UMA INTRODUÇÃO ANTROPOSÓFICA À CONSTITUIÇÃO HUMANA

Valdemar W.Setzer
www.ime.usp.br/~vwsetzer
Original de 4/2000; esta versão 4.3: 14/2/21
Parte 2/3 – Itens 2 a 5/11

2. Os 3 membros da alma

Em geral, quando existem 3 membros de algo formando uma totalidade, pode-se reconhecer 2 deles como sendo polares, com características opostas, e o terceiro contém características dos dois pólos. Assim, dos 3 membros da entidade humana, corpo, alma e espírito, o primeiro é polar ao último, e o do meio, contendo aspectos dos outros dois, faz a ligação entre eles, harmonizando o conjunto. De fato, a corporalidade é caracterizada, por exemplo, pela sua forma relativamente rígida. Em particular, o corpo físico é adaptado às condições do mundo físico em que vivemos e tem necessidades advindas disso. Já o espírito tem a característica de estar voltado não para o mundo material, mas para o espiritual, sendo versátil como as ideias que nele residem. Não é devido ao corpo que temos liberdade, que vai contra a rigidez, pois aquilo que se adapta totalmente às necessidades físicas não pode ser totalmente livre. Por exemplo, ninguém tem a liberdade de dar um pulo de 20 m de extensão, ou tem a liberdade de parar de beber ou de comer (até pode fazê-lo, mas aí destruirá seu corpo). Mas temos total liberdade no que se refere às atividades puramente espirituais, como concentrar o pensamento em um determinado motivo escolhido livremente entre vários. Essa liberdade pode refletir-se em ações físicas, como por exemplo nosso espírito decidir que vamos realizar uma tarefa física possível, como ler o capítulo de um livro sem interrupção; se o telefone tocar, podemos cumprir nossa decisão e não atendê-lo.

A alma encontra-se entre a corporalidade e o espírito, tendo características voltadas tanto a um como a outro. R.Steiner, com sua percepção clarividente, observou que a alma tem 3 membros ou constituintes, que ele denominou de Alma das Sensações, Alma Racional e da Índole, e Alma da Consciência, correspondentes aos originais em alemão Empfindungseele, Verstandes- und Gemütseele e Bewusstseinseele.

2.1 A Alma das Sensações

Esse membro de nossa alma é mais voltado para a corporalidade. Por meio dele podemos ter sensações interiores provocadas, por exemplo, por percepções sensoriais, como expusemos no item 1. É com essa parte da alma que começamos a ter uma vida realmente interior, não-física, porém dependente dos impulsos que nos chegam através do corpo físico. Neste, o sistema neuro-sensorial é o que está mais ligado à alma das sensações, transmitindo a ela tanto as impressões sensoriais como as interiores detectadas pelo sistema nervoso.

Os animais também possuem a alma das sensações. No entanto, a nossa tem aspectos diferentes, pois é influenciada pelas outras duas e pelo espírito. Por exemplo, podemos nos conscientizar das sensações que estamos sentindo, o que os animais não podem, pois não tem auto-consciência, provinda de outro membro da alma a ser visto em seguida.

Os sentimentos que temos em comum com os animais, como o medo, a dor, a simpatia ou antipatia, são manifestações da alma das sensações, podendo ser chamados de 'sentimentos inferiores'.

2.2 A Alma da Consciência

Passemos ao pólo oposto. Esta constituinte é voltada mais para o espírito. É ela que nos dá a possibilidade de termos auto-consciência, por exemplo de uma sensação que estamos sentindo. É com ela que podemos nos independizar totalmente da corporalidade, e viver numa introspecção no mundo de nossos pensamentos. É com ela que podemos observar o mundo espiritual, o que fazemos quando temos uma 'intuição', essa atividade interior anti-científica (no sentido da ciência clássica) pois é uma ideia que aparentemente vem 'do nada'. Em nosso modelo, na verdade a intuição é uma percepção do mundo espiritual das ideias. É com essa percepção, proporcionada pela alma da consciência, que temos uma 'nova ideia'.

Quando nos concentramos em nós próprios, em um processo meditativo, e depois de bastante treino, nossa alma da consciência pode começar a ter percepções conscientes e controladas de nossa alma, ou do mundo espiritual. Em contraposição, uma intuição é uma percepção não controlada. Para os leitores que já conhecem Antroposofia, é importante salientar que o que estamos chamando aqui de 'intuição' refere-se ao entendimento comum dessa palavra, e não um particular estado de consciência.

É também por meio de nossa alma da consciência que nossa individualidade superior se manifesta. Obviamente, os animais não possuem esse membro da alma, pois não tem nem liberdade, nem auto-consciência e nem individualidade superior no sentido humano. De fato, como veremos mais tarde, nesse sentido os animais não tem nem mesmo uma biografia.

2.3 A Alma Racional e dos sentimentos

Steiner denominou esta parte da alma, em alemão, de 'Verstandes- und Gemütsseele'. 'Seele' é 'alma', 'Verstand' é 'razão', mas 'Gemüt' não tem tradução direta, englobando aquilo que traduziremos por 'sentimento'. Justamente por ser uma parte intermediária, ela contém aspectos dos outros dois componentes da constituição humana global. Os sentimentos, mais voltados para a corporalidade, e a razão, mais voltada para o espírito.

