O QUE A INTERNET ESTÁ FAZENDO COM NOSSAS MENTES?
COM UMA RESENHA DO LIVRO DE NICHOLAS CARR A GERAÇÃO SUPERFICIAL

Valdemar W. Setzer
www.ime.usp.br/~vwsetzer
Original de 4/3/12 – versão 2.1 de 16/3/12

Índice (acione um item para desviar para ele)

1. Introdução
2. Resumo do livro
2.1 Confissão do autor: como o livro foi escrito
2.2 O efeito distrativo
2.3 A plasticidade do cérebro
2.4 História de algumas tecnologias intelectuais
2.5 Sobre a Internet
2.6 O problema das multitarefas
2.7 A perda da concentração
2.8 Críticas à empresa Google
2.9 A nossa memória e a Internet
2.10 Problemas das novas tecnologias
3. Comentários
4. Complementações
5. Recomendações
5.1 Atividades imediatas
5.2 Atividades de curto prazo
5.3 Atividades de longo prazo
6. Referências

1. Introdução

Em 2010 saiu o excelente e fascinante livro de Nicholas Carr The Shallows – what the Internet is doing to our brains [2010], que causou um grande impacto no mundo todo, com notícias, entrevistas e resenhas em jornais e revistas, por exemplo, no Brasil [Leite 2010, Castro 2012, Roxo, 2012]. Em 2011 comecei a dar palestras sobre o livro (ver a apresentação em [Setzer 2011a]), tendo a primeira sido gravada pela IPTV da Universidade de São Paulo [Setzer 2011b]. Em dezembro de 2011 foi lançada a tradução do livro que, por sinal, é razoável, com o título A Geração Superficial: o que a internet está fazendo com nossas mentes [Carr 2011].

O impacto do livro deveu-se à qualidade e profundidade do mesmo e às constatações que Carr faz das influências negativas que a Internet exerce sobre seus usuários. No meio do entusiasmo generalizado pela Internet, o livro foi uma verdadeira ducha de água fria, chamando a atenção para vários perigos da mesma e várias de suas influências negativas no indivíduo e na cultura.

O leitor pode ter achado curioso o fato de haver uma única diferença no título deste artigo em relação ao subtítulo do original: a palavra ‘mentes’ em lugar de ‘cérebros’. A razão disso é que considero a mente como sendo muito mais do que o cérebro, englobando este último, como será exposto no item 3. Comentários.

Este artigo segue exatamente a mesma estrutura geral da palestra que tenho dado [Setzer 2011a, 2011b], com uma diferença fundamental: nas palestras é feito um resumo muito mais completo, cobrindo em sequência cada capítulo do livro; no entanto, aqui as citações de trechos do livro são muitíssimo maiores. O detalhamento nas palestras visou chamar a atenção para aspectos históricos e culturais muito importantes presentes no livro, a fim de interessar os ouvintes a o lerem. Neste artigo, no item Resumo do Livro será feito um resumo objetivo (isto é, sem comentários sobre o conteúdo), por meio de citações, dos pontos mais importantes do livro, especialmente os que tratam do impacto negativo da Internet. Obviamente, a escolha desses pontos é subjetiva. Como nas palestras, o item Comentários contém observações sobre o livro, usando aqui trechos literais das citações do resumo. O item Complementações contém vários pontos considerados importantes do ponto de vista do impacto da Internet em seus usuários e que não constam do livro. Nele, é dada ênfase especial ao impacto em crianças e jovens, minha grande preocupação com relação ao uso de meios eletrônicos (TV, video games e computadores), como pode ser visto em meu último livro sobre o assunto [Setzer 2005] e nos inúmeros artigos em meu site, especialmente o "Efeitos negativos dos meios eletrônicos em crianças, adolescentes e adultos" [Setzer 2008a], e que traz citações literais de mais de uma centena de livros e trabalhos científicos. Finalmente, o item Recomendações traz algo que também não consta explicitamente do livro: recomendações práticas aos usuários da Internet para contrabalançar, na medida do possível, os efeitos negativos apontados por Carr e por mim, em ações imediatas (isto é, durante o uso da rede) e também a curto e a longo prazo.

Neste artigo a palavra Internet será grafada com inicial maiúscula por se tratar do nome de uma rede única, a menos de citações do livro de Carr, aqui transcritas literalmente, cuja tradução usa a inicial minúscula. Curiosamente, a edição original usa a inicial maiúscula. Nas citações, todos os itálicos são ênfases do próprio autor.

Será usada aqui a palavra ‘tecnologia’ como entendida em inglês e usada na tradução, isto é, refere-se a máquinas e instrumentos, bem como às técnicas em projetá-las e usá-las.

Este artigo é um trabalho acadêmico. Assim, conforme previsto na lei de direitos autorais, não foi necessário solicitar autorização da editora para transcrever trechos da referida tradução. Essas transcrições visam preservar ao máximo a palavra e o espírito do autor e, como em minhas palestras, incentivar o leitor a ler o livro.

Críticas e sugestões são, como sempre, muito bem vindas. O meu endereço de e-mail está no topo de minha home page, em forma de figura.

2. Resumo do livro

Este resumo não segue em geral a ordem dos capítulos do livro de Nicholas Carr. Todas as referências e citações seguintes são da edição em português [Carr 2011].

Os capítulos do livro são entremeados por 4 pequenas seções que o autor denomina "digressões" [pp. 59, 113, 199 e 269]. Na última delas, descrita na segunda parte do próximo item, o autor conta como foi o processo de escrever o livro.

2.1 Confissão do autor: como o livro foi escrito

No primeiro capítulo, "Hal e eu" Carr compara-se ao computador HAL 9000, que controla a nave do filme de Stanley Kubrick 2001, Uma Odisseia no Espaço, e faz uma autoanálise da influência da Internet em sua mente: "[Dave] Bowman, [o astronauta] que quase havia sido lançado à morte no espaço profundo pela máquina defeituosa, está calma e friamente desconectando os circuitos de memória que controlam o seu [do computador HAL] cérebro artificial. ‘Dave, a minha mente está indo embora’ diz HAL desesperançado. ‘Eu posso sentir. Eu posso sentir.’ Eu também posso sentir. Nos últimos poucos anos tenho tido um sentimento desconfortável de que alguém, ou algo, tem estado mexendo com meu cérebro, remapeando os circuitos neurais, reprogramando minha memória. A minha mente não estava indo embora, mas mudando. Não estou pensando do mesmo modo que costumava pensar. Eu costumava mergulhar em um livro ou artigo extenso. Minha mente era capturada pelas reviravoltas da narrativa ou as mudanças do argumento, e eu passava horas percorrendo longos trechos de prosa. Agora, raramente isso acontece. Minha concentração começa a se extraviar depois de uma ou duas páginas. Fico inquieto, perco o fio, começo a procurar alguma coisa a mais para fazer. ... A leitura profunda que costumava acontecer naturalmente tornou-se uma batalha. Eu acho que sei o que está acontecendo. Há mais de uma década, tenho passado muito tempo on-line, buscando e surfando ..." [pp. 17-8.]

"[...] o que a net parece estar fazendo é desbastar a minha capacidade de concentração e contemplação. Quer eu esteja on-line quer não, a minha mente agora espera receber informação do modo com a net a distribui: um fluxo de partículas em movimento veloz. Antigamente eu era um mergulhador em um mar de palavras. Agora deslizo sobre a superfície como um sujeito com um jet ski. Talvez eu seja uma aberração, um deslocado. Mas parece que não. Quando menciono os meus problemas com leitura para amigos, muito[s] dizem que estão passando por aflições semelhantes. Quanto mais usam a web, mais têm que se esforçar para permenecerem focados em longos trechos de escrita." [p. 19.] "Para algumas pessoas, a ideia mesma de ler um livro tornou-se antiquada, até um pouco tola – como costurar as próprias roupas ou escrever com lapiseira. Sentia saudades de meu antigo cérebro." [p. 21.]

"Comecei a perceber que a net estava exercendo uma influência muito mais forte e mais ampla sobre mim do que o meu velho PC solitário jamais tinha sido capaz. ... O próprio modo como meu cérebro funcionava parecia estar mudando. Foi então que comecei a me preocupar com a minha incapacidade de prestar atenção a uma coisa por mais do que uns poucos minutos. [...] meu cérebro, percebi, não estava apenas se distraindo. Estava faminto. Estava exigindo ser alimentado do modo como a net o alimenta – e, quanto mais era alimentado, mais faminto se tornava. Mesmo quando eu estava longe do meu computador, ansiava por checar meus e-mails, clicar em links, fazer uma busca no Google. Queria estar conectado. Assim como o Word da Microsoft havia me transformado em um processador de texto em carne e osso, a internet, eu sentia, havia me transformado em algo como uma máquina de processamento de dados de alta velocidade, um HAL humano." [p. 31.]

Na Digressão "Sobre a escrita deste livro", entre os capítulos 9 e 10 [pp. 269-72], Carr conta o que fez para se livrar dos sintomas descritos acima. "Quando comecei a escrever esse [sic] livro, no final de 2007, lutei em vão para manter a minha mente fixa na tarefa. A net proporcionava, como sempre, uma opulência de informação útil e de ferramentas de pesquisa, mas suas constantes interrupções dispersavam meus pensamentos e palavras. Eu tendia a escrever em arrancos desconexos, do mesmo modo como faço no meu blog. Estava claro que eram necessárias grandes mudanças. No verão do ano seguinte, mudei-me [no original: "com minha esposa"] de um subúrbio altamente conectado de Boston para as montanhas do Colorado. Não havia serviço de celular na nossa casa e a internet chegava através [sic] de uma conexão DSL relativamente vagarosa. Cancelei minha conta no Twitter, dei um tempo na minha filiação ao Facebook [colocou-a em "hiatus"], e coloquei meu blog em compasso de espera. Fechei meu leitor RSS e restringi o Skype e as mensagens instantâneas. E, o mais importante, desacelerei o meu aplicativo de e-mail. Fazia muito tempo que eu checava novas mensagens a cada minuto. Ajustei para checar apenas uma vez por hora, e quando isso ainda criava muita distração, comecei a manter o programa fechado o dia todo.

O desmantelamento da minha vida on-line não foi de modo algum indolor. Por meses, as minhas sinapses clamavam pela sua dose de net. Eu me surpreendia sorrateiramente clicando no botão ‘cheque novo e-mail’. Ocasionalmente eu caía numa farra na web por um dia inteiro. Mas com o tempo a fissura cedeu, e me descobri capaz de digitar no meu teclado por horas a fio ou ler do princípio ao fim um denso artigo acadêmico sem que minha mente divagasse. Alguns velhos circuitos neurais, em desuso, estavam voltando à vida, parecia, e alguns mais novos, ligados na web, estavam se aquietando. Comecei a me sentir geralmente mais calmo e com mais controle de meus pensamentos – menos como um rato apertando uma alavanca e mais como, bem, um ser humano. O meu cérebro podia respirar novamente.

O meu caso, percebo, não é típico. Sendo um trabalhador autônomo e de natureza relativamente solitária [o autor é escritor], tenho a opção de me desconectar. A maioria das pessoas hoje, não. A web é tão essencial para o seu trabalho e para a sua vida social que, mesmo se quisessem escapar da rede, não poderiam." [pp. 269-70.]

"Quando começamos a usar uma nova tecnologia intelectual, não trocamos imediatamente de um modo mental para o outro. O cérebro não é binário. Uma tecnologia intelectual exerce sua influência deslocando a ênfase do nosso pensamento. Embora mesmo os usuários iniciais da tecnologia frequentemente sintam as mudanças nos seus padrões de atenção, cognição e memória, à medida que seu cérebro se adapta à nova mídia, as mudanças mais profundas ocorrem mais lentamente, ao longo de várias gerações, conforme a tecnologia passa a impregnar cada vez mais o trabalho, o lazer e a educação – todas as normas e práticas que definem uma sociedade e sua cultura. Como o modo como lemos está mudando? Como o modo como escrevemos está mudando? Como o modo como pensamos está mudando? Essas são as perguntas que deveríamos estar fazendo, tanto a respeito de nós mesmos como de nossos filhos.

Quanto a mim, já tive uma recaída. Com o final desse [sic] livro em vista, voltei a deixar o meu e-mail correndo o tempo todo e abri de novo meu feed RSS. Estive experimentando uns novos serviços das redes sociais e postando algumas novas entradas no meu blog. Recentemente, sucumbi e comprei um Blu-ray com conexão wi-fi embutida. Ele me permite receber música da Pandora, filmes do NetFlix e vídeos do YouTube na minha televisão e no meu estéreo. Tenho que confessar: é legal. Não tenho certeza se poderia viver sem isso." [p. 271.]

Esses longos trechos foram transcritos pois tocam em alguns pontos essenciais detalhados e documentados no livro, bem como caracterizam vivamente o problema do vício. Segundo essas citações, na experiência do próprio autor, a Internet tem os seguintes efeitos:

Esses efeitos, bem como outros mais, serão cobertos nos itens seguintes.

2.2 O efeito distrativo

Carr dedica o capítulo 7 do livro, "O cérebro do malabarista" a discorrer sobre o efeito de produzir distração. Segundo ele,

"Não importa o quão revolucionária seja, a net é melhor compreendida como a última de uma longa série de ferramentas que auxiliaram a moldar a mente humana. Agora surge a questão crucial: o que a ciência nos diz sobre os reais efeitos que o uso da internet está tendo no modo como nossas mentes funcionam? Sem dúvida, essa questão será objeto de uma grande quantidade de estudos nos próximos anos. No entanto, já sabemos ou podemos supor muitas coisas. As notícias são ainda mais perturbadoras do que eu havia suspeitado. Dúzias de estudos de psicólogos, neurobiólogos , educadores e web designers indicam a mesma conclusão: quando estamos on-line, entramos em um ambiente que promove a leitura descuidada, o pensamento apressado e distraído e o aprendizado superficial. É possível pensar profundamente enquanto se surfa na net, assim como é possível pensar superficialmente enquanto se lê um livro, mas não é o tipo de pensamento que a tecnologia encoraja e recompensa.

Uma coisa é muito clara: se, conhecendo o que sabemos sobre a plasticidade do cérebro, nos propuséssemos inventar uma mídia que refizesse nossos circuitos cerebrais o mais rápida e inteiramente possível, provavelmente terminaríamos projetando algo que se pareceria muito com a internet e que funcionaria de modo muito semelhante. Não apenas porque tendemos a usar a internet regular e mesmo obsessivamente. É que ela descarrega precisamente o tipo de estímulos sensoriais e cognitivos – repetitivos, intensivos, interativos, aditivos [viciantes] – que se demonstrou resultarem em fortes e rápidas alterações dos circuitos e funções cerebrais. Com exceção dos alfabetos e dos sistemas de números [sistemas numéricos, para ser mais preciso no termo matemático], a internet bem pode ser a tecnologia individual mais poderosa de alteração da mente de uso geral. No mínimo, é a mais poderosa desde o livro."

