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A Estória de Heleiel

Maria Angela Weiss


June 27, 2000

Isso foi há muito tempo, tão longe também, lá na floresta que, naqueles dias era chamada Birgtinton.

Poucos eram os forasteiros a se arriscarem nos escuros, ingremes e fechados dominios da floresta.

O escuro interior era imutavél e, vistas do alto, a floresta era uma única imensa árvore mãe.

Mas Heleiel, mesmo de tão alto, conhecia cada parte, cada planta, cada pedra e cada fio d'água que formava a floresta. Ele conhecia bem os caminhos do seu povo legendário, tão mistérios para os povos do exterior.

Heleiel sentia fome mas se deixaria morrer, desmotivado, suas asas empurradas pelo vento, revendo em sua mente a partida de seus pais.

Aconteceu assim que sua mãe houvera que partir, levando com ela o cheiro de sua suas medicinas, o leve barulho de suas passadas e o seus olhares preocupados, rumando até onde era o ``Povo das Cachoeiras de Nuvens'', que sofria uma epidemia. Desde o dia da sua partida havia pouca música, poucos risos na aldeia. Nuvens eram agora formas simples no céu, não mais bizaros e intrincados desenhos.

Pouco depois seu pai partiria, seguindo o chamado das árvores do ``Mundo Interior'', já idade de soltarem suas preciosas sementes.

Com a ida de seu pai extinguiram-se os fogos que alimentavam os fornos de cozer barro. A roda d'água já não alimentava a oficina de madeira e a vila era uma peça quebrada com seus telhados rompidos, janelas cantando o vento pelas suas frestas abertas, animais sem abrigos certos para as noites frias.

A vila jazia em profunda letargia e Heleiel apenas voaria, seria seu último movimento. Sentia-se solto, sem laços, sem terra, sem onde voltar, sem nunca ter tido onde ter-se, sem cojitar em ir.

O Sol cavava buracos pacientemente pela neblina por onde lançava luz como flexas, acertando ora n'alguns álvos da floresta.

As asas de Heleiel coloriam-se de dourado, sua sombra projetando-se nas copas da floresta.

Foi quando Heleiel pensou uma idéia (uma idéia bem procurada, como fruta madura na época das flores).

O som das criaturas da floresta já chegava aos céus e, para os ouvidos de Heleiel, também a indicação de que seu povo comecara os trabalhos de manha, de acordo com os velhos costumes.

O que seria de Heleiel? Ele já nao acreditava nos jogos da fogueira. Não foi a sua sombra que se projetou grande, forte, a sombra de um mágico guerreiro.

A sombra de cada menino, a imagem de seu homem: caçador, artesão, comerciante, fazedor de sonhos, plantador de sementes, colhedor de frutas, a imagem da vontade de ser de cada um.

Sua sombra poderosa e reta, como uma estátua esculpida na rocha, guardando em silêncio o conhecimento dos homens.

Era preciso ser muito forte para suportar o trabalho de fazer-se único em sua geração. Heleiel poderia ser ese homem, se tivesse vontade, se acreditasse que não era um jogo, se saíse vencedor de uma batalha misteriosa que, já sem saber estava enfrentando.

A idéia que ele pensara já estava pronta para ser e Heleiel impulsionou os músculos de suas asas provocando, mesmo para o jovem, alguma dor.

Seu rumo era o refúgio secreto de seus pais, que jamais supuseram ter Heleiel descoberto o lugar tão antes de ver-se face a batalha que um homem, para carregar o conhecimento, precisa travar.

Sequer Heleiel sabia quão importante para vencer a batalha seria conhecer o lugar do refúgio e acreditar no poder-vir-a-ser.

Mas Heleiel não acreditava mais nas sombras das fogueiras. Como poderia haver-se visto guardando as músicas, as estórias, os sentimentos de todos os homens? Era um sonho feito para distrair e quietar o espirito dos homens. Heleiel estava magoado e não acreditava em seus pais. Ele só queria esquecer-se e ouvir um sopro de paz em sua respiração trofega pelo esforço de chegar ao refúgio.

As nuvens agora formavam figuras bizarras e Heleiel prendeu-se a elas.

Os flocos de ananéia misturados a palha dos graos de oura exalavam um cheiro familiar aos sentidos de Heleiel desde antes dele tornar-se consciente às palavras.

Seu cansaço, sua intranquilidade, sua vontade de jamais perdor se misturavam a nostalgia que o refúgio provocava em sua mente.