É devido a ela que temos uma razão, a capacidade de raciocinar logicamente. Essa capacidade é que faz com que os seres humanos comecem a se distinguir essencialmente dos animais, que não possuem essa constituinte anímica, e é por meio dela que o espírito começa a se manifestar. A propósito, assumindo que o modelo de constituição humana apresentado aqui esteja correto, é indevido chamar o ser humano de 'animal racional'. Essa expressão tende a diminuir o ser humano, reduzindo-o a um animal, simplesmente com algumas características distintas. O fato de termos características comuns com os animais não justifica o uso daquela expressão. Mesmo fisicamente (por exemplo, na postura ereta e na forma da coluna vertebral) somos essencialmente diferentes dos animais, isto é, temos características que não ocorrem neles. Animais tem vários aspectos comuns com as plantas, como tecidos orgânicos, os princípios de crescimento, reprodução e regeneração etc. No entanto, não denominamos os animais de 'plantas móveis', por que deveríamos denominar os seres humanos de 'animais racionais'?

O aspecto dos sentimentos dessa parte da alma está ligado aos hábitos, parte deles providos por nossa corporalidade. Por exemplo, a simpatia que sentimos por alguém que encontramos pela primeira vez provém de uma reação da alma à percepção do contato sensório, principalmente pela visão e, eventualmente, uma percepção inconsciente de sua alma. O sentimento de medo que sentimos ao nos depararmos com um perigo também depende de nossa percepção corpórea do objeto ou situação perigosos. Tanto as simpatias quanto o medo também são sentidos por animais. Mas um animal jamais pode sentir, com essa parte da alma como nós o fazemos, uma compaixão por alguém que está sofrendo. Até é possível que um animal tente ajudar um outro de mesma espécie que esteja sofrendo, mas não se pode dizer que se trata de uma ação movida pela compaixão. Antes, é uma ação automática, própria da espécie.

Quando lemos um romance ou uma biografia e nos emocionamos, estamos tendo sentimentos despertados por algo que o animal não pode produzir: uma imagem interior, por exemplo do personagem descrito. Essa imagem é formada em nossa alma e não é despertada por um impulso corpóreo exterior. Afinal, não se vê o personagem nas letras impressas, que são na verdade tinta sobre o papel, a 'letra morta'. O sentimento estético, assim como a compaixão, manifestações da Alma Racional ou da Índole, podem ser considerados como 'sentimentos superiores', que os animais não tem.

O nosso sistema rítmico, isto é, respiratório-circulatório, está intimamente associado a este constituinte da alma. De fato, ao termos uma emoção forte tanto a respiração como a circulação mudam de ritmo. Não é à toa que se associa o coração aos sentimentos e à coragem (como em 'Ricardo Coração de Leão'). Uma outra indicação é o fato de que, quando enfrentamos um perigo e sentimos um medo muito grande, o sangue deixa nossa periferia e tende a concentrar-se no nosso interior, em que o coração é o centro. Uma concepção materialista do ser humano poderia afirmar que nosso coração bate mais rápido por que a glândula adrenal soltou adrenalina no sangue. Mas o que fez com que essa glândula fosse ativada? Poder-se-ia dizer que foi um impulso do cérebro. Mas o que fez com que esse impulso aparecesse? Não pode ser simplesmente a percepção sensorial do objeto, pois ela é neutra e em si não nos faz sentir medo. Tentando seguir todos esses processos físicos, chegar-se-á sempre a um beco sem saída. O mesmo se passa com a visão: segundo a concepção de hoje, chegam à retina pacotes de ondas eletromagnéticas. O nervo óptico transmite sinais elétricos a alguma região do cérebro; neurônios do cérebro interagem também por meio de impulsos elétricos. Onde afinal está nossa percepção do objeto visto, a representação mental e as sensações que ele nos suscita? Parece-nos evidente que somente a hipótese da existência de processos não-físicos interagindo com esses processos físicos poderia esclarecer as nossas vivências sensoriais. Lembremos que o conhecimento que se tem do funcionamento neuronal é mínimo, não permitindo o estabelecimento de causas e efeitos mecanicistas entre uma percepção sensorial e uma reação fisiológica devido a um sentimento como o medo. A necessidade da hipótese da existência da alma não-física ainda é mais patente quando uma pessoa fica vermelha de vergonha ou mesmo 'roxa' de raiva. Por que sentimos vergonha? É a nossa Alma da Consciência, ao atuar com a Alma Racional (ao pensarmos nas conseqüências de nossos atos ou percebemos a falsidade de nossos argumentos) que nos faz reconhecer que cometemos um ato imoral. Isso faz com que Alma Racional e da Índole sinta o sentimento de vergonha e daí ative os vasos sangüíneos periféricos, que se dilatam dando a aparência de ficarmos vermelhos.

3. Desenvolvimento histórico

A história da humanidade é, como tudo dentro de uma visão realmente espiritualista, a manifestação do espírito. Steiner formulou interessantíssimas explicações para eventos históricos baseadas em suas percepções espirituais conscientes, usando os conceitos da constituição humana que ele introduziu. Por exemplo, ele mostrou quais os impulsos espirituais que envolveram o fenômeno Jeanne d'Arc, incompreensível para uma concepção materialista da história. Como uma simples pastora analfabeta e ignorante pôde comandar os exércitos franceses em sucessivas vitórias, traçando estratégias de batalhas contra os ingleses? No caso, houve uma inspiração divina que a orientava.