2.3 A plasticidade do cérebro

O capítulo 2 do livro "Os caminhos vitais" ["The vital parts", que poderia ter sido melhor traduzido ou "as partes vitais" como "as partes essenciais"] é dedicada ao histórico da pesquisa da neurociência que levou à descoberta da plasticidade do cérebro, isto é, que ele é constantemente modificado por todas as experiências que se passam com o indivíduo, inclusive seu pensamento [pp. 33-58]. Uma das maiores influências nesse processo é a tecnologia. O autor cita Walter J. Ong, que escreveu: "As tecnologias não são meros auxílios exteriores, mas também transformações interiores da consciência e estas são as maiores possíveis quando afetam a palavra." [p. 78.] Carr acrescenta "A história da linguagem também é uma história da mente. A linguagem em si mesma não é uma tecnologia. É natural [native, melhor teria sido traduzir por ‘nativa’, ‘intrínseca’; ela não é natural – seu aparecimento é um dos grandes mistérios da teoria darwinista da evolução] à nossa espécie. Nosso cérebro e corpo evoluíram para falar e ouvir palavras. Uma criança aprende a falar sem instruções, como um filhote de um pássaro aprende a voar. Visto que a leitura e a escrita se tornaram tão centrais para a nossa identidade e cultura, é fácil assumir que elas, também, são talentos inatos. Mas não são. Leitura e escrita são atos não naturais, que se tornaram possíveis pelo desenvolvimento proposital do alfabeto e de muitas outras tecnologias. Nossas mentes têm que ser ensinadas a traduzir os caracteres simbólicos que vemos na linguagem que entendemos. Leitura e escrita exigem ensino e prática, o modelamento deliberado do cérebro. A evidência do processo de modelamento do cérebro pode ser vista em muitos estudos neurológicos. Experimentos revelaram que os cérebros dos alfabetizados diferem dos cérebros dos analfabetos em muitos pontos – não somente em como compreendem a linguagem, mas também em como processam os sinais visuais, como raciocinam, e como formam memórias. Foi demonstrado que ‘aprender a ler’, relata o psicólogo mexicano Feggy Ostrosky-Solis, ‘molda poderosamente os sistemas neuropsicológicos do adulto.’ ... Diferenças de atividade cerebral foram constatadas mesmo entre leitores de diferentes línguas alfabéticas. Descobriu-se, por exemplo, que leitores de inglês se baseiam muito mais em áreas do cérebro associadas com decifrar formas visuais do que leitores de italiano. A diferença tem origem, acredita-se, no fato de que as palavras em inglês muitas vezes parecem ser muito diferentes do seu som, enquanto em italiano as palavras tendem a ser soletradas exatamente como são faladas." (Carr cita o artigo científico de onde tirou essa informação.)

É baseado nessa plasticidade que Carr afirma recorrentemente que a Internet afeta a estrutura do cérebro.

2.4 História de algumas tecnologias intelectuais

Para mostrar a evolução cultural de tecnologias intelectuais, Carr introduz a história dos mapas e dos relógios [cap. 3, "Ferramentas da mente", pp. 63-86]. Em seguida, traça a história da escrita e da imprensa [cap. 4, "O aprofundamento da página", "The deepening page", literalmente "A página que aprofunda", pp. 87-112].

Dignas de nota são suas afirmações de que antigamente as palavras não eram separadas e não se usavam sinais de pontuação. "No século XIII, a scriptura continua estava em grande parte obsoleta, tanto para os textos em latim como para aqueles escritos na língua vernácula. Os sinais de pontuação, que facilitaram ainda mais o trabalho do leitor, começaram também a se tornar comuns. A escrita, pela primeira vez, estava dirigida tanto ao olho como ao ouvido. Seria difícil superestimar a importância dessas mudanças. A emergência da ordem das palavras despertou uma revolução na estrutura da linguagem – que, como observa Saenger, ‘era incoerentemente contraditória à antiga busca pela eloquência métrica e rítmica’. A inserção de espaços entre as palavras aliviou a pressão congnitiva envolvida em decifrar o texto, tornando possível que as pessoas lessem rápida e silenciosamente e com maior compreensão. Tal fluência tinha que ser aprendida. Exigia mudanças complexas nos circuitos do cérebro, como revelam estudos contemporâneos com jovens leitores. ... À medida que o cérebro se torna mais apto a decodificar um texto, transformando o que envolvia um exercício de resolução de problemas em um processo essencialmente automático, pode dedicar mais recursos à interpretação do significado. Torna-se possível o que chamamos atualmente de ‘leitura profunda’ [deep reading]. ... Os leitores não se tornaram apenas mais eficientes. Eles também se tornaram mais atentos. Ler um longo livro silenciosamente exigia uma capacidade de se concentrar intencionalmente por um longo período de tempo, para ‘se perder’ [to lose oneself] nas páginas do livro, como agora dizemos. Desenvolver tal disciplina mental não é fácil. O estado natural da mente humana, como aquele dos nossos parentes do reino animal, é de desatenção. Nossa predisposição é deslocar nosso olhar, e assim nossa atenção, de um objeto para outro, ser cônscios do máximo possível que está acontecendo ao nosso redor. ... [Cita pesquisas neurofisiológicas.] O que atrai a nossa atenção acima de tudo é qualquer indício de mudança nos nossos arredores. ... Ler um livro era experimentar um processo não natural de pensamento, que exigia atenção continuada, ininterrupta a um único objeto estático. ... [As pessoas] tinham que treinar seus cérebros para ignorar tudo o mais que estava ocorrendo ao seu redor, para resistir ao ímpeto de deixar seu foco saltar de um sinal sensorial para outro. Tinham que forjar ou fortalecer as ligações neurais necessárias para contrabalançar o seu estado de desatenção instintivo, aplicando um maior controle sobre a sua atenção. ... Nos silenciosos espaços abertos pela leitura prolongada, sem distrações, de um livro, as pessoas criavam suas próprias associações, faziam suas próprias inferências e analogias, e cultivavam suas próprias ideias. Pensavam profundamente enquanto liam profundamente." [pp. 92-5.]

Vale a pena salientar que nessa citação o autor introduz a expressão "leitura profunda", que permeia muito do que se segue no livro; ele mostrará que a Internet prejudica essa capacidade.

"Os avanços da tecnologia do livro mudaram a experiência pessoal de leitura e escrita. Também tiveram consequências sociais. A cultura mais ampla começou a moldar a si mesma, de maneiras tanto sutis quanto óbvias, em torno da leitura silenciosa do livro. ... Por séculos, a tecnologia da escrita havia refletido, e reforçado, a ética intelectual da cultura oral da qual se originou. ... agora, a escrita começava a assumir e a disseminar uma nova ética intelectual: a ética do livro. O desenvolvimento do conhecimento se tornou um ato cada vez mais privado, com cada leitor criando, em sua própria mente, uma síntese pessoal das ideias e informações transmitidas pelos escritos de outros pensadores. ... A pesquisa quieta, solitária, tornou-se um pré-requisito para a realização intelectual. A originalidade do pensamento e a criatividade da expressão se tornaram as marcas distintivas da mente moderna." [pp. 97-9.]

Em seguida, o autor traça a história da imprensa, que possibilitou a popularização do livro. Aí ele dá um toque na Internet: "Agora a corrente dominante está sendo desviada, rápida e decisivamente, para um novo canal. A revolução eletrônica está se aproximando do seu ápice à medida que o computador – desktop, laptop, handheld [smartphone, e agora também tablet] – torna-se nosso companheiro constante, e a internet, o nosso meio predileto de armazenar, processar e partilhar informação de todas as formas, incluindo o texto. ... Mas o mundo da tela, como estamos começando a perceber, é um lugar inteiramente diferente do mundo da página. Uma nova ética intelectual está se firmando. As vias de nosso cérebro mais uma vez estão sendo retraçadas." [p. 112.]

Para quem se interessa pela história da neurociência e alguns de seus últimos avanços, o livro de Miguel Nicolelis sobre essa área traz muito mais detalhes [Nicolelis 2011].

2.5 Sobre a Internet

Nos capítulos 5 a 7, "Um meio de natureza mais geral", "A própria imagem do livro" e "O cérebro do malabarista" [pp. 117-198], Carr concentra-se na Internet. Após mencionar estatísticas mostrando o grande aumento do uso da Internet e um pequeno aumento do uso de TV (que, portanto, não foi influenciada pelo aumento da Internet), ele diz: "O que parece estar decrescendo à medida que aumenta o uso da net é o tempo que passamos lendo publicações impressas – particularmente jornais e revistas, mas também livros. Das quatro categorias de mídias pessoais, a impressa é a menos usada, ficando bem atrás da televisão, dos computadores e do rádio. ... Devido à ubiquidade do texto na net e nos celulares, certamente estamos lendo mais palavras hoje do que líamos vinte anos atrás, mas estamos dedicando menos tempo às palavras impressas no papel. A Internet, do mesmo modo que o computador pessoal antes dela, demonstrou ser tão útil de tantos modos que demos as boas-vindas a toda expansão de seu escopo. Raramente paramos para ponderar, e muito menos questionar, a revolução da comunicação que tem estado em andamento ao nosso redor, em nossas casas, no nosso trabalho, nas nossas escolas." [pp. 126-7.]

"As mídias tradicionais, mesmo as eletrônicas, são [are being, estão sendo] reformatadas e reposicionadas quando realizam a passagem da [to, para a] distribuição on-line. Quando a net absorve uma mídia, recria-a à sua própria imagem. Não somente dissolve a forma física da mídia; injeta hiperlinks no conteúdo da mídia, quebra o conteúdo em porções buscáveis e circunda o conteúdo com os conteúdos de todas as outras mídias que absorveu. Todas essas mudanças da forma do conteúdo também mudam a maneira como o usamos, experimentamos e mesmo o compreendemos. ... Os links não apenas nos indicam trabalhos relacionados ou suplementares; eles nos impulsionam rumo a eles. Eles nos encorajam a roçar uma série de textos em vez de dedicar atenção continuada a qualquer um deles. Os hiperlinks são planejados para capturar a nossa atenção. Seu valor como ferramentas de navegação é inseparável da distração que causam." [pp. 128-9.]

No seu cap. 7 Carr dedica ênfase especial a essa questão dos vínculos (links) atraírem a atenção e produzirem distração. "O que não estamos fazendo quando estamos on-line também tem consequências neurológicas. Assim como neurônios que disparam juntos conectam-se juntos, neurônios que não disparam juntos não se conectam juntos. Como o tempo que gastamos vasculhando web pages encolhe o tempo que passamos lendo livros, como o tempo que gastamos trocando mensagens de texto medidas em bites encolhe o tempo que passamos compondo sentenças e parágrafos, como o tempo que gastamos pulando entre links encolhe o tempo que dedicamos à contemplação na quietude, os circuitos que dão suporte a essas antigas funções intelectuais enfraquecem e começam a se romper. O cérebro recicla os neurônios e as sinapses não usadas para outros trabalhos mais prementes. Ganhamos novas habilidades e perspectivas, mas perdemos as antigas." [p. 167.]

"Em 2008, [Gary] Small e dois dos seus colegas conduziram o primeiro experimento que de fato mostrou a mudança do cérebro das pessoas em resposta ao uso da internet. Os pesquisadores recrutaram 24 voluntários – uma dúzia de surfistas da web experientes e uma dúzia de novatos – e escanearam seus cérebros enquanto realizavam buscas com o Google. ... As imagens colhidas revelaram que a atividade cerebral dos usuários de Google experientes era muito mais ampla do que a dos novatos. Em particular, ‘os sujeitos com domínio do computador usavam uma área específica na parte frontal esquerda do cérebro, conhecida como o córtex dorsolateral pré-frontal, enquanto os sujeitos sem experiência com a internet exibiam uma atividade mínima, se é que exibiam, dessa área.’ ... Claramente, as vias neurais distintivas dos usuários experientes da net haviam sido desenvolvidas com o seu uso da internet. A parte mais notável do experimento veio quando os testes foram repetidos seis dias mais tarde. Nesse meio-tempo, os pesquisadores tinham feito os novatos despenderem uma hora por dia on-line, pesquisando na net. As novas imagens revelaram que a área do seu córtex pré-frontal que estivera em grande parte dormente agora mostrava extensa atividade – similar à atividade dos cérebros dos surfistas veteranos. ‘Depois de apenas cinco dias de treinamento, exatamente o mesmo circuito neural da parte frontal do cérebro tornou-se ativo nos sujeitos inexperientes em internet’, relata Small. ‘Cinco horas na internet, e os sujeitos inexperientes haviam alterado as conexões de seus cérebros.’ Ele prossegue e pergunta: ‘Se nosso cérebro é tão sensível a apenas uma hora por dia de exposição ao computador, o que acontece quando passamos mais tempo on-line?’ Um outro resultado do estudo lança luz sobre as diferenças entre ler web pages e ler livros. Os pesquisadores descobriram que, quando as pessoas fazem buscas pela internet, exibem um padrão de atividade cerebral muito diferente de quando leem um texto com o formato de livro. Os leitores de livros têm muita atividade em regiões associadas com a linguagem, memória e processamento visual, mas não exibem muita atividade nas regiões pré-frontais associadas à tomada de decisões e resolução de problemas. Usuários experientes da internet, ao contrário, exibem atividade extensiva em todas as regiões cerebrais quando vasculham e buscam web pages. Aqui a boa notícia é que surfar na web, visto que envolve tantas funções cerebrais, pode ajudar os idosos a manter as suas mentes aguçadas. Fazer buscas e navegar pela internet parecem ‘exercitar’ o cérebro de um modo muito semelhante a resolver palavras cruzadas, diz Small. Mas a atividade extensiva dos cérebros dos surfistas também indica por que a leitura profunda e outros atos de concentração continuada se tornam tão difíceis on-line." [pp. 168-70.]

"Um estudo de 1989 mostrou que os leitores de hipertexto frequentemente terminavam clicando distraidamente ‘pelas páginas em vez de lê-las cuidadosamente. Um experimento [de 1990] revelou que os leitores de hipertexto muitas vezes ‘não podiam lembrar o que haviam ou não lido.’ Em outro estudo do mesmo ano, os pesquisadores solicitaram a dois grupos que respondessem a uma série de questões, pesquisando em um conjunto de documentos. Um grupo realizou buscas em documentos eletrônicos com hipertexto, enquanto o outro, em documentos de papel tradicionais. O grupo que usou os documentos de papel teve uma performance superior à do grupo de hipertextos na tarefa designada." [p. 176.] Houve uma conjetura de que as pessoas iriam se acostumar ao hipertexto e o desempenho delas iria melhorar. "Isso não aconteceu. Embora a World Wide Web tenha tornado o hipertexto um lugar-comum, e na realidade ubíquo, as pesquisas continuam a mostrar que as pessoas que leem textos lineares compreendem mais, lembram mais e aprendem mais do que aquelas que leem textos salpicados com links." [pp. 176-7.] Carr cita então 8 pesquisas científicas comprovando essas afirmações, inclusive uma que correlacionou o número de vínculos à compreensão e à memorização, que pioravam com o aumento daquele número. Em seguida, ele expõe teorias que tentam explicar esse fenômeno. Mais tarde, no cap. 10, "Uma coisa como eu" ele escreve: "Mesmo em nível prático, os efeitos [da Internet] não são tão benéficos como gostaríamos de acreditar. Como mostram muitos estudos de hipertexto e multimídia, a nossa capacidade de aprender pode ser severamente comprometida quando nosso cérebro é sobrecarregado com diversos estímulos on-line. Mais informação pode significar menos conhecimento." [p. 290.]

