Reflexões sobre Xadrez Eletrônico

Valdemar W. Setzer
Depto. de Ciência da Computação,
Instituto de Matemática e Estatística da USP
www.ime.usp.br/~vwsetzer

(Este ensaio contém a essência  de um e-mail enviado em 13/6/96 para os colegas do IME-USP, a propósito de um convite para um torneio de xadrez no Instituto; naquela ocasião eu estava chumbado na cama com 2 hérnias de disco. Os PSs são posteriores.)

Burrice 1. Na revista Time de 1/4/96, p. 47, há um artigo do campeão mundial Garry Kasparov relatando seu torneio contra a maquina "Deep Blue" da IBM, que só joga xadrez. K conta que no 1o. jogo em 10/2/96 DB fez um lance sacrificando um pião, o que o deixou extrememente abalado, pois achava que isso significava que a máquina "understood the game", como ele coloca, e não apenas calculava os melhores lances. Esse choque deixou-o tão nervoso, pois "[ele] could smell a new kind of intelligence across the table", que  acabou perdendo o jogo.

Burrice 2. Depois desse jogo, K foi conversar com os projetistas da máquina, e verificou que ela havia simplesmente calculado todos os lances e deduzido que 6 movimentos depois o pião seria recuperado. Aí ele ficou sossegado, pois "The computer didn’t view the pawn sacrifice as a a sacrifice at all", comecou a deduzir quais eram as estratégias do programa e a jogar levando-as em conta. Por exemplo, a máquina tinha muitas aberturas armazenadas, de modo que ele começou a jogar lances bobos nas aberturas, e a máquina não conseguia mais usar os padrões. "My overall thrust in the last five games was to avoid giving the computer any concrete goal to calculate toward. ... In the end, that may have been my biggest advantage: I could figure out its priorities and adjust my play. It couldn’t do the same to me. So although I think I did see some signs of intelligence, it’s a weird kind, an inefficient, inflexible kind that makes me think I have a few years left." Ele acabou ganhando o torneio, se não me engano sem nenhuma derrota no restante das partidas.

Burrice 3. No número da Scientific American (SA) de maio de 1996, p. 10, há uma entrevista com os projetistas do DB, um sistema paralelo com 16 nós. "In three minutes, the time allocated for each move in a formal match, the machine can evaluate a total of about 20 billion moves; that is enough to consider every single possible move and countermove 12 sequences ahead and selected lines of attack as much as 30 moves beyond that. 'The fact that this ability is still not enough to beat a mere human is amazing', Campbell [um dos 6 gurus da IBM por detrás do DB] says. The lesson, Hoane [outro deles] adds, is that masters such as Kasparov 'are doing some misterious computation we can't figure out' ." (Meus grifos.)

Burrice 4. Se vocês estranharam a minha expressão pouco acadêmica "guru", aqui vai a justificativa dela: no número de outubro de 1990 da SA, Campbell predisse que "Deep Thought" (precursora da DB, atenção para a pouca modéstia do nome da máquina...) poderia vencer qualquer jogador humano vivo "perhaps as early as 1992". Na última entrevista, eles foram um pouquinho menos burros e não quizeram fazer nenhuma previsão.

Burrice 5. Apesar desse fantástico aprendizado e admirável mostra de humildade dos gurus, eles dizem que K estava fazendo algum "cálculo misterioso". Para mim parece óbvio que K ganhou justamente por que, além de poder calcular de maneira extremamente limitada (quantas combinações ele conseguia pensar, algumas dezenas?), ele tinha o que sempre se chamou de intuição, essa capacidade anti-cientifica de "sacar do nada". E ele não consegue descrever esse processo de intuição, que lhe aponta para o lance correto sem precisar burralmente testar bilhões de combinações, simplesmente porque ele não é lógico e (minha hipótese fundamental sobre o pensar) nem físico. E, portanto, vou conjeturar que jamais será colocado numa máquina.

Burrice 6. A respeito do assunto, gostaria de entrar aqui em considerações sobre Teoria do Conhecimento (ou "da Cognição", como pesquisadores dessa area estão chamando). No entanto, isso levaria muito longe, e preciso parar logo de usar meu "bellytop" para mudar de posição. Gostaria apenas de citar a burrice dos pesquisadores, de procurarem a agulha perdida embaixo do poste de luz - isto é, onde eles enxergam com seus métodos e hipóteses atuais - e não onde ela foi efetivamente perdida. Um exemplo disso é o artigo de D.J.Chalmers no SA de dez. 1995, pp. 62-68, sobre consciência, e que produziu grande impacto (ignorem o artigo da Time, conseqüência do de Chalmers, e onde está inserido o citado de Kasparov; o título já mostra tudo: "Can machines think?" - é muita burrice junta). Chalmers diz: "Despite the power of physical theory, the existence of consciousness does not seem to be derivable from physical laws. ... If the existence of consciousness cannot be derived from physical laws, a theory of physics is not a true theory of everything. So a final theory must contain an additional fundamental component. Toward this end, I propose that conscious experience be considered a fundamental feature, irreducible to anything more basic." Fantástico, a consciência seria um "Urphänomen", um "Fenomeno Primordial" na linha proposta por Goethe, por exemplo, para a luz (que continua um mistério...). Isso mudaria os métodos e abriria um enorme campo de pesquisa (veja-se, por exemplo, a "Farbenlehre", a teoria das cores de Goethe, que tem em minha opinião resisitido a críticas consistentes). Do mesmo modo deveriam ser investigados os seguintes fatos que, entre muitos outros,  para mim não fazem sentido do ponto de vista puramente físico: a origem e os limites do universo, mesmo a propria matéria (veja-se a recente provável divisibilidade dos quarks...), a óbvia auto-determinação do pensamento (experiência que qualquer um pode fazer consigo proprio - note-se que não se trata de não-determinismo e nem de aleatoriedade!) e até a aparente banalidade da forma de uma folha (problema da morfogênese). Só que, no fim, Chalmers diz: "[such ideas] might evolve into a more powerful proposal that predicts the precise structure of our conscious experience from physical processes in our brains." Pronto, a estreiteza corrente fechou as portas outra vez. Alias, é interessante notar que ele nunca fala de auto-consciência! É obvio, isso levaria a outros aspectos não-redutíveis como a individualidade e o livre arbitrio...