Mas o que nos interessa aqui é a explicação que Steiner dá de algumas mudanças históricas, verdadeiras descontinuidades, que ele constatou serem devidas ao início da plena manifestação de cada um dos 3 membros da alma que acabamos de examinar. Segundo ele, esses membros passaram a manifestar-se sucessivamente a partir de épocas razoavelmente precisas, e sua repentina manifestação é que ocasionou as mudanças históricas que passaremos a localizar. Vamos começar pela manifestação do constituinte da alma que foi desenvolvido em último lugar, e retrocederemos paulatinamente passando pelos outros dois.

3.1 O advento da alma da consciência

Esse advento deu-se no início do século XV. É por isso que aconteceu uma verdadeira descontinuidade na evolução cultural humana, representada pelo súbito aparecimento de um interesse científico pela natureza, por exemplo com Copérnico (1473-1543), Galileu (1564-1642) e Kepler (1564-1642), os descobrimentos geográficos, a arte renascentista, em particular, a perspectiva geométrica – que oficialmente começa com Brunelleschi (1377-1446; veja-se o magnífico livro de Arthur Zajonc Catching the Light - The Entwined History of Light and Mind. New York: Bantam, 1995) e o súbito interesse em se registrar a autoria de obras de arte (como, por exemplo o conhecido monograma que Albrecht Dürer gravava em seus quadros e gravuras) etc.

Antes do século XV, o ser humano não tinha um afastamento suficiente em relação ao seu exterior, a ponto de investigá-lo cientificamente. Por exemplo, olhando-se para o céu ensolarado, claramente vê-se o Sol movendo-se durante o dia. É preciso muito isolamento pessoal em relação a essa impressão tão forte, é preciso ter muita capacidade de abstração em relação à realidade, para imaginar que, durante um dia, a Terra está girando em torno de seu eixo, e que o Sol está fixo em relação às estrelas.

É interessante notar que Copérnico formulou seu sistema heliocêntrico simplesmente para facilitar o cálculo de eclipses (isto é, uma atividade abstrata). Colocando o Sol no centro do sistema planetário, em lugar da Terra, ele simplesmente diminuiu o número de epiciclos, que eram círculos imaginários traçados pelos planetas durante sua suposta trajetória circular – seja em torno da Terra ou em torno do Sol –, círculos esses cujos centros não continham nada. Kepler (1571-1630), por seu lado, relutou muito em abandonar a tradicional ideia de que todos os movimentos planetários deveriam ser circulares, e adotar as órbitas elípticas que acabaram com os epiciclos, e só explicadas mais tarde, em 1687, pela teoria da gravitação de Newton. E ainda muito mais tarde, em 1851, Foucault introduziu com seu pêndulo a primeira prova experimental de que a Terra girava diuturnamente ao redor de seu eixo. Mas naquela época a teoria de Newton já era largamente admitida, e a maioria da humanidade estava satisfeita com uma explicação puramente abstrata levando ao modelo heliocêntrico, mostrando o quanto a separação em relação à realidade sensorial já tinha sido atingida.

Steiner afirmou que essa súbita mudança nos seres humanos foi devida ao início da manifestação da Alma da Consciência. Ela estará plenamente desenvolvida em cerca de mais 15 séculos. Assim, ele denominou esta nossa época de 'Época da Alma da Consciência'. Ela caracteriza-se justamente pela maior consciência de si próprio, maior liberdade, maior afastamento em relação à natureza e maior individualidade. Infelizmente, todas essas características podem ser exageradas, como por exemplo o individualismo levar a um egoísmo desenfreado. Na economia, temos essa situação desde o século XVIII, com as ideias de Adam Smith, que propugnou uma satisfação das ambições e egoísmos pessoais como meio de se atingir o bem-estar social geral, por meio de uma indefinida 'mão invisível', que acabaria por regular tudo. No entanto, seu enfoque, manifestado plenamente na 'selva capitalista', está claramente levando a um aumento da miséria e desigualdade sociais, bem como à destruição do mundo físico.

Devido ao desenvolvimento dessa parte da alma, o ser humano também se afastou dos mundo espirituais, os quais não mais percebe nem intuitivamente. Isso levou a um materialismo que nega totalmente qualquer origem ou característica espiritual do ser humano. A frase de Nietzsche (1844-1900), 'Deus está morto', seria inimaginável antes da Época da Alma da Consciência. Com isso o ser humano encontra-se só, abandonado pelos seres espirituais elevados que criaram sua essência espiritual 'semelhante a Deus' (e não o seu corpo físico semelhante aos de seres divinos, pois estes não tem corpo físico!). Esse abandono foi necessário, pois caso contrário o ser humano não poderia ter adquirido liberdade. Pode-se traçar um caminho progressivo, em que no início o ser humano era somente um ser espiritual, em contato direto com a divindade. No entanto, naquela época ele era inconsciente, sua individualidade não havia se desenvolvido e era totalmente dirigido – o que é magnificamente representado pela imagem bíblica do Paraíso. Aos poucos o ser humano vai se condensando (e toda a Terra e os outros seres físicos também), adquirindo sua corporalidade, tornando-se cada vez mais terreno. Ele é o último a se condensar a ponto de deixar fósseis, sendo precedido por uma materialização a esse ponto pelos animais – cujos fósseis aparecem, assim, anteriormente, dando a impressão errada de que os seres humanos foram os últimos a aparecer. Isso é correto quanto ao um corpo físico suficientemente materializado para deixar fósseis, mas não quando à essência espiritual: no começo havia o ser humano (espiritual).