2.6 O problema das multitarefas

"A net é, pelo seu design, um sistema de interrupção, uma máquina calibrada para dividir a atenção." [p. 182.] Carr descreve vários programas que interrompem o que o usuário está fazendo, como avisos de chegada de e-mails e mensagens instantâneas (chats), avisos de postagens em blogs, twitts, postagens em redes sociais e vários dispositivos para avisar uma pessoa inscrita em um sistema de que há algo de novo nele.

"A navegação na web exige uma forma particularmente intensa de multitarefas mentais. Além de inundar nossa memória de trabalho [memória de rápido acesso e curta duração] com informação, o malabarismo [parte do título do capítulo] impõe, como denominam os cientistas do cérebro, ‘custos de comutação à nossa cognição’. Toda vez que deslocamos nossa atenção, o nosso cérebro tem que se reorientar novamente, exercendo mais pressão sobre nossos recursos mentais. ... Muitos estudos demonstraram que a comutação entre apenas duas tarefas pode incrementar substancialmente a nossa carga cognitiva, impedindo o nosso pensamento e aumentando a probabilidade de que passemos por cima ou interpretemos mal informações importantes." [p. 184.] Carr cita uma pesquisa com sujeitos forçados a executar uma multitarefa. "[...] depois da tentativa multitarefa, [os sujeitos] tiveram muito mais dificuldades de chegar a conclusões sobre a sua experiência. A comutação entre duas tarefas dera um curto-circuito em seu entendimento: eles realizaram o trabalho, mas perderam a noção do seu significado. ... Na net, onde comumente fazemos malabarismos não apenas entre duas mas entre várias tarefas mentais, os custos de comutação podem ser muito mais altos. ... Nós queremos ser interrompidos, porque cada interrupção nos traz uma informação preciosa. Ao desligar esses alertas, nos arriscamos a nos sentir desconectados ou mesmo socialmente isolados. O fluxo quase contínuo de novas informações bombeado pela web também apela à nossa tendência natural de ‘supervalorizar amplamente o que está acontecendo exatamente agora’, como explica o psicólogo ... C. Chabris. Ansiamos pelo novo mesmo quando sabemos que ‘o novo é na maior parte das vezes trivial em vez de essencial’. E assim pedimos à internet que continue a nos interromper, cada vez mais e de modos diferentes. De bom grado aceitamos a falta de concentração e de foco, a divisão da nossa atenção e a fragmentação dos nossos pensamentos, em troca da abundância de informação premente ou, pelo menos, divertida que recebemos. Desligar não é uma opção que muitos de nós consideraríamos." [pp. 185-6.]

"Como o escritor Sam Anderson colocou em ‘In Defense of Distraction’, um artigo de 2009 na revista New York, ‘nossos trabalhos dependem de nossa conectividade’ e ‘nossos ciclos de prazer – de modo algum triviais – estão cada vez mais ligados a ela.’ Os benefícios práticos do uso da web são muitos, e essa é uma das principais razões por que despendemos tanto tempo on-line. ‘É tarde demais’, sustenta Anderson, ‘para apenas nos retirarmos para um tempo mais calmo.’ Ele tem razão, mas seria um sério equívoco olhar estreitamente para os benefícios da net e concluir que a tecnologia está nos tornando mais inteligentes." [p. 194.] Carr cita Jordan Grafman, um neurocientista: "‘A otimização para multitarefas resulta em um melhor funcionamento – isto é, a criatividade, inventividade, produtividade? A resposta é, na maioria dos casos, não’ diz Grafman. ‘Quanto mais você faz multitarefas, menos deliberativo você se torna; e menos capaz de pensar e de raciocinar sobre um problema.’ Você se torna, ele sustenta, mais propenso a confiar em ideias e soluções convencionais em vez de desafiá-las com linhas originais de pensamento." [p. 194.]

Carr cita uma pesquisa de 2009 da Universidade de Stanford, em que os pesquisadores "aplicaram uma bateria de testes cognitivos a um grupo de praticantes pesados de multitarefas de mídia assim como a um grupo com prática de multitarefas relativamente leve. Descobriram que os praticantes pesados de multitarefas eram muito mais facilmente distraídos por ‘estímulos ambientais irrelevantes’, tinham um controle significativamente menor sobre os conteúdos da sua memória de trabalho, e eram em geral muito menos capazes de manter a concentração em uma determinada tarefa. ... Os executores intensivos de multitarefas são ‘atraídos pela irrelevância’ comentou Cliffor Nass, o professor de Stanford que liderou a pesquisa. ‘Tudo os distrai.’ A avaliação de Michael Merzenich [um dos principais descobridores da plasticidade do cérebro] é ainda mais desoladora. Quando realizamos multitarefas on-line, diz, estamos ‘treinando nosso cérebro para prestar atenção ao lixo.’ As consequências para a nossa vida intelectual provarão ser ‘mortais’". [pp. 196-7.]

2.7 A perda da concentração

"[Pesquisadores alemães] relataram que a maioria das páginas da web é vista por dez segundos ou menos. Menos do que uma em dez web pages é vista por mais de dois minutos, e uma fração significativa desse tempo parece envolver ‘janelas do browser desocupadas ... deixadas abertas no segundo plano do desktop.’ ... Os resultados, dizem, ‘confirmam que o browsing é uma atividade rapidamente interativa.’ Os resultados também reforçam algo que [Jakob] Nielsen escreveu em 1997 depois do seu primeiro estudo na leitura on-line. ‘Como os usuários leem na web?’, perguntou então. Sua resposta sucinta: ‘Eles não leem.’ ... Em um período de dois meses em 2008, uma companhia israelense chamada Clicktale, que fornece software para analisar como as pessoas usam as páginas corporativas da web, coletou dados sobre o comportamento de 1 milhão de visitantes aos sites mantidos pelos seus clientes ao redor do mundo. Descobriu que, na maioria dos países, as pessoas despendem, em média, entre 19 e 27 segundos olhando uma página antes de passarem para a próxima, incluindo o tempo para a página carregar na janela do browser." [pp. 188-9.] Em seguida, ele cita pesquisa feita com leitores de revistas acadêmicas. "Os estudiosos descobriram que as pessoas usando os sites mostravam claramente ‘ler por cima’, pulando rapidamente de uma fonte para a outra, raramente voltando a qualquer fonte que já houvessem consultado. Elas geralmente liam, no máximo, uma ou duas páginas de um artigo ou livro antes de pularem para outro site. ‘É claro que os usuários não estão lendo no sentido tradicional’, relatam os autores do estudo; de fato, há sinais de que novas formas de "leitura" estão emergindo à medida que os usuários dão uma conferida na horizontal nos títulos, sumários e resumos, visando resultados rápidos. Dão a impressão de que vão on-line para evitar a leitura no sentido tradicional." [p. 189.]

Em seguida, ele cita outra pesquisa corroborando esse fenômeno, e diz: "Não há nada errado com o navegar e o escanear, ou mesmo com a conferência rápida. Sempre passamos os olhos sobre os jornais mais do que os lemos, e habitualmente corremos os olhos sobre os livros e revistas para ter um gosto do escrito e decidir se merece ou não uma leitura mais completa. A capacidade de ler por cima um texto é tão importante quanto a de ler profundamente. O que é diferente, e perturbador, é que ler por alto está se tornando o nosso modo dominante de leitura. ... O que estamos experimentando é, em um sentido metafórico, uma reversão da trajetória inicial de civilização: estamos evoluindo de seres cultivadores de conhecimento pessoal para sermos caçadores e coletores da floresta dos dados eletrônicos." [pp. 191-2.]

"Dada a plasticidade do nosso cérebro, sabemos que os nossos hábitos on-line continuam a reverberar no funcionamento das nossas sinapses quando não estamos on-line. Podemos supor que os circuitos neurais dedicados a vasculhar, passar os olhos e executar multitarefas estão se expandindo e fortalecendo, enquanto aqueles usados para a leitura e pensamentos profundos, com concentração continuada, estão enfraquecendo e se desgastando." [p. 196.]

2.8 Críticas à empresa Google

No cap. 8, "A igreja da Google", Carr inicia com uma digressão sobre o taylorismo. Taylor considerou e tratou o trabalhador como máquina que devia ser ‘programada’ para obter a maior eficiência possível na produção. Segundo Carr, "Uma vez que seu sistema fosse aplicado a todos os atos do trabalhador manual, assegurou Taylor a seus muitos seguidores, traria uma reestruturação não somente da indústria mas também da sociedade, criando uma utopia de perfeita eficiência. ‘No passado, o homem vinha em primeiro lugar’, declarou, ‘no futuro, o sistema virá primeiro.’ O sistema de Taylor de mensuração e otimização ainda está muito presente entre nós; permanece um dos fundamentos da manufatura industrial. E agora, graças ao poder crescente que engenheiros computacionais e criadores de software exercem sobre nossa vida intelectual e social, a ética de Taylor está começando a governar o reino da mente também. A internet é uma máquina projetada para a eficiente e automática coleta, transmissão e manipulação de informações, e suas legiões de programadores têm a intenção de encontrar o ‘único melhor método’—o algoritmo perfeito – para conduzir os movimentos mentais do que passamos a descrever como trabalho do conhecimento. A sede da Google no Vale do Silício – a Googleplex – é a catedral da internet, e a religião praticada dentro de suas paredes é o taylorismo. A empresa, diz o CEO [presidente] Eric Schmidt, é ‘fundamentada na ciência da mensuração. Ela busca ‘sistematizar tudo’ o que faz, acresce outra executiva ... ‘Vivemos em um mundo de números.’" [pp.206-7.]

Carr descreve como a (empresa, companhia) Google "conduz milhares de experimentos por dia e usa os resultados para refinar os algoritmos que cada vez mais orientam como todos nós encontramos informação e extraímos significado delas. O que Taylor fez para o trabalho manual, a Google está fazendo para o trabalho mental." [p. 207.] "Julgamentos subjetivos, incluindo os estéticos, não entram nos cálculos da Google. ... Em uma prova [trial, teste] famosa, a empresa testou quarenta e uma diferentes tonalidades de azul de sua barra de ferramentas para ver qual tonalidade atraía mais cliques dos visitantes. Conduz experimentos de rigor semelhante com o texto que coloca nas suas páginas. ‘Você deve experimentar e tornar as palavras menos humanas e mais uma peça de maquinário’, explica [M.] Mayer [uma executiva da Google]" [p. 208.]

O autor relata a história da Google, concluindo com uma descrição da fonte do grande sucesso do sistema de buscas: "No final de 2000 tiveram a ideia de um plano bem bolado de apresentar pequenos anúncios textuais junto com os resultados de buscas. ... Em vez de vender espaço de propaganda por um preço estabelecido, resolveram leiloar o espaço." [p. 213.] Além de dar "um ranking aos anúncios da busca conforme o tamanho do lance do anunciante – maior o lance, maior o destaque do anúncio –, a Google em 2002 acrescentou um segundo critério. A colocação do anúncio seria determinada não somente pelo total do lance, mas também pela frequência com que as pessoas de fato clicassem no anúncio. ... No final da década [2010] a Google não era apenas a maior companhia da internet no mundo; era uma das maiores companhias de mídia, auferindo mais de 22 bilhões de dólares em vendas por ano, quase todas elas em propaganda, gerando um lucro de cerca de 8 bilhões de dólares." [p. 213.]

Relacionando com o problema da Internet provocar distração, ele diz: "Mas a Google, como supridora das principais ferramentas navegacionais da web, também molda a nossa relação com o conteúdo que ela nos serve tão eficientemente e em tanta profusão. A tecnologia intelectual da qual ela é pioneira promove o sobrevoo veloz e superficial sobre a informação e desencoraja qualquer envolvimento profundo e prolongado com um único argumento, ideia ou narrativa. "‘Nosso objetivo’, diz Irene Au, ‘é fazer com que os usuários entrem e saiam realmente rapidamente. Todas nossas decisões de design são baseadas nessa estratégia.’ Os lucros da Google são baseados diretamente na velocidade de consumo de informação pelas pessoas. Quanto mais rapidamente surfamos na superfície da web – quantos mais links clicamos nas páginas que vemos –, mais oportunidades a Google tem de coletar informações sobre nós e de nos suprir com anúncios. Seu sistema de propaganda, além disso, é explicitamente projetado para descobrir quais mensagens têm a maior probabilidade de captar a nossa atenção e então colocar essas mensagens no nosso campo de visão. ... A última coisa que a companhia gostaria de encorajar é a leitura vagarosa ou o pensamento lento, concentrado. A Google está, bem literalmente, no negócio da distração." [pp. 214-5.]

Com respeito à coleta de informações sobre os usuários dos produtos da Google, escreve Carr: "A Google divulgou que não estará satisfeita até que acumule ‘100 por cento dos dados dos usuários.’ O seu zelo expansionista não se refere apenas ao dinheiro, contudo. A colonização continuada de tipos adicionais de conteúdos também promove a missão da companhia de tornar a informação do mundo ‘universalmente acessível e útil.’ Seus ideiais e seus interesses empresariais convergem num objetivo abrangente: digitalizar cada vez mais tipos de informação, transferir a informação para a web, alimentar com ela a sua base de dados, rodá-la nos seus algoritmos de classificação e de ranking e distribuí-la no que chama de ‘snippets’ (fragmentos) aos surfistas da web, preferencialmente com anúncios a reboque. Com a expansão do âmbito da Google, a sua ética taylorista ganha um domínio cada vez mais cerrado sobre nossa vida intelectual." [p. 220.]

Carr ainda entra em mais detalhes sobre projetos da Google, dedicando um bom trecho especificamente ao de digitalizar todos os livros do mundo. "Mas a inevitabilidade de transformar as páginas de livros em imagens on-line não deve impedir que consideremos os efeitos colaterais. Tornar um livro encontrável e buscável on-line é também desmembrá-lo. A coesão do seu texto, a linearidade do seu argumento ou narrativa, enquanto fluem através de muitíssimas páginas, é sacrificada. ... A quietude ... também é sacrificada. Circundando toda página ou trecho do Google Book Search há uma pletora de links, ferramentas, abas e anúncios, cada um ansioso por fisgar uma parte da atenção fragmentada do leitor. [...] para a Google, o valor de um livro não é como uma obra literária autocontida, mas como uma outra pilha de dados a ser prospectada. A grande biblioteca que a Google está correndo para criar não deve ser confundida com as bibliotecas que conhecemos até então. É uma biblioteca de fragmentos. ... Com a escrita na tela, ainda conseguimos decodificar o texto rapidamente – lemos, se é que lemos, mais rápido do que nunca –, mas não mais somos levados a uma compreensão profunda, construída pessoalmente, das conotações do texto. Em vez disso, somos apressados para ir adiante até um outro pedaço de informação relacionada, e outra, e outra. O garimpo superficial do ‘conteúdo relevante’ substitui a lenta escavação do significado." [p. 227.]

Nesse capítulo há ainda três temas dignos de nota. O primeiro trata das redes sociais: "A história da web sugere que a velocidade dos dados só vai crescer. ... A maior aceleração veio recentemente, com a ascensão das redes sociais como MySpace, Facebook e Twitter. Essas companhias são dedicadas a prover seus milhões de membros com uma incessante ‘torrente’ de ‘atualizações em tempo real’, breves notícias sobre, como diz um slogan do Twitter, "o que está acontecendo agora mesmo.’ Ao transformar mensagens íntimas – antigamente o reino da carta, do telefonema, do sussuro – no fomento de uma nova forma de mídia de massa, as redes sociais deram às pessoas novo modo irresistível de se socializar e permanecer em contato. Também colocaram uma nova ênfase no caráter imediato. ... Há uma competição feroz entre as redes sociais para disponibilizar mensagens sempre mais frescas e em maior abundância." [p. 216.]

