> quem foi para Alphaville estrepou-se pois não consegue mais nem sair nem
> entrar devido aos congestionamentos da C.Branco...
>
> "A religião é o movimento mundial mais importante." Reação contra
> excesso de materialismo? Pena que tanta gente está embarcando em um
> espiritualismo totalmente falso (no fundo trata-se de um materialismo
> lascado). De qualquer modo, o ensino essencialmente científico e
> tecnológico está dando uma reação contrária à esperada...
>
> "O Estado está se reorganizando: trata de reconstruir a legitimidade com
> descentralização. O estado-nação passa a ser um nó dessa rede. É mais
> eficaz como gestor, mas leva a uma crise de legitimidade." Interessante,
> antigamente a tendência dos Estados era serem unitários... De qualquer
> modo, a mistura de política com interesses econômicos continua levando
> às aberrações de sempre, vejam-se as Regionais. Enquanto existir essa
> aberração vai continuar destruindo a sociedade.
>
> Durante as perguntas, ele disse algo interessante: "A competitividade
> sem integração humana é auto-destrutiva." O que será que ele quis dizer
> com isso? Deve haver competitividade entre grupos integrados? Ou
> integrar os competidores? Para mim, o que precisa é acabar com a
> competitividade, pois ela é anti-social.
>
> E por falar em perguntas, eu fiz as primeiras, mas antes fiz uma
> observação: que a palestra dele tinha sido um diagnóstico, e que
> esperaria uma outra palestra pelas soluções que ele propõe. Senti um
> frêmito na platéia quando fiz essa observação. Pois o interessante é que
> ele ficou meio bravo, disse que não era diagnóstico, mas sim análise
> (acho que ele identificou "diagnóstico" com doença - mas ele mesmo disse
> no início que a sociedade estava em crise). Mas confirmou totalmente que
> não tinha dado nenhuma solução. Como intelectual, ele acha que deve
> apenas expor o que observa, e associar observações e descrições. Os
> manifestos de intelectuais franceses são ridículos.
>
> Aí vem minha observação mais interessante sobre a palestra: achei
> fantástica a postura dele. Se tivesse feito uma palestra sobre
> Matemática, eu compreenderia que ele tivesse que ser puramente
> intelectual, transmitindo objetivamente observações (no caso dela, do
> mundo das idéias abstratas) e suas associações. Mas de um sociólogo eu
> esperava outra atitude (que foi 100% o caso do De Masi, que ficará para
> outra ocasião). Não fiquei sabendo quem é Castells como pessoa humana,
> pois não ouvi suas opiniões, isto é, se gostava ou não do que tinha
> observado e estava descrevendo, e muito menos quais soluções ele propõe.
> Essas duas é que são subjetivas e caracterizam a individualidade. As
> observações que ele transmitiu foram super-interessantes, mas ficaram no
> intelecto. O fruto do intelecto é universal e pode ser repartido com
> qualquer um (se bem que muito poucos conseguem observar e descrever como
> ele, certamente). Por ser universal não caracteriza o indivíduo - a
> menos de sua capacidade intelectual. Em outras palavras, tivemos a
> palestra de uma mente - não, de um cérebro - ambulante, sem nada por
> baixo. Achei fantástico estar vendo, em um sociólogo, um legítimo
> representante da observação e descrição científicas frias e lógicas.
> Aquele que poderia dizer a partir de uma observação correta e de um
> raciocínio sem coração: temos excesso de população no mundo, de modo que
> vamos deixar que uns matem os outros para diminuí-la. Desculpem, ele não
> chegou a tanto, pois aí nessa frase há uma pelo menos uma solução para
> um problema. Ele só expôs os problemas - sem mesmo chamá-los como tais.
> Para uma pessoa assim, tanto faz se a audiência é capaz de captar tudo
> ou muito pouco do que ela expõe.
>
> Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa, Val.
> --
> Valdemar W. Setzer - Dept. of Computer Science, University of São Paulo,
> Brazil      vwsetzer@ime.usp.br     http://www.ime.usp.br/~vwsetzer