Esse afastamento dos mundos espirituais, que se iniciou com aquilo que a Gênese coloca, sob forma de imagem, como a Tentação, já atingiu um ponto em que o ser humano deve começar a retornar àqueles mundos. A queda na matéria não foi iniciativa do ser humano. De fato, se ele era inconsciente de si próprio e não tinha liberdade, como retratado na imagem do Paraíso, ele não pôde ter sido responsável pelo que erradamente denominou-se o Pecado Original (em alemão, usa-se o mais adequado 'Erbsünde', 'pecado herdado' – os descendentes daqueles seres humanos primitivos herdaram sua queda na matéria). A 'culpa' de sua queda foi dos Deuses! Agora o ser humano deve voltar a ter contato com os mundos divinos, mas por livre decisão própria consciente. Ele pode contar com a ajuda de seres divinos, mas para isso ele deve, em liberdade e plena consciência, procurá-los. Estamos falando aqui em seres divinos que estão prontos a ajudar o ser humano, de acordo com um caminho de evolução cósmica global, e que, por não interferirem na liberdade adquirida, não podem forçá-lo a seguir esse caminho. Há, porém, outros seres divinos (isto é, sem corpo físico, com elementos constituintes 'superiores' aos do ser humano), que são contrários a esse desenvolvimento. Eles podem ser coletivamente classificados como o Mal, ao passo que os seres divinos que estão de acordo com uma evolução cósmica positiva podem ser coletivamente chamados de Bem. A existência de Bem e de Mal é absolutamente essencial para que o ser humano desenvolva sua liberdade: esta não tem sentido sem a possibilidade de escolha entre eles. Se não houvesse essa possibilidade de escolha, ainda seríamos inconscientes e estaríamos no Paraíso, entre "anjinhos de bata cor-de-rosa tocando lira, que chatice", como ironizava o Dr. Rudolf Lanz em suas palestras. Assim, o Mal foi uma necessidade! Como Mefistófeles diz a Fausto, perguntado quem era: "Sou parte daquela força que sempre quer o mal mas sempre acaba criando o bem" ("Ich bin ein Teil diejen'gen Kraft, die stets das Böse will, und stets das Gute schafft").

Não nos alongaremos muito mais sobre o Mal; vale a pena citar que ele tem vários aspectos. Os mais visíveis nos dias de hoje são: 1. A tendência, mais comum hoje em dia, de separar totalmente o ser humano dos mundos espirituais, voltando-o totalmente para a matéria, por exemplo fazendo-o considerar-se como um animal (como é o caso da evolução darwinista) ou, pior ainda, como uma máquina (caso do campo da Inteligência Artificial, ver nosso artigo a respeito). Segundo Steiner, nesse caso "o ser humano perde-se no mundo". 2. A tendência de separar o ser humano totalmente da matéria, tornando-o um ser espiritual sem consciência e liberdade. Ela se manifesta, em parte, em tudo o que tem a ver com a diminuição da consciência, como entusiasmos ou fundamentalismos irracionais, drogas, propaganda etc. Nesse caso, conforme Steiner, "o mundo perde o ser humano". Essas duas influências querem conquistar o ser humano para si, e em geral trabalham em conjunto, apesar de representarem pólos opostos. 3. A simples destruição do ser humano, como se pode ver em genocídios, guerras, a facilidade com que as pessoas se matam umas às outras, a destruição do corpo físico devido a várias formas de poluição etc.

Somente uma concepção espiritualista como a que estamos expondo, voltada para a compreensão e não para o misticismo, pode reconhecer as primeiras duas influências, chegando ao necessário equilíbrio entre elas, isto é, entre o espírito e a matéria, e evitar a terceira. De fato, caindo-se sob a influência da primeira, pode-se considerar que o ser humano é uma máquina, mas aí acabam a moral e a ética, pois máquinas não as tem. A matéria é absolutamente essencial: é em nossa atuação no físico, por meio de nosso corpo físico, que temos a possibilidade de escolher entre vários caminhos; sem ele não poderíamos exercer o amor altruísta que, segundo Steiner, é a grande missão do desenvolvimento humano nesta época. Além disso, como vimos, o corpo físico é que possibilita o espelhamento e a conscientização de nossas sensações, sentimentos e pensamentos. Por outro lado, sem o espírito iríamos nos petrificar na matéria, virando autômatos-máquinas, e não haveria mais chance de desenvolvimento. A alma é necessária para estabelecer o necessário equilíbrio entre os dois; como envolve os sentimentos, é imprescindível, por exemplo, para que não se caia em ideias secas, sem vida. Em termos de ações, não devemos ser levados pelo coração (isto é, pelos sentimentos, pela alma), sem estarmos conscientes por meio do pensar (isto é, pelo espírito) do que estamos decidindo ou fazendo e suas conseqüências. Por outro lado, também não devemos decidir racionalmente, pelo pensar, sem que essa decisão seja frutificada pelo sentimento. Vamos dar um exemplo desta última situação, com o seguinte raciocínio sem alma: já que existe excesso de população no mundo, vamos acabar com a lei que proíbe uma pessoa de matar outra. É interessante notar que as leis sociais nunca são puramente racionais; sempre entra nelas um fator estranho ao puro pensamento, proveniente de como sentimos que as coisas devem ser.