O segundo tema tem a ver com o modelo computacional usado hoje em dia para o cérebro: "O computador digital substituiu há muito tempo o relógio, o chafariz e a máquina da fábrica como a nossa metáfora predileta para explicar a constituição e o funcionamento do cérebro. Usamos tão rotineiramente termos computacionais para descrever nosso cérebro que não percebemos mais que estamos falando metaforicamente. (Referimo-nos aos ‘circuitos’, ‘conexões’, ‘inputs’ e ‘programação’ mais do que umas poucas vezes neste livro.) Mas a visão de [Larry] Page [o fundador da Google] é extrema. Para ele, o cérebro não apenas se assemelha a um computador; ele é um computador. Sua suposição ajuda muito a explicar por que a Google equaciona inteligência com processamento de dados eficiente. Se nosso cérebro é computador, então a inteligência pode ser reduzida a uma questão de produtividade – de rodar mais bits de dados mais rapidamente no grande chip dentro do nosso crânio. A inteligência humana se torna indistinguível da máquina." [p. 235.]

Isso leva Carr a terminar o capítulo com uma interessante digressão e crítica sobre um terceiro tema adicional, a Inteligência Artificial. "O que está à espreita nos cantos escuros da Googleplex? Estamos próximos da vinda de uma IA (inteligência artificial)? Nossos suseranos de silício estão à nossa porta? Provavelmente não. A primeira conferência acadêmica dedicada à busca da inteligência artificial foi realizada no verão de 1956 – no campus da [Universidade] Dartmouth. – e parecia óbvio naquela época que os computadores em breve seriam capazes de replicar o pensamento humano. Os matemáticos e engenheiros que participaram do conclave de um mês de duração sentiam que, como escreveram em uma declaração, ‘todo aspecto do aprendizado ou de qualquer outra característica da inteligência pode em princípio ser tão bem descrito que uma máquina pode ser capaz de simulá-lo.’ Era apenas uma questão de escrever os programas certos, de traduzir os processos conscientes da mente nos passos de um algoritmo. Mas, apesar de anos de esforço posterior, o funcionamento da inteligência humana tem se esquivado de uma descrição precisa. No meio século desde a conferência de Dartmouth, os computadores avançaram à velocidade da luz, mas continuam sendo, em termos humanos, uns completos idiotas. Nossas máquinas ‘pensantes’ não têm a menor ideia do que elas estão pensando." [pp. 238-9.]

É interessante notar que neste ponto Carr faz uma distinção entre mente e cérebro: "É também uma falácia pensar que o cérebro físico e a mente pensante existam como camadas separadas em uma ‘arquitetura’ precisamente construída. Os pioneiros da neuroplasticidade mostram que o cérebro e a mente estão extraordinariamente entremeados, um moldando o outro. ... Desde que não estamos nem perto de desentrelaçar [disentangling, melhor seria, no caso, ‘destrinchar’] a hierarquia do cérebro, muito menos de compreender como os seus níveis agem e interagem, a fabricação de uma mente artificial deverá permanecer uma aspiração para as gerações futuras, senão para sempre." [pp. 240-1.]

2.9 A nossa memória e a Internet

No cap. 9, "Busque, memória", Carr analisa o conhecimento que existe sobre a nossa memória. "Um certo tempo é necessário para que uma memória primária, ou de curto prazo, seja transformada em memória secundária, ou de longo prazo. ... Memórias de curto prazo não se tornam memórias de longo prazo imediatamente, e o processo da sua consolidação é delicado. Qualquer disrupção, seja um murro na cabeça [referência a estudos com boxeadores descritos pouco antes] ou uma simples distração, pode varrer as memórias nascentes da mente. Estudos posteriores confirmaram a existência das formas de curto e longo prazo da memória e forneceram evidências adicionais da importância da fase de consolidação, durante as quais as primeiras são convertidas nas últimas." [pp. 251-2.]

A memória de curto prazo também é chamada de ‘memória de trabalho’. Várias pesquisas são citadas mostrando a história do descobrimentos dessas memórias e as estruturas cerebrais nelas envolvidas. "[...] o corpo crescente de evidências deixa claro que a memória dentro de nossas cabeças é o produto de um processo natural extraordinariamente complexo que é, a cada momento, delicadamente ajustado ao ambiente único em que cada um dos nós vive e ao padrão único de experiências pelo qual cada um de nós passa. ... Governada por sinais biológicos altamente variáveis, químicos, elétricos e genéticos, a memória humana, em todos os seus aspectos – o modo como é formada, mantida, conectada e evocada – tem quase infinitas gradações. A memória do computador existe apenas como bits binários – uns e zeros –, que são processados através de circuitos fixos, que podem estar abertos ou fechados, mas com nada no meio [isto é, na transição entre um e outro]." [pp. 259-60.] Citando o neurocientista Kobi Rosenblum, "‘O processo de criação da memória de longo prazo no cérebro humano’, diz, ‘é um dos incríveis processos tão claramente diferentes de ‘cérebros artificiais’, como aqueles de um computador. Enquanto um cérebro artificial absorve informação e a salva imediatamente na sua memória, o cérebro humano continua a processar a informação por muito tempo depois de tê-la recebido, e a qualidade das memórias depende de como a informação é processada.’ Memória biológica é viva. Memória computacional, não." [p. 260.]

Sobre a possibilidade de a nossa memória ser ‘descarregada’ (downloaded) em um computador, o autor diz: "Aqueles que celebram a ‘terceirização" [outsourcing] da memória na web estão se deixando confundir por uma metáfora. Passam por cima da natureza fundamentalmente orgânica da memória biológica. O que dá à memória real a sua riqueza e o seu caráter, para não mencionar o seu mistério e a sua fragilidade, é a sua contingência. Ela existe no tempo, mudando à medida que o corpo muda. De fato, o ato mesmo de evocar uma memória parece reiniciar o processo todo de consolidação, incluindo uma geração de proteínas para formar novas terminações sinápticas. ... De modo que, para que a antiga memória faça sentido para o cérebro presente, ela tem que ser atualizada. A memória biológica está em perpétuo estado de renovação. A memória armazenada em um computador, ao contrário, toma a forma de bits distintos e estáticos; você pode mudar os bits de um dispositivo de armazenamento para outro quantas vezes quiser, e eles permanecerão precisamente como eram." [p. 261.] "O descarregamento da memória em bancos de dados exteriores não apenas ameaça a profundidade e distintividade do self. Ameaça a profundidade e distintividade de toda a cultura que partilhamos. ... Cultura é mais do que o agregado que a Google descreve como a ‘informação do mundo’. É mais do que pode ser reduzido a um código binário e fazer um upload na net. Para permanecer vital, a cultura deve ser renovada nas mentes dos membros de cada geração. Terceirizemos a memória, e a cultura definha." [p. 268.]

Há algumas citações que são dignas de menção: "‘Diferentemente de um computador’, escreve Nelson Cowan, um especialista de [em] memória que leciona na Universidade de Michigan, ‘o cérebro humano normal nunca atinge um ponto em que as experiências não podem mais ser guardadas na memória: o cérebro nunca fica cheio.’ Diz Torkel Klingberg [um neurocientista sueco]: ‘O total de informação que pode ser armazenado na memória de longo prazo é virtualmente ilimitado.’ As evidências sugerem, ademais, que, à medida que construímos a nossa reserva de memórias, a nossa mente se torna mais aguçada. O próprio ato de lembrar, explica a psicóloga clínica Sheila Crowell em The Neurobiology of Learning, parece modificar o cérebro de um modo que pode tornar mais fácil aprender novas ideias e habilidades no futuro." [p. 262.]

Carr continua, e leva para a questão da Internet: "Nós não restringimos as nossas capacidades mentais quando armazenamos novas memórias de longo prazo. Nós as fortalecemos. A cada expansão da nossa memória corresponde um aumento de nossa inteligência. A web proporciona um suplemento conveniente e irresistível para a memória pessoal, mas quando começamos a usar a net como um substituto para a memória pessoal, desviando dos processos interiores de consolidação, arriscamo-nos a esvaziar as nossas mentes de suas riquezas. ... [A Internet] coloca mais pressão sobre nossa memória de trabalho, não somente desviando recursos das nossas faculdades de raciocínio mais elevado, mas também obstruindo a consolidação de memórias de longo prazo e o desenvolvimento de esquemas. A calculadora, uma ferramenta poderosa, mas altamente especializada, acabou sendo um auxílio para a memória. A web é uma tecnologia do esquecimento. O que determina o que lembramos e o que esquecemos? A chave para a consolidação da memória é estarmos atentos. ... Quanto mais aguçada a atenção, mais aguçada a memória." [pp. 262-3.]

Nesse ponto Carr volta à questão da distração produzida pela Internet: "O influxo de mensagens competindo entre si, que recebemos sempre que estamos on-line, não apenas sobrecarrega a nossa memória de trabalho; torna muito mais difícil para os lobos frontais concentrarem nossa atenção em apenas uma coisa. O processo de consolidação de memória sequer pode ser iniciado. E, mais uma vez graças à plasticidade de nossas vias neurais, quanto mais usamos a web, mais treinamos nosso cérebro para ser distraído – para processar a informação muito rapidamente e muito eficientemente, mas sem atenção continuada. Isso explica por que muitos de nós achamos difícil nos concentrar mesmo quanto estamos longe de computadores. Nosso cérebro se tornou propenso a esquecer e inepto para lembrar. .. À medida que o nosso uso da web torna mais difícil para nós guardar informação em nossa memória biológica, somos forçados a depender cada vez mais da vasta e facilmente buscável memória artificial da net, mesmo se isso nos torna pensadores mais superficiais." [pp. 264-5.]

2.10 Problemas das novas tecnologias

No capítulo 10, "Uma coisa como eu", o último do livro, Carr começa descrevendo o programa Eliza, desenvolvido por Joseph Weizenbaum, então professor do MIT, e seu extraordinário livro motivado pelo impacto desse sistema, Computer Power and Human Reason [1976]. Curiosamente, adotei esse livro logo depois que saiu, em 1976, em minha disciplina optativa sobre o impacto individual e social dos computadores (MAC-0424, "Computadores na Sociedade e na Empresa"), do Bacharelado em Ciência da Computação da USP, que comecei a dar em 1974 – ver detalhes da mesma em meu site. O programa Eliza simulava um psicanalista rogeriano, simplesmente modificando as afirmações e perguntas feitas pelo usuário, segundo um padrão (script) que podia ser definido. Por exemplo, como cita Carr, "[...] qualquer sentença da forma ‘eu estou BLAH’ deveria ser transformada [e exibida ao usuário] em ‘Por quanto tempo você tem estado BLAH?’ independentemente do significado de BLAH." [p. 274.]"Ao comentar sua criação, que ele reconheceu ser uma modesta e quase tola contribuição ao nascente campo do processamento de linguagem natural, [Weizenbaum] observou como é fácil para os programadores de computadores fazerem as máquinas ‘se comportaram de um modo maravilhoso, frequentemente capaz de deslumbrar mesmo o mais experiente observador.’ ... Enquanto se surpreendeu com o interesse público no seu programa, o que o chocou foi o quão rápida e profundamente as pessoas usando o software ‘se tornavam envolvidas emocionalmente com o computador’, conversando com ele como se fosse uma pessoa de verdade. Elas, ‘depois de conversar com ELIZA por um tempo, insistiam, apesar de minhas explicações, que a máquina realmente as entendia.’ ... ‘O que eu não tinha percebido’, disse Weizenbaum, ‘é que exposições relativamente curtas a um programa de computador relativamente simples podem induzir um poderoso pensamento delirante em pessoas bem normais.’ As coisas estavam prestes a se tornar ainda mais estranhas. Psiquiatras e cientistas renomados começaram a sugerir, com considerável entusiasmo, que o programa poderia desempenhar um papel valioso no tratamento real de portadores de doenças e distúrbios [mentais]." [pp. 276-7] "Escrevendo na Natural History, o proeminente astrofísico Carl Sagan expressou uma excitação igual em relação ao potencial da ELIZA. Ele previu o desenvolvimento de ‘uma rede de terminais terapêuticos computadorizados, algo como um conjunto de grandes cabines telefônicas, nas quais, por uns poucos dólares por sessão, poderíamos falar com um psicoterapeuta atencioso, testado e amplamente não diretivo.’" [p. 278.]

"A reação ao software amedrontou Weizenbaum. Implantou em sua mente uma questão que nunca havia se colocado antes, mas que o preocuparia por muitos anos: ‘O que tem o computador que elevou a visão do homem como uma máquina a um novo nível de plausibilidade?’" [pp. 279-80.] Isso motivou-o a escrever o citado livro, uma década depois da estréia de ELIZA. "Além de ser um tratado de erudição sobre o funcionamento de computadores e software, o livro de Weizenbaum foi um grito de protesto, um exame apaixonado e às vezes farisaico dos limites de sua profissão por um programador de computadores. O livro não fez com que o autor ganhasse a aceitação de seus pares. Depois que foi publicado, Weizenbaum foi expurgado como herético pelos principais cientistas da computação, especialmente aqueles que faziam pesquisas em inteligência artificial. John Mc Carthy [justamente o introdutor da expressão ‘inteligência artificial’], um dos organizadores da conferência original de IA de Dartmouth [ver o item 2.8 acima], falou por muitos tecnólogos quando, em uma resenha desdenhosa, descartou o O poder do computador e a razão humana com um livro ‘irracional’ e criticou Weizenbaum pelo seu ‘moralismo não científico’. Fora do campo do processamento de dados, o livro causou apenas uma breve comoção. Ele apareceu exatamente quando os primeiros computadores pessoais estavam saindo das oficinas dos aficionados para a produção em massa. O público, disposto a uma orgia de compras que colocaria computadores em quase todo escritório, casa e escola do país, não estava no estado de espírito para nutrir as dúvidas de um apóstata." [pp. 281-2.]

Em seguida Carr entra em considerações sobre a influência das tecnologias: "Sempre que usamos uma ferramenta para exercer um maior controle sobre o mundo exterior, mudamos nossa relação com esse mundo. O controle só pode ser exercido com um distanciamento psicológico. Em alguns casos, a alienação é justamente o que dá o valor a uma ferramenta. Construímos casa ... por que queremos ser alienados do vento, da chuva e do frio." [pp. 287-8.]

O autor cita uma interessante pesquisa feita pelo psicólogo clínico Christof van Nimwegen usando um sistema de ajuda (help) para orientar a solução de um complicado quebra-cabeça. "Os achados indicaram, como van Nimwegen relatou, que aqueles [sujeitos] usando um software sem auxílios eram mais capacitados para planejar com antecedência e traçar estratégias, enquanto que aqueles usando o software com ajuda tendiam a se basear na simples tentativa e erro. De fato, verificou-se que aqueles com o software com ajuda ‘clicavam a esmo, sem propósito’ quando tentavam resolver o quebra-cabeça. Oito meses depois do experimento, van Nimwegen reuniu os dois grupos e solicitou que jogassem novamente o quebra-cabeça das bolinhas coloridas, assim como uma variação dele. Descobriu que os que haviam originalmente usado o software sem auxílios eram capazes de resolver os quebra-cabeças quase duas vezes mais rapidamente do que aqueles que tinham usado o software com ajuda. ... Quanto mais as pessoas dependiam da orientação explícita dos programas de software, menos envolvidas ficavam na tarefa e acabavam aprendendo menos. ... Um polemista colocaria a mesma coisa com menos rodeios: ‘Quanto mais brilhante o software, mais apagado o usuário’." [pp. 291-2.]