As nuvens abriram-se em Sol pleno dourado e pareciam cascas quebradas de um ovo azulado. Uma nuvem na forma de um onuvien, o barco sagrado usado apenas para transportar as noticias dos nascimentos e das mortes entre os Birgtinton apareceu aos olhos do menino, tapando-lhe o Sol e foi nesse momento que Heleiel perdeu a consciência.

O tempo recomeçou a ser sentido na mente de Heleiel, primeiro de forma confusa, depois fluente. O barulho da água corrente podia ser percebido, misturado em seus sentidos com o cheiro da sopa de fungos azedos, típica do povo do mundo interno. Heleiel sabia, quase instintinvamente o quanto deveria temer. sabia também que fora vítima das flexas envenenadas com caiuina, a terrivel raiz da caça usada pelo povo interno.

Heleiel abriu os olhos lentamente. Conhecia todas as estórias contadas sobre o povo interno. Não poderia deixar de encolher-se num arrepio de temor.

As casas grotescas, escuras e mal ventiladas ocupavam todo o defiladeiro. Seria impossível, mesmo se estivesse dessamarado, desvenciliar-se e subir voando rumo ao solo, tamanho o caos com que se arranjava a vila do povo interno.

Pronto o que parecia o brilho de duas pedras de almamira transformou-se no olhar curioso de uma internal. Heleiel não compreendia como esse povo mal poderia ter seus olhos guardando o brilho das pedras sagradas de proteção. O jovem não sabia se deveria ter medo, aversão ou tamanha fúria que lançar-se-ia ao inimigo pronto a aniquilar todos, confuso após ter descoberto esse brilho numa criatura aparentemente construída de medos, sombras e maus pensamentos.

Talvez o Sol não fosse tão notável e grandioso quanto, no umbral da vila do povo interno, eram os sóis do olhar raro e essencial dessa criatura. Assim os sóis violetas se aproximaram de Heleiel enquanto quatro mãos precisas, ou algo que poderia ter o nome de mão, aliviavam o peso da rede sobre suas asas. Heleiel pensou que nesse momento seria devorado, mas a criatura fez-lhe um sinal com um de seus longos dedos, apontando as pedras chatas que serviam de mesa aos internais, fazendo-lhe notar que começava um banquete composto de muitos fungos, potes de sopa azeda, pedaços de madeira mole plenos de pequenos vermes e demais iguarias que jamais seriam trocadas por alimento fresco por qualquer internal.

Seria possível que a criaturinha havia lido os seus pensamentos? Heleiel tentou apagar de sua mente a fome a sede o medo e o cansaço que sentia e tentou recompor-se. Apenas os magos que viviam reclusos nas montanhas azuladas que bordeavam sua vila natal seriam capazes de ver pensamentos e inimaginalmente poderoso seria aquele a desvendar os pensamentos de Heleiel, um ser especial nascido único após gerações de espera.

Os pensamentos de Heleiel foram interrompidos por quatro mãos gentis, o quanto pode-se esperar de gentileza de um internal, oferecendo-lhe comida, uma tosca manta de rudes fios de crualinha e uma vela (de onde teria vindo?) acesa.

O cheiro dos fungos e da sopa azeda colocados perto de suas asas dobradas não poderia provocar tanta naúsea quanto o súbito reaparecimento da criatura. Heleiel sentia a vertigem de uma queda abrupta, caindo das alturas de seu conhecimento sobre o mundo. Onde estavam seus pais que juntos conheciam tudo sobre todos os mundos?

Os olhos da criaturinha apagaram-se num violáceo poente. Heleiel foi deixado só, livre para pensar, grato pela natureza não bisbilhotera da criatura. Heleiel estava enganado qanto à sua primeira impressão. Discrição não cobinava com a natureza feminina. Definitivamente a criatura era um menino de sua raça.

Quando a fome torno-se maior que o asco, Heleiel provou dos fungos. Fora a fina película que os cobria, tinham consistência amorfa, mole e porosa e seu gosto mais detestável que a sua aparência mas, quando comparado à sopa azeda, os fungos eram ótimos de serem comidos. No mais, Heleiel presentia que deveria manter-se forte, não obtanta a comida disponível e pronto chegou o sono em seu corpo dolorido pelo efeito do veneno da caiuina, do peso da rede, agora trocada pela manta de crualinha que fora trazida pelo menino de olhos cor de violeta.