3.2 O advento da Alma Racional e da Índole

Segundo Steiner, esse componente da alma começou a se desenvolver e atuar no ser humano ao redor do século VII a.C. De fato, aí também vemos uma descontinuidade histórica: começam a aparecer grandes personalidades em várias partes do mundo, mudando de maneiras especiais o rumo da cultura e da espiritualidade. No Oriente, onde salienta-se mais o aspecto dos sentimentos através de um misticismo dirigido primordialmente aos sentimentos, temos o grande Buddha (nascido ao redor de 563 a.C.), cujo ideal era evitar os sofrimentos humanos, e também Lao Tse (~604 a.C.) e Confúcio (551). No Oriente Médio, os profetas bíblicos como Amos (~750), Jeremias (~626), Nahum (~612), Habacuc (~605) etc. Na Grécia, onde se salienta o aspecto racional, os filósofos com Feróquides de Siros (~550), Platão (438), Aristóteles (384) e os matemáticos como Tales de Mileto (~640), Pitágoras (séc. VI), mas o aspecto dos sentimentos também está presente, na fantástica arte grega, como com Ésquilo (~525), Sófocles (~496), Eurípides (~480) e Aristófanes (~448). É aí que aparece o conceito de Polis e cidadania, em lugar de se pertencer a uma tribo ligada por consangüinidade (como era o caso, por exemplo entre os antigos hebreus). É interessante observar-se como os diálogos de Platão parecem provir de um gozo da nova capacidade de raciocinar, em elucubrações mentais que se desenrolam continuamente, e Aristóteles estabelece uma 'lógica terrena', baseada no raciocínio formal. Já no Império Romano, aparece o conceito de cidadão do império. Em ambos os casos, o direito já não é mais dado pela divindade, como anteriormente (por exemplo, nas leis sociais de Moisés, ou as ditadas pelos antigos Mistérios), mas é produzido pelos seres humanos.

Nessa época, principalmente no seu início, o ser humano ainda se sentia ligado à divindade, mas já não a vivenciava diretamente, daí por exemplo os mitos gregos, que faziam uma imagem errônea dos seres divinos com os mesmos problemas e fraquezas que o ser humano. Este ainda ouvia a voz divina, mas em estado de transe, como no caso dos profetas hebreus e das pitonisas gregas. Note-se que nenhum deles diz "em verdade, eu vos digo"; eles sentem-se como meros transmissores da voz divina. Homero inicia a Ilíada e a Odisséia agradecendo a inspiração dada pelas Musas, isto é, pela divindade.

É impressionante ver a evolução do teatro grego, de Ésquilo a Eurípides: no primeiro, o ser humano ainda se sente envolvido pela divindade, representada pelo coro, e no último já se nota sua separação da mesma. Mas mesmo em Eurípides, o ser humano não se sente dono de seu destino – por exemplo, Édipo não consegue evitá-lo. Os personagens tem problemas padrões, não individuais; daí a psicologia moderna tê-los adotado também como padrões. Já em Shakespeare, com o advento da Alma da Consciência, temos indivíduos com seus problemas únicos, como Hamlet ou Lear. No teatro grego existe uma revolta contra a divindade, por não mais se vivenciá-la e ainda não se conseguir compreendê-la, o que só começa por ação da Alma da Consciência, principalmente desde o fim do século passado (donde o aparecimento de alguém como Steiner, que consegue pesquisar conscientemente e conceituar o mundo espiritual).

3.3 O advento da Alma das Sensações

Steiner coloca esse advento ao redor do século XXX a.C. A Alma das Sensações leva a uma vivência interna do mundo. Ainda não há nada racional. Por exemplo, os blocos da pirâmides foram esculpidos a fim de se encaixarem perfeitamente, a partir de uma sensação do que a pedra é, e não de cálculos.

A cultura dessa época situa-se essencialmente no Médio Oriente, onde temos as culturas caldéia, babilônica, hebraica e egípcia. Também aparecem grande personalidades, como Hamurabi, Abraão, Moisés e vários faraós-sacerdotes no Egito. Os hebreus tornam a divindade uma abstração do ponto de vista exterior, pois devia ser procurada no íntimo de cada um, o que foi essencial para que ocorresse um real afastamento do mundo espiritual. Além disso, pela primeira vez introduzem uma conceituação do que vem a ser uma pessoa boa e uma má: se os mandamentos e os preceitos de comportamento social são seguidos, a pessoa é boa. É também interessante ver pelos relatos bíblicos como a divindade vai progressivamente se afastando.

Seria muito interessante e importante alongarmo-nos na descrição dessas 3 épocas, mas isso ultrapassaria a simples ilustração de como os conceitos de organização supra-sensível do ser humano podem levar a uma fascinante compreensão da história, como introduzido por Steiner. É também reconfortante encontrar conceituações mais substanciais e profundas, que partem de um ser humano diferente do atual. Ao contrário, uma explicação marxista, por exemplo, reduz todos os acontecimentos históricos a um conceito que pode nos parecer natural com nossa constituição atual, como o de luta de classes. Mas ele simplesmente torna a história extremamente inverossímil e cacete quando aplicada aos homens das cavernas, à antiga Índia, aos antigos gregos, à Idade Média etc. como se os problemas fossem sempre os mesmos.