Em seguida, Carr coloca esses resultados em relação com a Internet: "As companhias da internet estão em competição feroz para tornar mais fácil a vida das pessoas, para transferir a carga da solução de problemas e dos outros labores mentais do usuário para o microprocessador. ... Nós queremos softwares [sic] amigáveis e com ajuda. Por que seria de outro modo? No entanto, à medida que cedemos aos softwares [sic] mais do esforço de pensar, ficamos mais propensos a diminuir a nossa capacidade cerebral de modos sutis, mas significativos. Quando alguém escavando valas troca a sua pá por uma escavadeira, os músculos de seus braços se enfraquecem mesmo que a sua eficiência aumente. Uma troca semelhante pode acontecer ao automatizarmos o trabalho da mente." [p. 293.]

O autor relata em seguida um estudo feito na Universidade de Chicago por James Evans, que "reuniu uma enorme base de dados sobre 34 milhões de artigos de estudos publicados em revistas acadêmicas de 1945 a 2005." O resultado foi surpreendente. "À medida que mais revistas passaram a ser on-line, os estudiosos na realidade citavam menos artigos do que antes. E, à medida que os antigos números de revistas impressas eram digitalizados e disponibilizados na web, os estudiosos citavam artigos mais recentes com frequência cada vez maior. O alargamento da informação disponível levou, como Evans escreveu, a um ‘estreitamento da ciência e da erudição’." [p. 294.]

Voltando a Taylor (ver o item 2.8 acima), Carr diz: "Antes de Frederick Taylor ter introduzido seu sistema de administração científica, o operário individual, baseado no seu treinamento, conhecimento e experiência, podia tomar as suas próprias decisões sobre como fazer seu trabalho. Ele escrevia seu próprio script. Depois de Taylor, o operário começou a seguir um script escrito por outra pessoa. ... A bagunça que vem com a autonomia individual foi arrumada, e a fábrica como um todo se tornou mais eficiente, e a sua produção mais previsível. A indústria prosperou. O que se perdeu com a bagunça foi a iniciativa pessoal, a criatividade e a extravagância. A artesania consciente se transformou em rotina inconsciente. Quando estamos on-line, também estamos seguindo scripts escritos pelos outros – instruções algorítmicas que poucos de nós somos capazes de entender, mesmo se os códigos ocultos nos fossem revelados. Quando buscamos informações pelo Google ou outros buscadores, estamos seguindo um script. Quando olharmos um produto que a Amazon ou a Netflix nos recomenda, estamos seguindo um script. ... Em vez de agir conforme o nosso conhecimento e intuição, seguimos os movimentos." [pp. 295-6.]

Em seguida, Carr cita uma pesquisa acadêmica que submeteu três dúzias de pessoas a "testes rigorosos, mentalmente fatigantes, para medir a capacidade de sua memória de trabalho e sua capacidade para exercer controle de cima para baixo sobre sua atenção. ... Os sujeitos foram então divididos em dois grupos. Metade deles passou uma hora caminhando por um parque florestal isolado e a outra metade despendeu um igual período de tempo caminhando nas ruas movimentadas do centro da cidade. Ambos os grupos foram submetidos aos testes uma segunda vez. Passar um tempo no parque, descobriram os pesquisadores, ‘melhorou significativamente’ o desempenho nos testes cognitivos, indicando um incremento substancial da atenção. Caminhar na cidade, ao contrário, não acarretou nenhum aprimoramento dos resultados dos testes. ... Passar um tempo no mundo natural parece ser de ‘vital importância’ para o ‘funcionamento cognitivo efetivo’." [p. 297.] Carr acrescenta: "Não há ... na internet nenhum local tranquilo onde a contemplação possa realizar a sua mágica de recuperação. Há somente a agitação infindável, hipnótica, das ruas urbanas. ... Um dos maiores perigos que enfrentamos ao automatizarmos o trabalho de nossas mentes, ao cedermos o controle do fluxo de nossos pensamentos e memórias a um poderoso sistema eletrônico, é aquele que denunciam os temores tanto do cientista Joseph Weizenbaum como do artista Richard Foreman: uma lenta erosão do nosso caráter humano e da nossa humanidade.

Mas a internet não tem apenas um efeito deletério sobre a cognição. Citando uma pesquisa sobre atividades emotivas, o autor diz: "O experimento, dizem os estudiosos, indica que quanto mais distraídos nos tornamos, menos aptos somos a experimentar as formas mais sutis, mais distintamente humanas, de empatia, compaixão e outras emoções. ... Seria precipitado concluir que a internet está solapando nosso senso moral. Não seria precipitado sugerir que, à medida que a net está fazendo o roteamento dos nossos caminhos vitais e diminuindo a nossa capacidade de contemplação, está alterando a profundidade de nossas emoções, assim como de nossos pensamentos. [p. 299.]

Para concluir, duas frases: "O avanço tumultuado da tecnologia poderia ... abafar as percepções, pensamentos e emoções refinados que somente surgem com a contemplação e a reflexão." [p. 301.]. No epílogo, Carr ainda escreve, remetendo-se ao início do livro (ver item 2.1 acima): "Essa é a essência da sombria profecia de Kubrick: à medida que passarmos a depender de computadores para mediar a nossa compreensão do mundo, então a nossa inteligência se achatará em uma inteligência artificial [it is our own intelligence that flattens into artificial intelligence]." [p. 305.]

3. Comentários

O livro é excepcional pela profundidade cultural, pela farta citação de trabalhos científicos e de livros, bem como de opiniões de outros dando base às ideias do autor ou corroborando-as, pela maneira interessantíssima com que os assuntos são expostos e pela sua fluência.

A tradução é razoável – note-se como nas citações no resumo acima foi necessário chamar a atenção para muito poucos problemas de tradução. Os trechos correspondentes só foram comparados com o original pois pareceram um pouco estranhos; no entanto, vários desses trechos correspondiam ao original.

Há duas diferenças em relação ao original. A primeira á a falta de um índice remissivo, muito importante para se localizar em que páginas são citados certos termos e nomes de pessoas. A segunda é o fato de as notas e referências terem sido colocadas em notas de rodapé, ao contrário do original, que as apresenta no fim. É muito incômodo ter que parar a leitura e ir para o fim do livro, tendo o trabalho de localizar a referência pelo seu capítulo e número. No entanto, quem sabe, no espírito do livro, o autor escolheu o método de colocá-las no fim justamente para que alguém que não se interesse por elas não desviar a atenção do texto principal. Porém, esse desvio de atenção é mínimo quando se tem que ler uma nota de rodapé na mesma página.

Tanto no original como na tradução, as referências bibliográficas, fora as notas de rodapé na tradução, estão divididas por capítulo. Isso dificulta a localização de algumas delas pelo nome do autor.

No restante deste artigo os trechos citados do livro foram copiados do resumo acima; para localizá-los, basta usar uma busca com o dispositivo de busca na página do navegador sendo usado, empregando uma parte da citação; para retornar ao trecho inicial, basta repetir a mesma busca. Uma outra possibilidade é abrir este artigo em duas páginas do navegador, e chavear entre elas, tomando-se o cuidado para que esse método não produza uma distração análoga ao do uso de vínculos (links), como Carr chamou a atenção.

O meu comentário principal sobre o conteúdo é a insistência do autor em chamar a atenção para as alterações que a Internet faz sobre o cérebro, como por exemplo em "Por meses, as minhas sinapses clamavam pela sua dose de net." Obviamente, ele não sentia suas sinapses e seus neurônios, o que ele sentia era o efeito sobre sua mente, que é o que podemos observar conscientemente por meio de nosso pensar, nosso sentir e nosso querer. Curiosamente, Carr usa tanto a palavra ‘mente’ (mind), como em "A minha mente não estava indo embora, mas mudando.", "Minha mente era capturada", "a minha mente agora espera receber informação", quanto a palavra ‘cérebro’, como em "[As pessoas] tinham que treinar seus cérebros para ignorar tudo o mais que estava ocorrendo ao seu redor", "alguém, ou algo, tem estado mexendo com meu cérebro", "Sentia saudades de meu antigo cérebro.", "O próprio modo como meu cérebro funcionava parecia estar mudando." Assim, a menos dos casos de relatos de pesquisas feitas diretamente no cérebro, por exemplo com tomografia, o correto seria usar ‘mente’. Ele diz que se usa tanto termos computacionais para o funcionamento do cérebro (como "‘circuitos’, ‘conexões’, ‘inputs’ e ‘programação’", que "não percebemos mais que estamos falando metaforicamente." No entanto, a ênfase que ele dá ao cérebro e não à mente não corresponde a metáforas.

Aparentemente, em boa parte do livro parece que Carr não faz distinção entre mente e cérebro. Mas eu faço.

Para mim a influência da Internet (e também dos outros meios eletrônicos TV, video games e computadores) se dá principalmente na mente, que considero englobar o cérebro mas ser muito mais do que este. O cérebro é essencial para a mente ter consciência dos processos mentais. Considero os processos cerebrais como sendo normalmente produzidos pela mente de maneira análoga ao movimento de um braço, que não é originalmente produzido por ele, mas por um impulso de vontade, consciente ou inconsciente; em ambos esses casos, considero que a origem dos impulsos que levam àquele movimento é a mente; esta pode, obviamente, ser excitada por um outro evento, como o calor de um fogo próximo ao braço ou uma picada de um espinho, o que não deixa de ser um impulso de vontade. Seguindo a concepção introduzida por Rudolf Steiner (ver, por exemplo, [Steiner 2008]), considero que as atividades interiores pensar, sentir e querer não se originam no cérebro, apesar de este tomar parte desses processos, isto é, pode-se considerar o cérebro com uma parte física da mente. Daí uma lesão cerebral poder alterar ou mesmo impedir alguns aspectos dessas funções. Note-se que, contrariamente ao que admite António Damásio [Damásio 1994] e outros autores, não se pode afirmar cientificamente que essas lesões indicam que esses processos, e também a memória, localizam-se exclusivamente no cérebro ou são geradas por ele. O máximo que se pode afirmar cientificamente é que o cérebro participa dessas funções. Observe-se que todas essas funções são grandes incógnitas na neurociência, que hoje em dia utiliza primordialmente o modelo computacional do cérebro. No entanto, para começar, não se conhece o código usado por ele, nem os algoritmos que o interpretam. Sem um código, não há computação. Parece-me que, dada a quantidade de neurônios no cérebro (86 bilhões, segundo as pesquisas mais recentes [Zorzetto, p. 21]), e o talvez trilhão de sinapses conectando-os, e ainda o fato de que células biológicas não têm um comportamento elétrico preciso, o resultado sem um controle ‘externo’ seria puro ruído, e nossas funções mentais e motoras seriam totalmente aleatórias. Para mim, esse controle é exercido pela mente. Carr diz que a memória "tem quase infinitas gradações"; ora, qual a diferença entre "quase infinitas" e ‘infinitas’? Suas afirmações e citações de que "o cérebro nunca fica cheio", e "[o] que pode ser armazenado na memória de longo prazo é virtualmente ilimitado", levam à conclusão de que a memória é infinita e, portanto, não reside no cérebro, que é finito, como mostra o número de neurônios citado acima. Aliás, Carr diz que ela é um "mistério". Ele cita as hipotéticas memórias de curto prazo (ou de trabalho) e de longo prazo, mas não se sabe qual o processo que faz como que algo ‘passe’ de uma para a outra. Não se sabe nem mesmo como algo está ‘armazenado’ nessas memórias, e onde elas se encontram precisamente. A propósito, ele não cita o esquecimento e posterior lembrança de algo como uma distinção essencial para as memórias digitais: nestas, ou algo está gravado, ou não está. Uma indicação de que a memória não está armazenada no cérebro e, sim, na mente, é o fato de uma certa lesão provocar a perda da lembrança de certos fatos, mas com o tempo, ela poder voltar.

O livro não descreve as transformações produzidas pela Internet no cérebro, apenas diz vagamente que elas existem. É curioso que muitas pesquisas por ele citadas, especialmente as do item 2.5 acima, mostram a influência da Internet em capacidades mentais, como memorização e compreensão, e não envolveram exames do cérebro. Um exemplo é a citação de uma delas referindo-se a "transformações interiores da consciência" e não ‘do cérebro’. De qualquer modo, aprecio o que ele traz de considerações e, principalmente, citações de trabalhos científicos, sobre as alterações produzidas no cérebro pelo uso da Internet, já que isso dá um aspecto científico, de certeza dos resultados e, principalmente, é o que hoje em dia dá objetividade e credibilidade às afirmações e convence as pessoas.

Curiosamente, Carr parece admitir que o cérebro não é um computador ou uma máquina, como por exemplo na consideração negativa "Se nosso cérebro é computador ... A inteligência humana se torna indistinguível da máquina." No entanto, ele usa muitas vezes a expressão de que o cérebro processa informação ou dados, como por exemplo na frase "o cérebro humano continua a processar a informação por muito tempo depois de tê-la recebido, ...". Isso é indevido. Em primeiro lugar, deve-se fazer uma distinção entre dado e informação. Como expus em meu artigo "Dado, informação, conhecimento e competência" [Setzer 2008b] dado é uma sequência de símbolos quantificados ou quantificáveis, sujeitos a regras formais de formação. Informação requer compreensão por parte do receptor; um computador não processa informações, processa dados. Por exemplo, para quem não entende chinês, um texto nessa língua, por exemplo uma tabela de cidades e suas temperaturas mínima e máxima no dia anterior, como é publicada em jornais, é uma coleção de dados; como essa pessoa não compreende o que o texto representa, não lhe traz nenhuma informação. O cérebro, sendo físico, só pode processar dados, como bem expôs John Searle [1991], especialmente no seu capítulo 2, "Can computers think?" ("Os computadores podem pensar?"), com sua metáfora do "Quarto Chinês" [pp. 32-3]. Nela, um operador que não fala chinês faz traduções desta língua para o inglês seguindo regras estritas de combinações de ideogramas, sem entender patavina do que está fazendo, isto é, age como um computador. O fato de termos compreensão significa que no cérebro há algo além de execução de regras estritas. Segundo Searle, o cérebro é um sistema puramente físico [p. 39], mas não é um computador, que é uma máquina puramente sintática, pois segue regras estritas, matemáticas, de manipulação de símbolos formais. No entanto, ele não é capaz de dizer o que o cérebro é e de onde aparece a semântica, a compreensão. Posso, portanto, fazer a conjetura de que só com o cérebro não chegaríamos à compreensão, ao significado; para isso, é necessário ter uma mente que, apesar de englobar o cérebro, transcende a ele. Tenho muito mais a dizer sobre isso, mas iria muito longe.