O fio de uma luz tocou o prisioneiro birgtintoniano, abrindo-se num caminho por onde juntos, com suas asas entrelaçadas do modo usual, andavam os pais de Heleiel. Sua mãe aproximou-se sorrindo, beijando-lhe a testa da forma como só ela sabia beija-lo, da forma como sempre beijaria. Seu pai circunspecto carregava em suas mãos uma esfera cuja cor Heleiel não saberia descrever por muito tempo, por todas aventuras que passaria. Com movimentos suaves o sábio artesão começava a depositar a esfera no chão próximo de onde jazia seu filho, mantendo o seu profundo olhar sempre fixo nos olhos de Heleiel e, num súbito, o brilho das asas douradas de seus pais desapareceu na escuridão que voltou a ser dona absoluta de todo o mundo que Heleiel poderia alcançar.

O Sol parecia estar nascendo fora das cavernas dos internais, os quais se reuniam para a ceia de antes de dormir.

Um agito que poderia ser notado como anormal mesmo para o extrangeiro captivo, abalava a pemumbrosa terra dos internais. Uma internal curvada, arrastando-se em apenas três pernas passou por Heleiel, arranstando consigo, num visível esforço, um caldeirao fétito, pleno de comida para a ceia.. Seus guinchos incompreensiveis eram proferidos em um tom que, ao ver do prisioneiro, melhor seria continuar nsabendo sua tradução.

O Sol acabara de nascer quando o companheiro de olhos cor de violeta resurgiu de forma estupenda, correndo pelos precipícios da vila do povo interno e finalmente, com pompa, atirando algo para Heleiel. Pasmo e alegria! Era uma suculenta pomesuma. De onde teria o menino de olhos cor de violeta conseguido uma fruta fresca? Heleiel não questionou muito a origem da fruta, devorando a preciosa guloseima, deixando o rosado suco da fruta escorrer pela suas mãos e logo lambendo tudo, com o prazer que apenas os abandonados pela sorte apreciam.

Por seu turno, quando capturasse um internal sem motivos óbvios para tê-lo feito, Heleiel alegremente se lembraria de atirar-lhe raízes fétitas.

O agito que pairava na vila dos internais seria causado pela presença forçada de Heleiel na vila do povo interno? Heleiel fora encarregado de guardar, desde o tempo que tinha suas lembraças despertas, a memória de seu mundo e todavia não sabia de houverem birgtintonianos mantidos prisioneiros dos internais. Eram de fato maus, mas nunca estupidos, frágeis que eram a luz do dia, a se rexpor a uma guerra contra os povos de luz que habitavam acima o solo.

Dois conhecidos sóis da cor do orvalho das flores de urvarum brilhavam próximos de Heleiel, olhando para a fraca, quase extinta luz da única fogueira acessa na vila. Então, pensou Heleiel, havia fogo e tantas luzes que não seriam supostas aos escuros internais?

A atenção de todos estava centrada na fogueira, disposta no centro da vila. Formando um triângulo entre o fogo e a velha internal que arrastava o caldeirão há pouco um internal discursava, intercalado pelas intervenções da velha internal.

Enquanto a vetusta internal fazia gestos horríveis gesticulando as quatro mãos ao mesmo tempo, seus dedos, tão longos quanto os anos que carregava, apontavam amuíide o cativo do mundo claro. Quanto Heleiel desejava saber o que diziam!

As mãos do menino internal tocando-lhe o joelho não atrapalhavam a sua concentração e, pouco a pouco, focando ao máximo a sua atenção, a conversa das duas figuras centrais começou a fazer-lhe sentido. Ora, então o prisioneiro fazia parte de uma tentativa para salvar todos os mundos?

Como era possível que os mundos estivessem em perigo e seus pais não foram alertados? pensou Heleiel. O que sabiam os internais? Se ao menos o menino internal parasse de tocar as suas pernas com seus dedos de galhos secos Heleiel poderia se concentrar mais.

O mundo se transformou num grito de mágoa enquanto a conversa dos internais voltou a ser feita de guinchos agudos. O menino de olhos violetas se reucara de repente e Heleiel entendeu nesse momento que seu único aliado, o único sol que o guiava nesse mundo escuro fora ferido por seus pensamentos.

-``Volte, volte! Eu não queria pensar isso! Podemos ser amigos.''

O grito de Heleiel ecoou alto, abalando as estruturas frágeis e caoticas da vila internal, derrubando pedras, causando tumulto e pânico entre os vilões.

O menino de olhos violetas desviou-se hábil do cáos provocado pelas pedras negras que corriam pelos precipícios sombrios habitados pelos internais. Heleiel estava em perigo. Seu cativeiro era alvo da fúria dos internais e de sua fúria cega que havia provocado a avalanche.


 
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Maria Angela Weiss
2000-06-27