Para um aprofundamento nas concepções de Steiner sobre o desenvolvimento histórico, veja-se o excelente livro de Rudolf Lanz, Passeios Através da História à Luz da Antroposofia (S.Paulo: Ed. Antroposófica, 1995).

4. Relacionamento social

Neste item vamos expor algumas ideias desenvolvidas por nós através de reflexão, observações e vários cursos e palestras que demos sobre assuntos correlatos.

Os 3 membros da alma humana correspondem àquilo que denominamos de 3 capacidades sociais.

4.1 Alma das Sensações

Com a Alma das Sensações podemos exercitar o que denominamos de Interesse e Sensibilidade Sociais.

Ter Interesse Social significa abrirmo-nos para o outro, interessando-nos pela sua vida, sua biografia, seus problemas. Da mesma maneira como o advento da Alma das Sensações fez o ser humano interessar-se pelo mundo, por meio dela podemos nos interessar pelas outras pessoas. Alguns tem esse interesse inato, mas ele está desaparecendo devido ao isolamento produzido pela Alma da Consciência. Nota-se isso principalmente na Europa Central. É preciso cada vez mais exercitá-lo, a partir de uma decisão consciente de nosso espírito.

O interesse social corresponde a uma orientação do nosso interior para o exterior. A orientação oposta, o de absorvermos algo, corresponde ao que denominamos de Sensibilidade Social. Por meio dela detectamos as necessidades e habilidades do outro. Elas podem ser corporais (alguém precisa de nossa ajuda fisicamente, ou devemos criar o espaço para que ele exercite suas habilidades físicas que não estão conseguindo se manifestar), anímicas (alguém necessita de uma palavra nossa de conforto, precisa sentir que alguém compreende seus problemas, ou tem a habilidades de atuar dessa maneira), ou espirituais (por exemplo, a necessidade do outro de que lhe demos uma explicação ou de um conselho mostrando vários caminhos a seguir, a habilidade que ele tem em fazer essas ações, ou a habilidade de criar em alguma área social, artística ou científica).

Quantas vezes entramos com nosso carro em um posto de gasolina, o frentista enche nosso tanque e vamos embora sem ao menos ter olhado para seu rosto? Isso mostra falta de interesse social, e falta de sensibilidade por não percebermos que ele precisa de nosso pagamento, talvez de uma gorjeta, talvez de um sorriso, de um cumprimento, de um elogio ou de um desejo de bom dia. Se o ignorarmos, estaremos tratando-o como uma extensão da bomba de gasolina, como uma máquina. Quem sabe com isso estaremos tornando sua vida miserável? Ignorar o outro, principalmente quando temos um contato com ele, é uma manifestação de atrofia da Alma das Sensações. Mas a atenção que damos ao outro só é uma manifestação dela se não for devida a uma obrigação social ou um ato automático, mas um genuíno interesse e uma sensibilidade pelo outro.

O interesse pelo outro e a percepção de suas necessidades está obviamente ligada à nossa capacidade corpórea de nos abrirmos sensorialmente para a outra pessoa. Lembremos que o aspecto anímico da Alma das Sensações está mais relacionado com nossa parte corpórea.

4.2 Alma Racional e da Índole

Socialmente, o uso desse membro da alma leva à compaixão e à 'com-alegria' (palavra inventada pela Dra. Sonia Setzer). Ambas correspondem à capacidade de se perceber e sentir (até certo ponto) o sentimento do outro. Se este está sofrendo, sentindo compaixão sofremos com ele. Se está alegre, sentindo com-alegria alegramo-nos com ele. Aqui também temos gestos de interiorização (sofrer) e de exteriorização (alegrar-se).

Essa capacidade de sentir com o outro não advém de uma pura percepção sensorial, mas de uma capacidade de estabelecer um contato anímico com a outra pessoa. Lembremos que a Alma Racional e da Índole é um elemento intermediário na constituição anímica, estando assim mais relacionada com a alma como um todo.

Acompanhando os sentimentos e alegrias do outro aumentamos a nossa possibilidade de compreender os seus problemas e criar soluções para eles.

4.3 Alma da Consciência

Como vimos, nosso espírito manifesta-se diretamente através da Alma da Consciência. Do ponto de vista social, isso significa exercitar o que denominamos de Responsabilidade e Ação Sociais. É com nosso espírito, por meio da Alma da Consciência, que sentimos a responsabilidade moral de agirmos socialmente. Mas não adianta somente sentirmos essa responsabilidade: é necessário transformá-la em ação. Toda ação consciente, resultante de uma decisão consciente, é manifestação de nosso espírito, por meio da Alma da Consciência que, justamente como vimos, está mais voltada para ele.

Aqui também temos o gesto interior, de sentir a responsabilidade, e o exterior, de executar uma ação.

4.4 Síntese

Temos, assim, 3 aspectos da atividade social. Inicialmente temos que nos interessar pelo próximo, e ter a capacidade de detectar quais são suas necessidades e habilidades. Em seguida (ou em paralelo) devemos sentir seus sofrimentos e alegrias. Finalmente, não basta ficarmos apenas nesses aspectos: devemos sentir a responsabilidade de ajudar o outro satisfazendo suas necessidades e possibilitando que exercite suas habilidades, colocando nossas habilidades a serviço dele, executando assim alguma ação social.