No seu cap. 8 "A igreja da Google" Carr critica a visão computacional do cérebro e da mente que, segundo essa visão, são idênticos. Felizmente existem exceções entre os cientistas: ninguém menos do que Roger Penrose, em seu magnífico livro The Emperor’s New Mind [1991] afirma categoricamente não encarar o cérebro como um dispositivo computacional, isto é, ele acha que o funcionamento do cérebro não poderá ser descrito algoritmicamente. Mas Carr não aponta para a razão profunda de se adotar aquela visão, e nem para o fato de ser a visão corrente da neurociência. Essa razão é o fato de a concepção de mundo da grande maioria, senão a quase totalidade dos cientistas, especialmente os neurocientistas, ser o materialismo, isto é, a de que só existem matéria e energia físicas no universo. Por outro lado, um espiritualista coerente, isto é, alguém que admite (idealmente, como hipótese de trabalho) a existência de algo não físico no ser humano e no universo, jamais deveria dizer que o cérebro e mente são a mesma coisa, e jamais deveria encarar o cérebro como um computador. É interessante notar que em certos trechos Carr parece distinguir mente de cérebro; no entanto, não chega ao ponto de afirmar que a mente não é física, como eu faço. No entanto, sua observação de que ela está "entremeada" com o cérebro parece-me perfeitamente correta. Sem o cérebro, a mente não teria certas capacidades, como a autoconsciência e, portanto, uma pessoa não poderia controlar seu pensamento. Por exemplo, qualquer pessoa pode fazer a experiência de escolher um entre dois pensamentos triviais, isto é, não ligados com nenhum sentimento ou necessidade pessoais – como o caso de dois números sem nenhum significado, ou a imagem de dois clips de papel, um voltado para a direita e outro para a esquerda –, e em seguida concentrar-se sobre um deles por alguns instantes. A possibilidade dessa escolha consciente mostra, para a pessoa que faz esse exercício mental, a possibilidade de o pensamento se autodeterminar, isto é, ser livre, o que é impossível em uma máquina ou qualquer sistema puramente físico, pois a matéria está inexoravelmente sujeita às ‘leis" e condições físicas – se assim não fosse, não seria possível projetar e construir obras civis e máquinas.

O primeiro capítulo "Digressão" do livro tem o título "Sobre o que o cérebro pensa quando pensa em si mesmo" [p. 59.] Ora, pois, como será que Carr se expressa em sua vida diária? Provavelmente, por exemplo, "Eu penso que vai chover nesta tarde." e não "Meu cérebro pensa que vai chover nesta tarde." Assim, aquele título não corresponde à sua própria atitude, que se refere ao seu Eu, sua individualidade, algo muito maior do que o seu cérebro. Em outro trecho, ele escreve: "Podemos ver os produtos do pensamento – obras de arte, descobertas científicas, símbolos preservados em documentos –, mas não o próprio pensamento." [p. 76.] Sim, não podemos ver o nosso pensamento, mas podemos observá-lo com ele próprio. De fato, o pensar pode refletir sobre si próprio, uma atividade única no universo, chamada por Rudolf Steiner de "estado de exceção" do pensar, pois este normalmente está dirigido às percepções sensoriais ou à memória [Steiner 1988]. Nesse estado de exceção, a ação (pensar) confunde-se com o objeto da ação (o pensar). Jamais uma máquina ou um sistema físico poderão fazer tal coisa; trata-se de um fenômeno puramente humano, único no universo. O título daquela digressão é, portanto, muito significativo, mas incorreto: não é o cérebro que pensa sobre si próprio, é o pensar que o faz, mostrando assim que ele transcende o sistema físico do cérebro.

Qual o problema de confundir mente com cérebro? Se todas as atividades mentais são geradas pelo cérebro, como este é físico tudo se passa como se ele fosse uma máquina ou, na melhor das hipóteses, um sistema puramente físico, talvez usando tipos de energia desconhecidos, mas físicos, como querem alguns filósofos. O ser humano todo seria então puramente físico, material. Acontece que da matéria não pode advir liberdade, como foi exposto. Sem livre arbítrio, não se pode falar de responsabilidade pessoal, nem de moral e nem de amor altruísta. Com isso, há uma profunda e perigosa degradação da concepção que o ser humano faz de si próprio. Pelo contrário, admitindo-se como hipótese de trabalho que a atividade cerebral é consequência de uma mente não física, é possível falar-se em livre arbítrio e em todo o resto descrito, e se pode ter uma elevada concepção do que o ser humano é. Falando-se em cérebro, como faz Carr com frequência, e até no título do livro, não se deixa a possibilidade de haver algo transcendente no ser humano em relação à matéria. Falando-se em mente, deixa-se pelo menos essa possibilidade em aberto.

A maior falta do livro parece-me ser o enfoque dos efeitos da Internet apenas em adultos. Curiosamente, Carr menciona rapidamente, em suas entrevistas, o problema do uso por crianças, por exemplo em [Leite 2010 e Castro 2012], dizendo que elas devem familiarizar-se com a Internet. No item 4 abaixo, Complementações, faço considerações sobre esse ponto e os efeitos dela em crianças e adolescentes.

O livro também peca pela falta de recomendações para o leitor precaver-se contra os males da Internet apontados. Isso foi uma intenção do autor, que disse em uma entrevista: "Não escrevi o livro para ser do tipo autoajuda." [Leite 2010]. Dessa maneira, Carr deixa o leitor em liberdade para escolher as medidas que achar melhor. No entanto, vimos no item 2.1 "Confissão do autor: como o livro foi escrito" que ele relata sua própria experiência do que fez para livrar-se de parte dos males da Internet. No item 5 abaixo, Recomendações, dou várias sugestões nesse sentido, pois algumas certamente não ocorreriam aos leitores do livro.

4. Complementações

O conteúdo do livro fez-me lembrar daquele que considero o principal livro de Neil Postman, Amusing Ourselves to Death [Postman 1986], autor citado por Carr, mas com relação a outra de suas excelentes obras, Tecnopólio [Postman 1994]. Naquele livro, um dos melhores libelos contra a TV como veículo de comunicação já publicados, Postman mostra que, com o advento do telégrafo, os jornais, que antes quase só traziam notícias locais, isto é, dentro do contexto dos leitores, passaram a trazer notícias de regiões distantes, que se tornaram atraentes não pela relevância local, mas pela atualidade. As redes sociais na Internet introduziram a comunicação imediata entre muitas pessoas, tornando a atualidade uma atração em si, independente da sua relevância. Que importância tem para meus conhecidos ou pessoas que se interessam pelas minhas ideias saber que estou entrando em um supermercado ou no banheiro, ou minha opinião sobre a temperatura no momento? Parece-me que se trata de uma atração pelo imediatismo e um endeusamento da irrelevância. Mas o que se poderia esperar de pessoas que gostam de assistir TV? Mais da metade de toda a humanidade é bestificada pela TV todos os dias (em uma média ao redor de 4 horas por dia); com isso, ela constitui-se na maior tragédia que já existiu.

Carr não menciona o condicionamento produzido pela Internet. Antes de abordar esta última, vejamos inicialmente o condicionamento produzido pela TV. Como já foi provado neurofisiologicamente, o aparelho de TV induz normalmente um estado de sonolência nos telespectadores. Por isso ela produza a gravação das imagens diretamente no subconsciente ou no inconsciente. Todas as vivências de uma pessoa ficam gravados nela; por exemplo, o leitor deste artigo não será exatamente o mesmo depois de tê-lo lido. A grande diferença em relação à TV é que um texto escrito exige atenção para ser compreendido. A gravação das imagens no subsconsciente é que produziu um casamento perfeito entre a TV e a propaganda. Cerca de 2/3 dos gastos com propaganda no Brasil vão para a TV – não só por ser o veículo de comunicação mais difundido (98% dos lares no Brasil têm pelo menos um aparelho de TV), mas certamente porque essa propaganda funciona: grandes empresas não iriam gastar rios de dinheiro em propaganda na TV se ela não funcionasse. Ela funciona devido à gravação das imagens transmitidas diretamente no subsconsciente. Devido a isso, o telespectador pode sentir um desejo por um determinado produto sem saber por que. Em outras palavras, a TV tem um efeito subliminar por natureza. Pois bem, o efeito de distração produzido pela Internet, tão bem salientado por Carr, talvez produza esse efeito subliminar em relação à propaganda que ela exibe. Veja-se a página inicial (home page) de qualquer site de banco, de empresa, de jornais e de muitas instituições e associações, para se verificar que em geral ela tem uma quantidade imensa de informações, em forma de caixas de textos, imagens e muitas vezes animação. Uma página com uma enxurrada de seções distintas tornou-se um padrão na Internet, isto é, uma página que não tem esse formato parece deslocada, antiquada. Certamente nenhum usuário observa atentamente cada um desses trechos da tela, isto é, os que não são observados passam a ter um efeito subliminar, pois é registrado pelo subconsciente. Quando se abre um e-mail usando o webmail gmail, aparece no lado direito uma porção de anúncios. Eu uso o gmail, devido à sua praticidade, mas jamais olhei e abri algum desses anúncios; no entanto, talvez eles tenham um efeito subliminar sobre mim, pois o meu subconsciente deve ter gravado todos eles. Esse efeito subliminar constitui o cerne do interessante livro de Wilson Bryan Key; ele mostra, por exemplo, a foto de uma capa de um número da revista Time onde aparece Muamar Kadaffi [Key 1989, fig. 9]. Em outra foto, ele mostra a anterior salientando uns traços que formam a palavra kill, matar, desenhada, portanto, subrepticiamente no rosto [fig. 39]. Não se deve esquecer que os Estados Unidos é o país da propaganda; nele, ela é venerada como algo essencial para o funcionamento da sociedade, sem haver a consciência de que ela vai contra a liberdade individual, tão prezada naquele país. Em minha caracterização, propaganda é a ciência, a técnica e a arte de influenciar pessoas a fazerem algo que não fariam sem essa influência. O efeito subliminar é parte dessa influência – talvez a parte mais essencial. Aparelhos com tela são ideais para se produzir esse efeito; só a existência de uma frase ou figura ao lado de um texto que se está lendo já o produz. O ser humano devia estar desenvolvendo cada vez mais consciência em seus atos, isto é, pensar antes de agir; a propaganda vai justamente contra esse tendência, que vem principalmente desde o século XV. Animais não pensam antes de agir – agem por instinto ou condicionamento; nesse sentido, a propaganda animaliza o ser humano.

O gmail da empresa Google coleta dados de todos os e-mails recebidos e enviados por um usuário, formando com isso um perfil dele. Com esse perfil, o gmail tenta exibir, ao lado de cada e-mail aberto, a propaganda mais adequada para o seu usuário. Certamente o google docs – onde se podem armazenar arquivos com textos, planilhas etc., e inclusive compartilhá-los com várias pessoas – deve fazer isso. Não instalei o navegador Chrome da Google (uso o Firefox, da Mozilla) pois não quero que ela colete ainda mais dados sobre mim do que já faz com o gmail, isto é, aperfeiçoando o meu perfil nela gravado a partir das páginas que visito. (Mas não duvido que, se abro uma página acionando um vínculo em um e-mail do gmail, isso é registrado pela Google.) Possivelmente qualquer sistema da Google que exija um cadastramento prévio e uma identificação (log-in) do usuário em cada uso produz a coleta de informações sobre a utilização que se faz do sistema.

Essa coleta de informações significa também um efeito terrível da Internet: ela está servindo como o veículo para a perda da privacidade. Mais ainda, por meio das redes sociais, do tipo Facebook, Orkut e Twitter, ela está servindo para impor a mentalidade de que não deve haver privacidade. O usuário deseja que outros saibam o que ele está fazendo, o que ele gosta etc. A diminuição da privacidade significa um outro prejuízo para a humanidade: a diminuição da individualidade, que também desenvolveu-se especialmente a partir do século XV. Por exemplo, antes da Renascença os artistas plásticos não costumavam assinar suas obras; muitas vezes não se distinguia uma obra como sendo de um mestre ou dos seus discípulos em sua escola, como foram os casos de Cimabue (1240-1302) e Giotto (1266-1337). Um famoso caso dessas assinaturas foi o logotipo adotado por Albrecht Dürer (1471-1528) com suas iniciais. Na antiguidade remota, o indivíduo sentia-se muito mais como membro de sua tribo, de sua comunidade ou mesmo de sua cidade (caso da Grécia antiga), nação ou império (como o romano), do que como indivíduo. Isto é, não havia a autoconsciência existente em nossos dias. Nesse sentido, juntamente com a diminuição da liberdade a Internet representa um retrocesso a tempos já ultrapassados. Qualquer desses retrocessos, como por exemplo o fundamentalismo religioso e estruturas hierárquicas de poder (inclusive no gerenciamento de empresas) implica numa degeneração da condição humana atual e como ela deve desenvolver-se no futuro.

Uma das principais complementações que tenho a fazer ao livro é sobre o impacto da Internet em crianças e adolescentes. Como expus em meu artigo "Os efeitos negativos dos meios eletrônicos em crianças, adolescentes e adultos" [Setzer 2008a], os meios eletrônicos não são adequados para crianças e adolescentes, pelo contrário, são altamente prejudiciais ao desenvolvimento sadio, especialmente o mental, mas também o físico, pois grande parte da epidemia atual de excesso de peso e de obesidade é devida à inatividade física frente aos aparelhos eletrônicos. No caso específico da Internet, o relato de Carr sobre como teve que mudar seus hábitos em relação a ela para poder escrever o livro, como descrito no item 2.1 acima, mostra que ela exige duas coisas essenciais: autoconsciência (para se reconhecer o que está se passando consigo próprio) e autocontrole (para se mudar conscientemente de hábitos). Ora, crianças e adolescentes estão justamente desenvolvendo essas capacidades; se já as tivessem plenamente desenvolvidas, estariam indevidamente comportando-se como adultos. Acontece que não deve haver queima de etapas em educação; uma criança que não foi infantil, mesmo que parcialmente, será provavelmente um adolescente e um adulto com problemas, principalmente psicológicos e sociais. Todos os meios eletrônicos, incluindo a Internet, têm um efeito absolutamente garantido: aceleram o desenvolvimento, especialmente o intelectual e o emotivo. Só que uma criança ou adolescente intelectualizados já são deturpados.

Quanto ao autocontrole, muito adultos não estão conseguindo controlar-se no uso da Internet, como por exemplo ao verificarem a todo momento se chegou algum e-mail ou mensagem novos, navegando sem parar, jogando jogos pela Internet etc.; como se espera que crianças e adolescentes vão consegui-lo? Mas não é apenas autoconsciência e autocontrole que a Internet exige. Ela exige também muito conhecimento e discernimento, para se distinguir o que é verdadeiro do que é falso (haja falsidade na Internet, como os famosos hoaxes, notícias falsas, como por exemplo uma que circula nela há anos, de que o governo inglês proibiu o ensino do Holocausto nazista nas escolas), o que é belo do que é feio, o que é bom do que é mau. Novamente, crianças e adolescentes também estão desenvolvendo conhecimento e discernimento. Mas isso me leva a dois outros grupos de pessoas para as quais a Internet não é adequada: pessoas sem cultura e idosos ingênuos. Conheço uma pessoa bem idosa, com muito conhecimento, mas que é ingênua a ponto de achar que, se um amigo envia uma mensagem, ela deve ser verdadeira – e mostrou isso justamente com o caso que citei, da proibição do ensino do Holocausto. Essa pessoa minha conhecida já distribuiu esse e-mail mais de 6 vezes, apesar de eu ter logo na primeira vez mostrado que era um hoax denunciado pelo próprio governo inglês e pela BBC.

