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Resumo da palestra do Lessig feita em São Paulo, em 07nov00



O resumo a seguir foi feito pelo Érico Guizzo e complementado por mim
mesmo. Obrigado, Érico, é um belo trabalho!

Este resumo dá uma idéia muito boa da fala do Lessig aqui em São
Paulo, na semana passada.

As idéias do Lessig são muito ricas, muito provocativas e muito profundas.
Gostaria de encorajar uma discussão destas idéias, incluindo também aquelas
do livro dele e aquelas expressas nos seus trabalhos já
comentados. Esta lista é um local ótimo para tal discussão.

Abraços,

Imre Simon


- ---
Palestra de Lawrence Lessig
1a Conferência Internacional de
Direito da Internet e da Informática
São Paulo
7/11/2000

1. Estamos vivendo uma explosão de inovação, de invenção, da
   criatividade, do comércio como nunca foi visto antes. Contudo, não
   sabemos o porquê nem o que inspira essa "mágica". A Internet trará
   novas formas de se fazer negócios e isso vai incomodar aqueles que
   têm o poder, que têm o controle hoje. Chamemos essas forças de
   "Dark Forces".

2. Sabemos que essas forças irão responder. Elas irão reagir de duas
   formas. Primeiro reagirão de formas conhecidas: tentarão garantir
   seus interesses canalizando as mudanças através da
   legislação. Pedirão aos legisladores para desacelerar as mudanças e
   também tentarão proteger o velho do novo. Isso já está
   acontecendo. Mas as "Dark Forces" também reagirão de uma forma mais
   obscura para a maioria das pessoas, de uma forma que pode
   representar uma ameaça para o futuro. Vou falar principalmente
   desta segunda reação, mostrando como alterações na arquitetura de
   um sistema podem afetar as suas características básicas.

2.1 O ciberespaço tem uma constituição. É o código-fonte, o software,
    o hardware, a arquitetura da Internet. As regras estão inseridas
    no software, elas definem o espaço, incorporam valores, regulam o
    comportamento, as normas sociais.

    Mas o fato de a arquitetura regular o comportamento não é novo:

[Os exemplos abaixo são tirados do artigo Cyberspace's Constitution do
Lessig, disonível no sítio dele em Harvard. O Capítulo 7 do livro dele
contém outros exemplos também.[is]]
   
a) David Hackett Fisher descreveu como os fundadores de New England
   planejaram as cidades que fundaram de modo a garantir que a relação
   entre os prédios e com a praça da cidade assegurasse que o
   comportamento na cidade fosse adequadamente restrita e regulamentada.

b) Jeremy Bentham propôs uma arquitetura para prisões que ficou
   conhecida como o panóptico (pan=tudo, óptico=ver) de Bentham. Era
   uma prisão em que as celas ficavam dispostas de forma circular
   havendo uma torre no centro, de onde se podia ver todos os presos.

c) Napoleão III reconstruiu Paris de modo que as avenidas sejam muito
   largas para a época. Isto dificultaria o bloqueio das avenidas e
   dificultava a atividade revolucionária. De fato, esta arquitetura,
   devida a Haussmann, garante até hoje que Paris seja uma cidade
   moderna, apesar de ter sido construída 150 anos atrás.

d) As pontes em Long Island foram construídas por Robert Moses numa
   época em que o racismo ainda vigorava nos Estados Unidos. Dessa
   forma, as pistas inferiores das pontes eram baixas de forma que só
   podiam trafegar carros, mas não ônibus. Com isto preservou a
   exclusividade de uso do espaço público.

2.2 O espaço, portanto, pode regular o comportamento. E no ciberespaço
    isso é ainda mais forte.

    O ciberespaço é de fato um lugar, as pessoas vivem lá, não apenas
   sozinhos, mas em grupos. Depois essas pessoas se desconectam e
   estão apenas "aqui". Os efeitos de viver "lá" serão sentidos
   "aqui". Você poderá ser influenciado por comportamentos e culturas
   não mais restritas ao local físico onde vive, a sua comunidade, mas
   será influenciado de forma muito mais abrangente.

    Por exemplo, na vida real é mais fácil manter as crianças longe da
   pornografia. No mundo real é difícil para uma criança fingir que é
   um adulto. No ciberespaço é diferente. Um indivíduo, na rede, não
   pode se "auto-autenticar" como no mundo real. Você é apenas mais
   um, o próximo. Os sites eróticos não podem distinguir crianças de
   adultos e impedi-las de acessar pornografia. Um site é apenas um
   servidor, uma página que é acessada com um navegador, que troca
   informações com o servidor. O usuário não tem conhecimento dessa
   negociação. O servidor sabe bastante coisa sobre o cliente, mas
   essa informação é transparente para o usuário. E isso faz parte da
   arquitetura, é uma característica da arquitetura, e tem
   conseqüências para a vida real.

2.3 A experiência, portanto, está atrelada ao código, o código define
    as liberdades, os controles, tudo depende dele. Mas o fato
    importante é que o código pode ser *modificado*, alterado, sem que
   isto seja notado pelos usuários.