A posse de apenas um dos 3 aspectos pode levar a aberrações. Hitler certamente tinha uma enorme sensibilidade social, pois sabia levar o seu povo e atender suas necessidades tanto físicas quanto emocionais – mas de maneira nenhuma suas necessidades espirituais. Tinha até ação social, pois soube executar obras que levaram a uma melhora de vida de seu povo, massacrado pelas estúpidas conseqüências do tratado de Versailles. Mas certamente ele não tinha compaixão – nem para com seu próprio povo, pois ao ver que a guerra estava perdida, considerou que o povo alemão não merecia mais existir e deu ordens para sua aniquilação, no que não foi obedecido por seus generais (S.Haffner, Anmerkungen zu Hitler. Frankfurt: Fischer, 1990). O seu exemplo nos mostra o que significa não ter uma visão correta do que é o ser humano: ele tratou dezenas de milhões de pessoas como animais (por exemplo, transportando-os em vagões de gado e literalmente enjaulando-os em campos de concentração). Ele não reconheceu a existência do espírito dentro do ser humano. As influências místicas no governo nazista foram bastante estudadas; é um bom exemplo de que o misticismo não é mais adequado aos dias de hoje. Ele dirige-se tipicamente à alma, em geral através de emoções e um bem-estar interior, mas não reconhece o espírito, que busca a compreensão da verdade, como aqui caracterizado.

Essa falta desse reconhecimento é uma das características trágicas de nossos dias. Não há nem o reconhecimento de nossa constituição anímica como componente não-física real. Para a psicologia moderna, a alma, quando muito, é uma abstração, uma ferramenta conceitual – caso contrário ela não usaria tanto os animais para tirar conclusões sobre o ser humano. O que há é uma visão totalmente materialista do ser humano, negando qualquer componente de nossa constituição que não seja resultado de processos físico-químicos. Isso leva a uma concepção muito pior do que a de Hitler, de achar que somos animais. Animais tem alma, como vimos, e pode-se ter uma atitude moral em relação a eles: não matá-los inutilmente ou por prazer (esporte de caçar), não maltratá-los etc. A própria tendência de preservação de espécies como as baleias, sem uma justificativa científica (elas estão no fim da cadeia alimentar), mostra o desenvolvimento positivo de uma sensibilidade anímica para com a natureza, origem profunda, em nosso entender, de todo o movimento ecológico.

A concepção materialista do ser humano e do universo só pode levar a uma visão de que eles são máquinas. No entanto, não pode haver ética ou moral em relação às máquinas. Pode-se amar animais, mas amar uma máquina é uma aberração.

Conjeturamos que a concepção do ser humano como máquina levará a desastres sociais muito maiores que os causados pelo nazismo e pelo comunismo, marcas registradas do século que passou. A solução é desenvolver-se uma visão não materialista do universo, e em particular do ser humano. Mas essa visão tem que ser consciente, baseada em compreensão, e não mística, baseada em fé ou dogmas religiosos. Esperamos estar contribuindo para mostrar que existe a possibilidade de se desenvolver uma visão de mundo ('Weltanschauung') desse tipo, e como isso traria benefícios sociais.

5. Os 3 membros da corporalidade

Vamos nos aprofundar em certos aspectos da constituição não-física do ser humano. O leitor atento pode ter formulado logo no início deste texto uma dúvida: e os aspectos vitais? Será que aquilo que chamamos de 'vida', por exemplo em uma planta, é devida a fenômenos exclusivamente físico-químicos? É lógico que não – para a ciência materialista, o fenômeno 'vida' é uma grande incógnita. No entanto, como foi visto, afirmamos que as plantas não tem alma. Então onde estão esses processos vitais e quais são suas causas? Para entrarmos na questão deles e da vida, e em outros processos que abordaremos mais adiante, é necessário tratar de 3 membros da corporalidade, também conceituados por Rudolf Steiner.

5.1. O Corpo Físico

Observemos um ser humano morto recentemente. O que podemos ver é seu puro Corpo Físico sem nenhuma manifestação vital: ele não respira, seu coração não bate, não há metabolismo. Ele está totalmente entregue às forças da natureza, que decompõem seu corpo.

5.2 O Corpo Etérico

Observemos agora um jovem dormindo. Contrariamente ao morto, os processos vitais estão se passando normalmente: ele respira, há batimentos cardíacos, o metabolismo segue seu curso (digestão, regeneração de órgãos e tecidos), ele cresce e, principalmente, algo atua contra as forças da natureza e seu corpo não se decompõe.

Rudolf Steiner diz que uma observação clarividente pode constatar que nesse corpo físico dormindo atua um segundo elemento corpóreo, agora não-físico, que ele denominou, seguindo uma certa tradição esotérica, de Corpo Etérico. É ele que é responsável por todas as funções vitais que mencionamos, e ainda pelo estabelecimento e manutenção das formas orgânicas do corpo físico; daí Steiner tê-lo denominado também de Corpo das Forças Plasmadoras. De fato, como é possível explicar por processos puramente físico-químicos que as orelhas, que não param de crescer, mantêm uma forma razoavelmente simétrica? Não adianta dizer que isso é devido ao DNA. Como chamou a atenção R.Sheldrake em seu livro A New Science of Life (Los Angeles: Tarcher/St.Martin 1987), o DNA na ponta de um dedo é o mesmo que no lóbulo da orelha, no entanto num caso ele 'produziria' um dedo e na outra o lóbulo. Aliás, sabe-se que uma mudança no DNA de certas plantas pode produzir alterações em suas formas, mas não se sabe com exatidão qual o processo que faz o DNA regular a forma durante todo o crescimento e a regeneração.