Como bem salientou Carr, a Internet é produz muita distração, prejudicando as capacidades de "concentração e de contemplação". Ora, crianças e adolescentes deveriam estar desenvolvendo essas capacidades; sem concentração é, por exemplo, impossível estudar. Em lugar de desenvolver essas capacidades, com a Internet (e com os meios eletrônicos em geral) elas desenvolvem justamente o contrário: a incapacidade para exercê-las. Um adulto, como foi o caso de Carr, como ele próprio se descreve no item 2.1 acima, tem sua capacidade de concentração prejudicada, e isso é muito ruim. Mas prejudicar o desenvolvimento dessa capacidade em crianças a adolescentes pode significar um mal para toda a vida.

Além dos prejuízos que a Internet causa em crianças e adolescentes para seu desenvolvimento sadio, há um ou outro aspecto extremamente grave: o perigo representado pelos predadores, especialmente pedófilos e maníacos sexuais. O livro de Gregory Smith, Como Proteger seus Filhos na Internet [2009], trata justamente desse problema gravíssimo e assustadoramente comum: uma enorme porcentagem de crianças e adolescentes que usam a Internet já sofreram assédio durante seu uso, trocaram mensagens com pessoas desconhecidas e fizeram acesso a sites indesejáveis. A respeito desse livro, ver minha resenha [Setzer 2008c].

Carr não o diz explicitamente, mas mostra perfeitamente como a tecnologia não é neutra. Assim como a Internet influencia as atitudes e até fisicamente os seus usuários, qualquer máquina tem esse efeito. No fim do cap. 10, "Uma coisa como eu" ele cita o filósofo alemão Heidegger (que se engraçou com os nazistas mas depois foi redimido por ninguém menos que sua ex-estudante e namorada, a famosa filósofa judia Hanna Arendt): "Na década de 1950, Martin Heidegger observou que ‘a onda de revolução tecnológica’ iminente poderia ‘cativar, enfeitiçar, deslumbrar e distrair de tal forma o homem que o pensamento calculista poderia um dia vir a ser aceito e praticado como o único modo de pensar." [pp. 300-1] Ele cita o famoso ensaio de Heidegger [1949], "The question concerning technology": "Esse ‘frenesi da tecnologia’, escreveu Heidegger, ameaça ‘entricheirar-se em toda parte’." [p. 301.] Pois justo no terceiro parágrafo desse ensaio, Heidegger escreveu: "Em toda parte, nós permanecemos sem liberdade e acorrentados à tecnologia, tanto se nós a afirmamos ou negamos. Mas nós somos entregues a ela da pior maneira possível se a encaramos como algo neutro; pois essa concepção que se faz dela, à qual [concepção] nós apreciamos especialmente prestar homenagem, torna-nos totalmente cegos para a essência da tecnologia."

Acontece que nada, absolutamente nada é neutro em relação ao ser humano, pois este incorpora todas as suas vivências. Por exemplo, ao ler este artigo, o leitor vai se modificando um pouco, incorporando o que lê e pensa durante a leitura. Ao final dela, a pessoa não é mais exatamente a mesma que era quando a começou.

Como Carr cita, é necessário manter sempre um "distanciamento psicológico" em relação à tecnologia. Isso é fácil de compreender: se a pessoa envolve-se sentimentalmente com uma tecnologia, por exemplo gostando dela como gostaria de uma pessoa ou animal, não consegue usá-la objetivamente como simples instrumento, e pode vir depender dela e ser dominado por ela. Mencionei envolvimento com pessoas, animais e não com plantas e minerais pois os dois primeiros têm sentimentos, os últimos não. Pode-se admirar uma máquina pela maneira inteligente e estética como foi projetada, bem como por sua utilidade. No entanto, respeitar, venerar ou amar uma máquina são aberrações. Envolver-se emocionalmente com máquinas pode levar a uma consequência terrível: não fazer mais distinção entre seres humanos e máquinas, isto é, considerar os primeiros como máquinas. Isso é particularmente perigoso com o computador. Como Joseph Weizenbaum, citado por Carr, muito bem questionou, "O que tem o computador que elevou a visão do homem como uma máquina a um novo nível de plausibilidade?" Acontece que o computador simula certos tipos de pensamento humanos, de modo que, no ponto de vista do pensar, essa atividade mais poderosa do ser humano, pode haver uma confusão de que este pensa como um computador processa dados. Essa é, por sinal, a mentalidade dos neurocientistas em geral, bem exemplificada no livro de Miguel Nicolelis [2011]. Além disso, o computador dá uma sensação de poder (a máquina sempre executa o que se lhe comanda, a menos de raros casos de pane), e apresenta um ambiente virtual muito rico que, justamente por ser virtual, aliena o usuário da realidade, especialmente de seus próprios problemas. No caso da Internet, tem-se ainda o fato de ela ser atrativa por provocar distração, como Carr chamou muito bem a atenção.

Carr não cita o fato de certas pessoas afirmarem que o ser humano vai adaptar-se ao computador e à Internet, e sobreviver a eles, como já fez com outras tecnologias. (Mas será que realmente estamos sobrevivendo, ou em grande parte sendo destruído por elas? Ninguém mais duvida que a tecnologia está destruindo a natureza; pouca gente percebe que ela também está destruindo o ser humano.) É importante considerar que é inválido comparar o computador com outras máquinas. Nunca houve uma máquina que simulasse um certo tipo de nossos pensamentos (os algorítmicos) como ele, e exigisse que, para ser inserido nele, tudo tivesse que ser transformado em uma lógica simbólica discreta, algorítmica. Mal e mal nós sobrevivemos à industrialização (mas por quanto tempo ainda, já que ela está destruindo a natureza?), mas isso não significa que sobreviveremos ao computador.

Como descrevi no ensaio "A missão da tecnologia" [Setzer 2007], considero que a tecnologia tem uma missão: libertar o ser humano das forças da natureza interiores e exteriores a ele. No entanto, em lugar de libertá-lo, ela está escravizando o ser humano, e toda a natureza. Temos que mudar essa situação; essa mudança passa necessariamente pela consciência dos efeitos que a tecnologia – não só as máquinas, mas substâncias etc. – têm sobre a natureza e sobre nós. Nesse sentido, o livro de Carr é uma valiosa contribuição.

Quem tem os olhos e a mente bem abertos pode observar algo muito importante: a tecnologia está destruindo a natureza e o ser humano. Uma das maneiras mais seguras de destruir esse último é destruir a mente das crianças e adolescentes, e é justamente o que a Internet, junto com os outros meios eletrônicos, está fazendo, como mostrei acima.

5. Recomendações

Como já citado, Carr declarou que seu livro não tinha recomendações explícitas aos usuários da Internet pois não era de autoajuda [Castro 2012]. Pois é justamente isso que será feito neste item: serão dadas ao leitor recomendações imediatas, isto é, a serem seguidas durante o uso do computador e da rede; de curto prazo, para serem executadas de vez em quando, interrompendo-se por um breve período esse uso; e a longo prazo, para serem executadas regularmente como atividades de vida que visam equilibrar os males produzidos pela Internet. A razão da inserção dessas sugestões neste artigo deve-se ao fato de que várias delas não seriam pensadas por grande parte, senão a totalidade dos leitores, pois derivam de minha experiência pessoal e de minha concepção de mundo, que é bem distinta da normal.

Há algo em comum entre todas as recomendações dadas a seguir: todas visam contrabalançar os efeitos negativos da Internet por meio de atividades opostas às que ela normalmente obriga. Por exemplo, já que ela produz distração, algumas levam ao desenvolvimento da concentração mental; já que ela força pensamentos abstratos e apresenta imagens prontas na tela, algumas incentivam um pensar mais vivo, com sentimentos, e a criação de imagens mentais; já que ela obriga a uma passividade corporal, algumas sugerem exercícios físicos, e assim por diante.

5.1 Atividades imediatas

A primeira recomendação imediata é óbvia ululante. Já que seguir os vínculos (links) imersos em um texto produz distração, com consequente menor absorção e memorização do conteúdo, como foi visto no item 2.5 acima, é essencial que se leia um texto até o fim, e só depois disso escolha-se algum vínculo para se desviar para uma segunda página. A recomendação é recursiva, isto é, se nessa segunda página houver um vínculo para uma terceira, deve-se inicialmente terminar de ler o texto da segunda, para eventualmente se desviar para a terceira. Isso vale também para imagens e vídeos, que devem ser adiados até o fim da leitura do texto com vínculos para eles.

A segunda recomendação imediata refere-se às multitarefas. Deve-se treinar a disciplina e se concentrar numa única tarefa, por exemplo ao ler um texto não acionar um outro programa como um processador de e-mails. Ao escrever um e-mail, não examinar a caixa de entrada para ver se chegou um outro e-mail. Se o processador de e-mails tiver um aviso sonoro de que chegou um novo e-mail, deve-se desligá-lo, para não se ter que combater a ânsia de verificar o que chegou. Como o próprio Carr descreve em relação a si próprio como citado no item 2.1 acima, o ideal seria ler a caixa de entrada no máximo uma vez por dia; se for possível passar mais do que um dia sem lê-la (isto é, se não serão acumulados muitos e-mails), o melhor ainda é verificá-la com intervalo de alguns dias.

A terceira recomendação imediata consiste em, ao abrir-se uma página com muitas informações independentes (textos, imagens, animação), concentrar-se naquilo que se está procurando, e não se distrair com o restante.

Uma quarta recomendação é de se usar o mínimo possível sistemas de ajuda (help) no uso de um software. Carr citou a pesquisa de C. van Nimwegen com pessoas que usaram um tal sistema para um jogo virtual de quebra-cabeças, concluindo que "Quanto mais as pessoas dependiam da orientação explícita dos programas de software, menos envolvidas ficavam na tarefa e acabavam aprendendo menos." e "Quanto mais brilhante o software, mais apagado o usuário." Isso leva a uma quinta recomendação imediata clara: procurar-se compreender a lógica dos programas e deduzir como funcionam, em lugar de seguir receitas. A regra geral é simples: deve-se usar o raciocínio o máximo possível, e não o menos possível, como forçado pela Internet – mas também pela TV, pelos video games e, em geral, pelo software do computador. A situação em relação ao computador é paradoxal, pois trata-se de uma máquina que simula certos tipos de nossos pensamentos e, portanto, deveria incentivá-los, e não abafá-los.

5.2 Atividades de curto prazo

A recomendação fundamental de curto prazo é estabelecer-se um período para uso contínuo da Internet, seguido de um período de intervalo sem se usar o computador. Um período de 50 minutos, seguido de 10 minutos de intervalo parece razoável. Existem programas livres que soam um alarme em momentos ou intervalos determinados, que no caso deveria ser de 1 hora. O programa Mindfulness Bell usa o navegador de Internet e soa um gongo a cada intervalo de tempo que o usuário determina [Mindfulness Bell]; mais adiante será dada uma sugestão de como usá-lo. Pode-se também usar um cronômetro ou um timer. É absolutamente imprescindível que, atingidos os 50 minutos, interrompa-se imediatamente qualquer tarefa, pois com isso treina-se a força de vontade para reagir contra a Internet, e contra a atração que ela exerce. Obviamente, isso se aplica também ao uso do computador fora da Internet.

Há várias possibilidades para os 10 minutos sem usar o computador. Uma das mais simples é dar um passeio, fazendo assim uma atividade corporal que contrasta com a passividade imposta computador. O ideal desse passeio seria em meio a plantas. Como foi visto no item 2.10, houve uma pesquisa que mostrou que o aproveitamento de um texto é muito maior quando se passeia "por um parque florestal isolado" em lugar de por "ruas movimentadas". Tenho uma explicação para isso: as plantas são calmas por natureza, pois não se movimentam por si sós. E, como Carr chamou muito bem a atenção, a mente necessita de períodos de tranquilidade. Além disso, toda planta é uma obra de arte da natureza – provavelmente por isso as pessoas preferem morar numa rua arborizada. Platão, em Sofista, diz: "Aquelas coisas, que se diz serem feitas pela natureza, são de fato feitas pela arte divina." [Plato, seção 265, p. 578.] Assim, ele já tinha dividido as obras de arte em obras humanas e obras da natureza. É possível que a estética que se absorve ao contemplar uma planta tenha um efeito calmante sobre a mente, especialmente benéfico no caso de ela ser agitada pelo uso da Internet. É interessante realmente adotar uma atitude de contemplação, concentrando-se o pensamento e os sentimentos apenas nas plantas que se vê, admirando-se sua beleza, riqueza de formas e cores e, principalmente, sua metamorfose, tanto na própria estrutura (por exemplo, como as formas das folhas mudam conforme se percorre a planta do solo até a sua ponta, ou da origem de um galho até sua ponta) como na variação da forma com o tempo (por exemplo, como um botão de flor vai se abrindo no decorrer dos dias até atingir a forma de uma flor completa).

A concentração do pensamento é outra atitude de curto prazo. Durante o intervalo de 10 minutos, pode-se fazer um exercício de concentração mental com os olhos fechados. Basta pensar sobre um só tema, como por exemplo um objeto que está sobre a mesa, como um lápis. Deve-se fechar os olhos, criar uma profunda calma interior (um estado de espírito muito peculiar; é fácil reconhecer que se entrou nele), e pensar apenas sobre o tema ‘lápis’: a forma daquele que está sobre a mesa, sob vários ângulos, do que ele é feito, para que serve, como é apontado, como é produzido etc. Um contraexemplo de divagação mental é pensar-se que um lápis serve para escrever e se lembrar de que se deve deixar um bilhete para uma pessoa, que deve executar uma certa tarefa, pois se esta não for executada ocorrerá algo etc. etc., com nada mais a ver com o tema escolhido, ‘lápis’. O importante é fazer o esforço para concentrar o pensamento e se o observar constantemente, no ‘estado de exceção’ descrito no item 3 acima, impedindo que divague fora do tema escolhido.

O programa já mencionado [Mindfulness Bell], que soa um gongo a cada intervalo de tempo que se pode estabelecer, pode servir para se interromper as tarefas que se está fazendo com o computador, por exemplo a cada 15 minutos. A ideia dele é, ao soar o gongo, concentrar-se a atenção exclusivamente em seu som, até que este desapareça, eliminando-se qualquer pensamento ou sentimento que não tenha a ver com o seu som (infelizmente, trata-se claramente de um som artificial, e não a gravação do toque de um gongo real). Esse som é, no entanto, um recurso externo. O exercício mental de prestar atenção só nele já é muito bom, mas o ideal na concentração mental é que se foque o pensamento e os sentimentos apenas em um tema que se escolhe, por meio de um esforço exclusivamente interior, sem ajuda de nenhum recurso externo, como posição física, som ou música de fundo, incenso etc. Esses recursos são verdadeiras muletas mentais; quando uma pessoa sadia usa uma muleta para andar, prejudica seu passo e, a longo prazo, acaba prejudicando seus músculos e sua coordenação motora. O Mindfulness Bell pode servir de ponto de partida para essa atividade interior, isto é, concentre-se sobre o gongo, que poderia ser ajustado para soar a cada 30 minuos e, quando o seu som desaparecer, passe-se a concentrar sobre um tema de própria escolha por algum período de tempo, que pode ser relativamente curto, como 5 minutos.