   Por exemplo, num certo sistema online os usuários passaram a pagar
   uma certa taxa se usassem os serviços de e-mail e bate-papo além de
   um certo limite. Isso desagradou a muitos usuários, que começaram a
   reclamar das taxas. O sistema online então alertou esses usuários
   de que não iria admitir tais contestações, o que só agravou a
   situação. Os usuários sentiram sua liberdade de expressão regulada
   e começaram a reclamar ainda mais. O sistema online acabou
   expulsando alguns usuários, mas a situação só piorou. Usando as
   salas de bate-papo, um grande número de usuário se amotinou e
   conseguiu reverter a situação contra o sistema online, abolindo as
   taxas impostas.

    Mas tente começar uma revolução nas salas de bate-papo da America
   Online, o maior provedor do mundo com mais de 25 milhões de
   usuários, mas cujas salas de bate-papo ficam num canto escondido do
   site e só permitem 23 usuário por vez. Você será considerado um
   louco. Então não é por que a America Online tenha qualquer
   restrição quanto a discussões políticas que você não conseguirá
   organizar uma revolução. A limitação deve-se apenas à arquitetura
   do sistema. Não há espaço público. E por isso a America Online não
   sofre dos mesmos problemas do primeiro sistema online.

3. O futuro da regulação, portanto, será a história de como a
   arquitetura irá mudar. A liberdade estava antes protegida na
   arquitetura liberal da Internet, mas agora está ameaçada. É
   necessária uma contra-revolução contra as forças que querem
   proteger o velho do novo e impedir a inovação. Essas forças já
   estão agindo. Posso citar três exemplos de como essas Dark Forces
   estão se mobilizando e o que pretendem.

Elas querem:

i) controlar a Rede;

ii) controlar a invenção e a inovação através do uso da Rede;

iii) controlar o espectro.

4. Vou explicar melhor cada uma delas:

4.1 Na década de 60, Paul Baran, da Rand Corporation, desenvolveu a
    pedido do Departamento de Defesa (DoD), uma arquitetura de rede
    muito parecida com o que é a Internet hoje. O DoD chamou a AT&T
    para avaliar e possivelmente construir a nova rede. Mas a AT&T
    desaprovou o projeto e disse que tal arquitetura de rede nunca
    funcionaria. Não por acaso, a AT&T detinha o monopólio da
    telefonia na época. Esse monopólido dava à empresa total controle
    sobre a arquitetura do sistema telefônico e isso impedia a
    inovação, o desenvolvimento de outras arquiteturas. Idéias e
    propostas que não fossem condizentes com os interesses da AT&T
    seriam coibidas e eliminadas como uma bola de neve no inferno. Só
    depois que a AT&T foi quebrada em 1984 é que novos modelos puderam
    ser propostos e a Internet se tornou realidade.
   
    Graças, principalmente, ao trabalho de David [???], Dave Clark e
    [???], a Rede foi concebida com uma arquitetura simples,
    estúpida. A Internet não discrimina os dados que trafegam através
    dela, ela processa os pacotes cegamente. Essa estrutura encoraja a
    inovação, o desenvolvimento de novos programas que façam uso dessa
    arquitetura, mesmo que esses novos programas ameacem aqueles que
    já são amplamente utilizados, as aplicações dominantes. O que
    importa, portanto, é se o mercado, se os usuários demandam por
    aquela aplicação. Essa é a diferença de princípios entre um
    ambiente onde domina uma força centralizadora e um ambiente onde
    inexistem tais forças. Nesses últimos, o poder pode ser
    questionado sem conseqüências ameaçadoras. A inovação pode ser
    bem-sucedida quando aparece num ambiente desse tipo e há demanda
    por parte do mercado. Qualquer inovação pode ser facilmente
    testada neste ambiente, a rede roda o quer que seja. A decisão da
    aceitação ou não da inovação cabe ao mercado e à sociedade, neste
    caso. Mas quando a Rede passa a ter donos, o que ocorre com a
    mudança para o cabo ou para o ambiente sem fio, a história
    muda. Os donos das redes terão controle sobre o conteúdo, sobre o
    que é permitido, sobre que tipo de negócio é aceito. A Internet em
    banda larga vai contra o princípio fundamental da arquitetura
    simples e estúpida e a inovação poderá ser impedida. Podemos ver
    um exemplo de como isso já está acontecendo se observarmos como a
    AT&T está comprando agressivamente os provedores de Internet a
    cabo. Ela quer transformar o acesso à Internet em um serviço de
    cabo.