O Corpo Etérico estabelece e regula a forma do Corpo Físico, e é responsável pela regeneração de órgãos e tecidos, por meio do metabolismo, e também pela hereditariedade. Somente o DNA não leva à hereditariedade; é necessário algo que leve do DNA à manifestação da mesma. Afinal, o DNA é como um modelo; é preciso uma atuação de algo sobre ele para que ele produza, por exemplo, um órgão, assim como uma forma de bolo sozinha não produz um bolo – para isso é preciso uma cozinheira que usa a forma mas nela coloca os ingredientes, leva-o ao forno etc. O interessante dessa metáfora é que cada vez que ela usa a forma, faz um bolo um pouco diferente – ou até muito diferente, dependendo dos ingredientes e das ações que toma para fazê-lo. Podemos ainda modificar essa imagem associando o DNA aos ingredientes do bolo: é necessário alguém que os misture e uma forma para dar-lhe a forma e a estrutura finais.

Vejamos o que aquele jovem dormindo não tem. Ele não faz movimentos voluntários, não tem consciência (não se sente dor em sono profundo), nem percepções e sentimentos. Estes são devidos a mais um membro da corporalidade – mais adiante faremos uma distinção em relação à atividade da alma, na qual colocamos alguns desses processos.

5.3 O Corpo Astral

Observemos em seguida uma criança de poucos meses acordada. Nela temos todos os processos vitais de uma pessoa dormindo, mas temos também movimento (pelo menos dos bracinhos e perninhas, e também do queixo) e, principalmente, consciência, percepção sensorial e sentimentos. Essas atividades adicionais são devidas a um terceiro membro da corporalidade, denominado por Steiner de Corpo Astral. Como o corpo etérico, ele também não é físico, é supra-sensível. Mas é de uma 'substancialidade' não-física diferente da substancialidade do corpo etérico, e mais sutil da que deste.

É devido à presença do corpo astral que o ser humano tem as manifestações que reconhecemos na pequena criança desperta, e que não ocorrem em uma pessoa dormindo.

O leitor atento observará que algumas dessas manifestações são as de ter percepções sensoriais e sentimentos. Ora, quando falamos da Alma das Sensações, referimo-nos ao fato de que é justamente devido a ela que temos as sensações interiores provocadas, por exemplo, pelas percepções sensoriais. Pois bem, o Corpo Astral pode ser considerado o veículo não-físico das sensações. A vivência interior das mesmas é feita pela Alma das Sensações. É uma situação análoga à do olho e da visão. O olho é o veículo dos impulsos luminosos, mas certamente não é o olho que vê: a imagem é formada interiormente. Isso é feito pelo cérebro, no entender dos cientistas materialistas, sem poderem-no provar. É feito pela Alma das Sensações, diria o espiritualista, também sem podê-lo provar fisicamente, pois não é um processo físico; seria necessário desenvolver órgãos de observação supra-sensíveis para se poder observar esse processo.

Podemos agora ser um pouco mais precisos com mais uma característica animal e humana: os instintos não se localizam na alma, mas no Corpo Astral. De fato, os instintos tem um caráter de permanência, eles estão de algum modo incorporados às características não-físicas dos seres humanos. Por outro lado, a alma está mais afeita a reações interiores.

5.4 O 'Eu'

Mas o que uma criança de poucos meses não tem que um adulto acordado tem? Ela não tem auto-consciência: apenas aos 3 anos uma criança que não teve uma aceleração indevida de seu amadurecimento (por exemplo, forçada pela TV ou pelo uso de computadores) refere-se a si própria como 'eu'. A criança de poucos meses não tem posição e andar eretos, fala, pensamento, liberdade, responsabilidade, e nem manifestação de uma individualidade superior – isto é, aquela que está além dos traços físicos individuais, seus gostos e instintos particulares.

Steiner acrescenta mais um quarto elemento à constituição humana, que denominou de Eu, e que não mais considerou como sendo corpóreo como os três anteriores, e sim puramente espiritual. É devido a esse Eu que o adulto tem todas as características que não encontramos na criança pequena. Para simplificar, vamos considerar que esse Eu é aquilo que chamamos de Espírito na trimembração formada com a alma e o corpo. Sua 'substacialidade' é ainda superior, mais sutil, do que a do Corpo Astral. É por meio dele que o ser humano comunga com os mundos espirituais, o mundo das ideias, como caracterizamos ao abordar o Espírito.

Cada ser humano tem um 'Eu' individual, distinto dos outros. É ele que denominamos de 'individualidade superior'.

5.5 Síntese

Temos, portanto, 3 membros da corporalidade: o Corpo Físico e os outros 2 não-físicos, o Etérico e o Astral. O único que é físico, e onde se encontram todos os processos físico-químicos, é o primeiro. Os outros 2 não são físicos, podendo-se dizer que são compostos de uma 'substancialidade' não-física etérica e astral, respectivamente. Com o Corpo Etérico temos principalmente as funções vitais, e com o Astral principalmente a consciência. Um quarto elemento, não mais corpóreo, o Eu, introduz as manifestações puramente espirituais, como a individualidade superior, a auto-consciência, a liberdade e a moral. Denomina-se de quadrimembração a organização humana incorporando os 3 membros da corporalidade e o Eu.


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