Para os espiritualistas, a concentração mental pode ser feita sobre um tema espiritual, que não tem nada a ver com o mundo físico, como por exemplo os 5 primeiros versículos do Evangelho de João ("No princípio era o verbo [ou a palavra]" etc.). Nesse caso, a concentração mental transforma-se em meditação. Um livro excelente sobre meditação é o do professor de mecânica quântica Arthur Zajonc [2010]. Ele recomenda que, depois de uma concentração de alguns minutos, faça-se um total ‘silêncio’ interior, sem se pensar em alguma palavra – isto é, sem ‘falá-la interiormente’ – ou imagem. Isso é particularmente interessante quando se tem uma grande dúvida, que deve ser o objeto da concentração; às vezes no período de silêncio interior repentinamente tem-se a intuição da resposta. Esse método está se popularizando em universidades americanas, como ele relata no livro.

Uma outra possibilidade para um intervalo de 10 minutos é se fazer alguma atividade artística, como desenho de formas, preferivelmente com giz de cera (devido à maior plasticidade dos traços) ou desenho em geral (para desenvolver isso, basta treinar copiar fotos de um jornal ou revista, usando-se um lápis bem mole, como 4B ou 6B). Como em qualquer atividade artística plástica, o desenho produz uma imersão da atenção naquilo que se faz, havendo um verdadeiro ‘esquecimento’ do resto do mundo e das próprias preocupações, uma verdadeira terapia. Pode-se também desenhar com giz de cera; não é necessário fazer figuras, como de animais ou de seres humanos; nesse caso, simples jogos de cores já produzem um senso estético e uma certa calma interior. É importante reconhecer que qualquer atividade artística envolve pensamentos, mas não abstratos, conceituais ou formais, pois o espaço é mal definido, o contrário do espaço matematicamente bem definido apresentado pelo computador (excluindo-se o que se pensa sobre textos que se leem na tela); mas o mais importante é que a atividade artística sempre envolve sentimentos, de modo que necessariamente não se fica em pensamentos abstratos.

A arquitetura é a arte mais objetiva, funcional, terrena. A mais elevada é a poesia, pois não tem expressão física, principalmente a decorada, ‘falada’ interiormente, sem articulação sonora das palavras. A boa poesia desperta os sentimentos e faz as palavras transcenderem o mundo físico, como nas belas imagens de "Seus Olhos", de Gonçalves Dias (1823-1864), cujas duas primeiras estrofes são:

"Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
     De vivo luzir,
Estrelas incertas, que as águas dormentes
     Do mar vão ferir;

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
     Têm meiga expressão,
Mais doce que a brisa, – mais doce que o nauta
De noite cantando, – mais doce que a frauta
     Quebrando a soidão [sic]." [Dias, pp. 34-6]

Ler poesia nos intervalos citados é excelente; melhor ainda é escrevê-las. Qualquer um pode fazê-lo, sem rimas ou métrica; basta começar para se desenvolver um interesse nessa atividade, lembrando-se de que o fundamental na poesia são as imagens e não a descrição conceitual da realidade. Decorar poesias é uma atividade mental excelente, pois também treina a memória. Para isso, comece-se decorando a primeira linha; ao se sabê-la de cor, ajunte-se a segunda linha, e assim por diante. ‘Falar’ uma poesia interiormente, de olhos fechados e em calma, acompanhando-a de sentimentos, é um extraordinário exercício de concentração mental, inclusive contrabalançando o pensar abstrato, formal, que se tornou tão comum hoje em dia e é imposto pelo uso do computador.

Uma outra possibilidade é usar os 10 minutos para ler um trecho de um bom romance. Todo romance exige a imaginação dos personagens e dos ambientes descritos. Assim criam-se imagens interiores, em vez de se ficar preso a eventuais imagens virtuais exibidas na tela.

Estando em casa, pode-se tocar um instrumento musical. Qualquer pessoa pode aprender a tocar flauta doce; uma de plástico, para iniciantes, custa baratíssimo. Para esse aprendizado, compre-se um método, siga-se-o consistentemente e, de vez em quando, consulte-se alguém que já a toca para corrigir algum eventual defeito e obter orientações.

Em lugar de se dar um passeio, como recomendado acima, pode-se fazer alguns exercícios de ginástica isométrica, como por exemplo colocar as mãos sobre a mesa, voltadas para baixo, com o cotovelo dobrado, e fazer-se pressão para baixo com o antebraço. Ou fazer-se um exercício de um dos bíceps, forçando para cima a mão de um braço com o cotovelo a 90º e a outra mão impedindo o movimento para cima. Outro exercício, para se fazer no lugar, mas com movimento, é fazer flexão de pernas, sentando-se em uma cadeira a cada movimento para cima. Fora do lugar, subir e descer escadas é um excelente exercício aeróbico; cuidado para descer nas pontas dos pés, para amortecer a força muito grande do impacto nos joelhos (devido ao peso da pessoa e a energia cinética do movimento). Estando-se em um prédio com muitos andares pode-se subir pela escada e descer por um elevador.

Outra possibilidade é combinar-se com um colega de trabalho para os dois interromperem o uso da Internet (ou do computador) ao mesmo tempo, passando a bater um papo durante o intervalo, sobre algum assunto que não tenha absolutamente nada a ver com seu trabalho ou atividade.

Obviamente, podem-se alternar essas atividades no decorrer do dia, especialmente entre as mentais e as físicas.

5.3 Atividades de longo prazo

As atividades de longo prazo visam contrabalançar os efeitos negativos do uso da Internet por meio de ações relativamente longas, a serem repetidas com regularidade, talvez quase todos os dias.

Muitas das atividades de médio prazo podem ser exercidas por períodos bem mais longos do que 10 minutos, como ler romances, tocar um instrumento musical, desenhar etc. Por exemplo, ler completamente um bom romance a cada mês ou dois meses, por períodos diários de pelo menos meia a uma hora. Essa leitura produz um processo interior de criação de imagens que compensa a avalanche de imagens exteriores a que se está sujeito ao usar um aparelho com tela, especialmente TV e a Internet. Essa avalanche tende a prejudicar a capacidade de se criarem imagens interiormente; qualquer atividade que incentive essa criação, como a leitura recomendada, produz uma recuperação e mesmo desenvolvimento dessa capacidade. Além disso, os sentimentos despertados por essa leitura provêm das imagens criadas interiormente, e não de imagens virtuais artificiais exteriores como é o caso dos aparelhos com tela.

Ao ler um livro científico ou filosófico, uma boa atividade é sublinhar as frases mais importantes, e fazer um índice com elas nas páginas em branco na frente ou atrás do livro, apontando para a página em que se encontram. Dessa maneira força-se a atenção e a concentração no texto. O índice serve para uma consulta posterior daquilo que mais chamou a atenção. O mesmo pode ser feito ao se ler artigos científicos ou filosóficos.

Aprender um instrumento musical, que não seja agitado como uma bateria, e tocá-lo por pelo menos meia ou uma hora diariamente, é também uma ótima atividade compensatória. Para os que têm ouvido musical, é excelente cantar em um coro; só quem teve essa experiência pode perceber como ela é gratificante, pois envolve algo social, feito em conjunto, onde as pessoas são obrigadas a se entrosar disciplinadamente em uma atividade feita em comum. É interessante notar que se pode usar a imagem da muleta vista no item 5.2 acima, para uma comparação entre cantar e tocar um instrumento musical. O canto não se utiliza de algo exterior para produzir sons; é, portanto, uma atividade mais ‘pura’ do ponto de vista humano. Além disso, qualquer instrumento musical moderno com teclas força ações mecânicas dos dedos. Tanto aprender a tocar um instrumento como a cantar exige algo importantíssimo: uma grande disciplina interior, o contrário da indisciplina produzida pelo computador e pela Internet. Observem-se os músicos de uma boa orquestra juvenil: é raro encontrar nela um jovem músico espevitado, parecendo uma pessoa desengonçada. É essa disciplina interior no intenso estudo de um instrumento que os faz agirem como pessoas concentradas, com autodomínio.

Outra atividade artística excelente é a leitura dramática em grupo e o teatro. Além de serem atividades sociais com interação real entre as pessoas (e não virtual, como imposta pela Internet), há continuamente a necessidade de se sentir a peça, para interpretar o que se denomina de ‘subtexto’. Um mesmo diálogo entre duas pessoas pode ser falado com um tom amoroso ou com um tom de briga. Essa interpretação depende exclusivamente dos sentimentos que se colocam na entonação de voz e nos gestos conforme a interpretação desejada. Fazer teatro, por ser uma atividade intrinsecamente social, significa ainda uma boa compensação para o isolamento produzido pelo computador ou a interação social virtual e, portanto, sem a presença física de outras individualidades; a presença de outras pessoas dá um caráter de realidade muito mais profunda, ampla e diferente do que o relacionamento virtual.

Essa questão de se ativar os sentimentos é absolutamente essencial nas atividades compensatórias em relação ao uso do computador e da Internet. Uma outra é o "distanciamento psicológico" imposto pela Internet, mencionado por Carr. Isso significa encarar a Internet objetivamente, sempre como um mero instrumento, e não se deixar envolver emocionalmente por ela e por seu conteúdo.

Uma recomendação muito importante é não usar o computador e a Internet à noite (e nem TV e video games!). O começo da noite deveria ser muito calmo; dessa maneira há uma preparação adequada para o sono profundo, que não pode ser sadio se antes dele se teve impressões agitadas e excitação interior. Se houver interrupção do sono durante a noite, jamais usar o computador e a Internet. Uma leitura de algo calmo (como poesias), ou uma atividade de concentração mental pode ajudar muito a se entrar novamente em um sono profundo.

Fora do uso da Internet, que muitas vezes obriga o uso de multitarefas, jamais fazer uma atividade intelectual acompanhada de outra simultaneamente. Muitas pessoas gostam de trabalhar, até intelectualmente, com fundo musical. Outras fazem exercícios de concentração mental com música de fundo ou com o cheiro de um incenso. Tudo isso são muletas mentais. Como já foi dito no item 5.2, uma pessoa sadia, ao usar muletas, prejudica seu passo e pode inclusive prejudicar os músculos a longo prazo. Analogamente, as pessoas deveriam fazer um esforço totalmente individual, interior, sem nenhuma ajuda exterior, para se concentrarem em atividades mentais. Dessa maneira elas treinam a capacidade de concentração. Mesmo na música clássica houve composições feitas para servirem de acompanhamento a outras atividades, com era a ‘Tafelmusik’, a música de mesa, para acompanhar as refeições. Mas, em geral, o ideal é que, ao ouvir uma música, se possa concentrar apenas nela, sem que ela sirva de pano de fundo para outra atividade.

Algumas recomendações sobre o uso da Internet por crianças e adolescentes. Levando em conta o que foi exposto no item anterior, se algum pai achar, erradamente, que a Internet deve ser usada por seus filhos crianças ou adolescentes, minha recomendação é a de que deve ele estar permanentemente ao lado dos filhos enquanto eles a usam, para evitar que façam acesso a sites incompatíveis com sua maturidade ou mesmo perigosos. No livro citado de Gregory Smith [2009], ele recomenda para isso a instalação de dois tipos de programas: os que impedem acesso a sites indesejáveis e os de gravação de todos os acessos feitos na Internet, para se controlar o que os filhos estão fazendo com ela. Comento essas sugestões na minha resenha sobre o livro [Setzer 2008c]. Com crianças isso é relativamente fácil; com adolescentes, quase impossível, a não ser que se crie essa mentalidade desde o começo. De qualquer modo, é preciso salientar que é facílimo controlar o uso de um computador pelos filhos em casa: é só não dar a senha do mesmo, e ativar-se a máquina pessoalmente. Estou ciente de que, no caso de adolescentes, será quase impossível impedir que usem a Internet na casa de amigos ou até em lan houses. O dinheiro dado para comprar um lanche poderá ser usado para pagar o acesso à Internet nesses locais. Ainda mais chance se dá ao filho quando este recebe uma mesada, o que considero absolutamente antipedagógico: para que uma criança ou adolescente devem ter dinheiro, para comprar aquilo que os pais não lhes comprariam? O argumento de que os jovens devem aprender a lidar com dinheiro o mais cedo possível é falacioso, pois a sociedade ensina isso no momento adequado; além disso, por que um jovem deve ter a preocupação de guardar e decidir como gastar o que guardou? No caso de adolescentes, o controle dos meios eletrônicos em casa em geral leva a discussões e brigas intermináveis e às vezes violentas. Com esses jovens, vejo uma só solução: deixar haver um prejuízo muito grande, como por exemplo no rendimento escolar, ou falta de sono, e aí proibir o uso em casa, liberando-o apenas em períodos pre-determinados. Gregory S. Smith recomenda em seu livro [2009, pp. 220-1] que se elabore um contrato especificando o que é permitido e o que é proibido fazer na Internet, com as penalidades correspondentes no caso de não cumprimento de cláusulas, a ser assinado pelos pais e cada filho, dando um exemplo de um desses contratos. Parece-me que isso deve funcionar muito bem a partir de uma certa maturidade, talvez a partir dos 12 anos de idade.

De qualquer modo, não ter acesso irrestrito à Internet em casa significa cortar o maior uso que um jovem faria da rede. Nesse sentido, o pior que se pode fazer em casa é colocar TV, jogos eletrônicos, computador e acesso à Internet no quarto dos filhos, pois aí não haverá absolutamente nenhum controle. Um conferencista alemão relatou que para evitar usos secretos do computador em sua casa, instalou-o no corredor. Um outro caso pior ainda é dar a um filho um smartphone com acesso à Internet.

Um pequeno detalhe para quem usa o gmail. Como descrito no item Complementações, provavelmente o gmail grava as páginas às quais se faz acesso ao se acionar um vínculo (link) que está no conteúdo de um e-mail. Analisando essas páginas, a Google vai aperfeiçoando o perfil do seu usuário, para dirigir-lhe propagandas relevantes a ele. Uma recomendação seria a de não se acionar o vínculo diretamente dentro de um e-mail, mas copiá-lo para a linha de endereço do navegador, desde que este não seja o Chrome, da Google, pois pela nova política de ‘privacidade’ da empresa, houve uma unificação de todos os cadastros e perfis dos usuários de todos os seus sistemas. Assim, os dados coletados examinando os e-mails de um usuário estão sendo colocados no mesmo arquivo que os dados coletados pelas páginas que ele visita usando o Chrome.

Uma síntese de todas essas recomendações é a seguinte: procurar fazer atividades físicas e mentais precisamente contrárias às que a Internet força em seus usuários. Como se pode bem depreender do que foi mostrado por Carr, por exemplo ao chamar a atenção para "uma lenta erosão do nosso caráter humano e da nossa humanidade", o computador e a Internet produzem uma verdadeira poluição da mente. Portanto, é preciso exercer um pensar, um sentir e um querer ‘limpos’, ‘puros’, para que se a controle e não se seja controlado por ela, compensem-se os males que ela produz e se reaja contra a degradação da condição humana que resulta de seu uso descontrolado, exercendo-se atividades que equilibrem aqueles males.

6. Referências

Agradecimentos

Agradeço a minha esposa Sonia A.L. Setzer por ter feito uma revisão da versão original do texto, a T. Coulbertson pela sugestão da página da Internet que gera periodicamente um som parecido com um gongo [Mindfulness Bell] e a Rogério Y. Santos e a Sérgio Tegon por terem apontado vários erros de digitação, incorporados na versão 1.3.