[ O Lessig fala cada vez mais sobre os princípios básicos da
arquitetura da rede Internet. Ele refere-se aos trabalhos de Paul
Baran, Jerome Saltzer, David Reed, Dave Clark, John Postel. A melhor
fonte que encontrei sobre as posições que ele defende está no seu
artigo "Open Code and Open Societies: Values if Internet Governance"
que contém também as referências bibliográficas. Este trabalho pode
ser lido na home page de Lessig. O seu parecer sobre o Napster
(disponível na página do Napster) contém também argumentos importantes
nesta direção. Veja também <web.mit.edu/Saltzer/www/publications>
[is]]

4.2 Sobre o controle da invenção, há a questão das patentes. As
    patentes são uma forma de regulação, uma forma de monopólio
    concedido pelo governo. As patentes impõem custos para outros
    inventores e para os consumidores. Podem também prejudicar outros
    inovadores. Elas não servem, portanto, a nenhum propósito comum,
    público. Não é possível confiar nas organizações que emitem as
    patentes. Nos últimos anos houve um aumento desordenado do número
    de patentes concedidas nos Estados Unidos. O maior aumento
    refere-se a patentes de software e de modelos de negócios. A
    qualidade de serviço das agências que controlam as patentes é
    muito ruim. O serviço é feito por empregados sobrecarregados e mal
    pagos. E não dá para entender como o governo dos Estados Unidos
    permitiu isso, essa explosão na concessão desordenada de
    patentes. Sem ter qualquer idéia mais precisa se eles fazem
    qualquer bem, para que finalidade realmente servem. Eu sou
    americano e eu não tenho nenhuma pista de porque eles fizeram
    isto. 

    O atual sistema visa a transferência da invenção e da inovação
    para as grandes empresas americanas. Seu efeito será a proteção
    das grandes empresas americanas. Fazer uso do sistema de patentes
    impõe custos, altos custos. É preciso fazer buscas de patentes
    anteriores, é preciso ter acesso a muitos advogados. As pequenas
    empresas que são e sempre foram os celeiros da invenção não
    conseguem arcar com os custos envolvidos. As empresas que não são
    americanas também ficam prejudicadas pelo sistema de patentes dos
    EUA. Então o sistema atual não serve para proteger nem as pequenas
    companhias nem aquelas que não são americanas.

4.3 O terceiro ponto é quanto ao controle do espectro. As grandes
    empresas querem ter o controle do espectro. Querem convencer a
    opinião pública de que é necessário que o governo leiloe o
    espectro a fim de garantir um bom uso do mesmo. Mas a concessão de
    uso do espectro pelo governo não é a única nem a melhor forma de
    se fazer uso do espectro. A concessão por parte do governo obedece
    a interesses políticos e não se deve permitir que o mercado se
    aproprie do espectro. Muita gente pensa que o espectro é como uma
    estrada, com diversas vias nas quais trafegam os veículos. As vias
    devem ser administradas por companhias que garantam o uso adequado
    de toda a estrada e que assegurem que os carros não venham a
    colidir. Mas esse modelo é falso: o espectro não é como um
    estrada. Ele pode ser compartilhado e não precisa ser
    administrado, controlado, pelo governo ou pelo mercado, mas pela
    *tecnologia*. Assim como a tecnologia que constitui a Internet
    hoje. Devemos lutar para que esse modelo vigore, devemos combater
    esse discurso de que o espectro deve ser privatizado. Quanto mais
    diverso o uso, os recursos, o meio comum e compartilhado, mais
    assegurada está a inovação. Caso contrário, a inovação fica
    ameaçada, o velho é protegido do novo e de novos usos.

5. Portanto, as "Dark Forces" estão tentando modificar a arquitetura, tanto legal
   quanto tecnologicamente. Os poderosos de hoje estão se protegendo
   dos inovadores de amanhã. E ninguém está tomando medidas para
   proteger a invenção. Devemos então resistir, adotar atitudes
   céticas diante do governo dos Estados Unidos. Eu proponho quatro
   medidas de resistência:

a) Devemos entender e defender o ambiente criado pela Internet e que
   criou a Internet. Este é um ambiente que assegura, que sustenta, a
   inovação. Devemos lutar pela manutenção da filosofia "end-to-end"
   que advoga a simplicidade no centro da rede. Não devemos permitir a
   apropriação da infra-estrutura da Rede, não devemos aceitar que
   indivíduos se apoderem da Rede.

b) Devemos estender esse ambiente a todo contexto em que for
   tecnologicamente possível. Em particular ao ambiente sem
   fio. Devemos defender a diversidade, a multiplicidade, a varidade e
   a quantidade.

c) Devemos ser céticos quanto a regulação. Não devemos, porém, opor-se
   universalmente à regulação. Alguma regulação certamente
   é necessária, mas não sabemos até que ponto ir. As pressões para
   que regulações sejam impostas vêm daqueles que não podem competir
   com o novo. As "Dark Forces" querem ser protegidas da inovação pela
   legislação. Devemos resistir isto!

d) Devemos resistir contra o extremismo do modelo de propriedade
   intelectual proposto/imposto pelos Estados Unidos e pela
   Organização Mundial de Propriedade Intelectual. Não devemos aceitar
   que exista apenas um modelo de propriedade intelectual proposto por
   essa organização, que protege os direitos daquilo que já existe,
   mas não protege a inovação.

6. Por fim, digo que sou um pessimista. É preciso proteger a Internet
   antes que ela seja destruída. Acho que diante desse cenário,
   uma revolução, ou uma contra-revolução, é necessária, mas eu
   próprio não sei por onde começar.