Burrice 7. No número de abril de 1996 da SA, pp. 54-62, há um artigo de A.P.Pentland sobre projetos do Media Labs do MIT; alguns deles me foram mostrados pelo nosso colega Cláudio Pinhanez no ano passado [1995]. No fundo, eles envolvem reconhecimento de faces, de posições e expressões corporais, de movimentos de um motorista, tudo em volta do que eles denominam um "smart room", uma sala com capacidades de reconhecimento (de quem está lá, o que está fazendo, que expressão facial está tendo, etc.). No fim Pentland diz: "Other research groups at the Media Lab are working to grant our smart rooms the ability to sense attention and emotion and thereby gain a deeper understanding of human actions and motivations." (Meu grifo.) Isto é, o velho ideal da I.A. ("Imbecilidade Automatizada"...) continua de pé: as máquinas vão nos ajudar a compreeder quem somos. É uma pena que ele não chame a atenção para o fato de que, como no caso do xadrez, todos esses programas não simulam nossa maneira de pensar ou reconhecer, simulam apenas o resultado dessas nossas atividades, e ainda restritas a pensamentos algorítmicos, expressos em uma linguagem de programação e, portanto, não dizem absolutamente nada sobre o nosso "funcionamento". A enorme capacidade computacional envolvida, a complexidade desses programas, e o busilhão de cálculos que eles têm que efetuar para imitar mal e porcamente algumas de nossas capacidades deveriam levar a uma profunda admiração, por que não, veneração pela nossa própria constituição, que revela uma sabedoria e uma estrutura de outra natureza da que conseguimos colocar dentro de qualquer máquina.

Burrice 8. Sabem porque se diz que xadrez é um jogo idiota? Até computador joga bem... A esse respeito, é interessante transcrever aqui o que me disse recentemente Wang (vulgo "Ômega"), o campeão sul-americano de Go: contrariamente ao xadrez, e apesar de sua aparente simplicidade muitíssimo maior, não há nenhum programa que jogue Go muito bem. Mmmm... será que Go é um jogo mais "inteligente" que o xadrez???

Val (um mero humano, segundo M.Campbell...)

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PS1: Posteriormente, em maio de 1997, houve mais um torneio entre Kasparov e DB, agora aumentada para 256 processadores paralelos, testando 200 milhões de lances por segundo (o dobro da máquina anterior). Kasparov perdeu por 2 a 3. Uns e outros materialistas ficaram triunfantes - a máquina tinha suplantado o ser humano, essa máquina imperfeita... Só que eles não refletiram para o fato dele ter ganho 1 partida e empatado 2 (DB venceu 2 partidas), em jogos de certa maneira desleais, pois DB tinha armazenadas partidas jogadas por ele e estratégias deduzidas delas, e ele não tinha conhecimento das estratégias da máquina. Aliás, segundo consta para essa máquina os projetistas retiraram todas as estratégias, fora a comparação com milhares de posições de jogos. Isto é, a máquina jogava na "força bruta", simplesmente testando as várias combinações de lances possíveis à frente. Como é possível um ser humano ganhar de uma máquina matemática em um jogo matemático em que ela faz uma quantidade astronômicamente maior de previsões de lances adiante em relação à capacidade do primeiro? Admite-se que Kasparov testava mentalmente 3 lances por segundo, o que acho um exagero; mas mesmo se assim fosse, a máquina testaria quase 100 milhões de vezes mais lances do que ele no mesmo tempo. A conclusão lógica é que o ser humano não é uma máquina, e tem capacidades mentais que estas jamais poderão ter – e que não podem ser descritas matematicamente.

PS2: Sobre o fascinante problema da morfogênese citado acima, veja-se o excelente livro de R.Sheldrake, A New Science of Life - The Hypothesis of Formative Causation, Los Angeles: J.P.Tarcher, Inc. 1987. Não estou de acordo com sua hipótese fundamental do "Campo Morfogenético" ser físico, mas fora isso apreciei imensamente o seu livro. Ele já merece a nossa atenção simplesmente pela revista Nature ter publicado um editorial sobre a primeira edição de 1981 com o título "A book for burning?" Eu sempre digo: "Alguém quer encontrar preconceitos? Basta ir ao meio acadêmico!"

São Paulo, fevereiro de 1998. Última alteração: 8/11/11.