VINTE E UM PECADOS CAPITAIS EM UMA AULA DE MATEMÁTICA
Valdemar W. Setzer
www.ime.usp.br/~vwsetzer
Original: 14/10/15. Esta versão: 16/10/21
Este texto, que foi inserido como o cap. 30 de meu livro A matemática
pode ser interessante... e linda! Espirais, Fibonacci, razão áurea,
crescimento proporcional e a natureza (ver detalhes em minha home
page), foi inspirado na palestra "Ensino
de Matemática: quatro pecados capitais" (ver cópia
local) que Nilson José Machado, da Faculdade de Educação da
USP, deu em 2017 em evento promovido pelo Centro de Aperfeiçoamento
do Ensino da Matemática (CAEM) do IME-USP. Os "pecados"
dele estão no fim. Os itens a seguir não estão ordenados pela importância.
Alguns deles servem para qualquer matéria. Depois da menção
de cada um há uma explicação sobre ele e/ou como
evitá-lo.
- Aula excessivamente formal abstrata. Por exemplo, só com álgebra,
pois ela é pura manipulação de símbolos, ela é "morta", sem estética.
Ou começar um tópico com definiçoes, lemas e teoremas
em lugar de começar com aplicaçãos. Nesse segundo
caso, as definições, lemas e teoremas farão sentido.
- Aula sem estética. A estética da matemática está na geometria.
O correto é, sempre que possível, começar qualquer tópico com geometria,
e fazer as/os alunas/os desenharem a mão livre e com cores. Em bonitos
desenhos, a geometria é "viva", pois envolve sentimentos estéticos.
As/os alunas/os trão prazer em guardar as anotaçãos
e os exercícios.
- Aula sem as/os alunas/os fazerem algo com as mãos. Por exemplo,
desenharem. Mas fazerem cálculos já é alguma coisa.
- Aula sem ritmo. As/os alunas/os devem absorver algo da matéria
e logo depois fazer algo com o que aprenderam, alternando-se esse ritmo
durante a aula. Isso corresponde a um ritmo de inspiração e expiração,
muito usado na pedagogia Waldorf. Se as/os alunas/os ficam só absorvendo,
é como se inspirassem o ar sem parar.
- Aula sem aplicações práticas do que foi aprendido. Até o fim
do segundo grau, tudo deveria ter aplicações práticas.
- Aula sem relacionar o assunto com a natureza. Fazer essa relação
na medida do possível.
- Aula sem deixar dúvidas. Ver o item 9 abaixo.
- Aula somente correta. As/os professoras/es deveriam cometer
erros propositais, e avisar no começo da aula que isso irá ocorrer.
Pode-se fazer um concurso de quem descobre os erros. Isso faz as/os
alunas/os prestarem atenção, e revela os que têm mais conhecimento e
talento.
- Aula sem fazer um gancho com a aula anterior. Para isso pode-se
fazer uma avaliação low tech, aparentemente desenvolvida na Universidade
da Califórnia em Berkeley (procurar na internet por "one
minute paper – há várias versões) pedindo-se
às/aos alunas/os que no fim da aula respondam na parte da frente
de metade de uma folha de papel: 1. O que aprendi de mais importante?
2. Qualis as maiores dúvidas que ficaram? 3. Comentários (esse
item foi acrescentado por mim). As/os alunas/os podem colocar opcionalmente
seu nome, e nesse caso especificarem se deve ser confidencial ou não;
nesse último caso o/a professor/a pode citar quem escreveu a avaliação
e sugerir que conversem entre si depois da aula. Na aula seguinte, selecionar
algumas avaliações para mencioná-las, ligando-se assim uma aula à outra
a partir do que as/os próprios estudantes manifestaram. Além disso,
essas avaliações servem para orientar o/a professor/a quanto ao que
as/os alunas/os acharam da matéria. É interessante notar que
várias/os estudantes escrevem o que não tiveram coragem
de perguntar durante a aula. Em disciplinas que eu dava, costumava acrescentar
uma 4ª pergunta, "Com que colegas conversou sobre a aula anterior"
e depois conferia se as referências a colegas correspondiam ao
que esses últimos tinham respondido. Como cada avaliação
era identificada, eu costumava ajuntar todas de cada aluna/o em uma
pastinha, que lhe entregava no fim do semestre letivo. Assim as/os alunas/os
tinham uma memória de suas avaliações. Se forem
muitos em uma classe, pode-se pedir a avaliação apenas
às/aos sentados em uma ou duas fileiras, que devem ser diferentes
a cada aula.
- Aula sem mencionar algo da história da matemática. Por exemplo,
algo que atrai muito as/os alunas/os são biografias das pessoas que
descobriram ou desenvolveram os assuntos tratados na aula. Isso traz
realidade histórica para o que está sendo ensinado.
- Não usar a sequência do desenvolvimento histórico da matemática.
As/os alunas/os estão refazendo o desenvolvimento do conhecimento e
do pensamento; usar a sequência histórica é fazê-los repassarem a evolução
histórica, que foi uma realidade. Especialmente no ensino médio,
as/os estudantes gostam muito de ouvir sobre biografias, pois estão
cientes de que logo começarão a enfrentar sozinhos sua
vida.
- Não esforçar-se para conhecer o nome das/os alunas/os. Chamar
um/a aluno/a pelo nome produz um contato pessoal com ele/a. Aproveitar
que um/a aluno/a faz uma pergunta para perguntar seu nome antes de responder.
Perguntar o nome de um/a aluno/a antes de lhe perguntar algo.
- Não fazer perguntas às/aos alunas/os. Pelas respostas
pode-se saber se elas/es estão acompanhando e fazê-las/os participar.
Não perguntar às/aos alunas/os é, de certo modo,
ignorá-los, tratá-los como coisas , como meros receptáculos
da matéria. As/os alunas/os adoram aulas de audiovisual, pois
podem dormir à vontade, já que muitas/os podem ter passado
boa parte da noite jogando video games ou usando a internet.
- Usar projeção com tela para algo que não seja uma ilustração.
Jamais usar uma projeção para deduções, pois se estas são feitas no
quadro-negro, seguem o ritmo humano do raciocínio.
- Não observar se as/os alunas/os estão ficando sonolentos.
Nesse caso, passar tarefa para elas/es fazerem algo na hora ou iniciar
um debate.
- Dar aulas sem transmitir entusiasmo pela matéria. O
entusiasmo do/a professor/a transmite-se às/aos alunas/os.
- Dar aulas olhando somente para o quadro-negro. Com isso desprezam-se
as/os alunas/os como pessoas.
- Dar aulas com uma ou as duas mãos no bolso. Isso passa uma
imagem inconsciente de que o/a professor/a está tentando esconder-se,
está com medo e necessita de proteção.
- Dar aulas exclusivamente sobre a matéria. Discutir brevemente
assuntos filosóficos ou da atualidade traz realidade para a aula, principalmente
em assuntos que tocam as/os alunas/os. Isto é, a/o professor/a deve
aparecer como gente e não como um livro didático ou um ensino à
distância. Imagine-se a riqueza de conhecimentos e opiniões que
as/os alunas/os poderiam absorver se todos as/os professoras/es fizessem
isso.
- Não respeitar a maturidade das/os alunas/os. A pedagogia Waldorf
é um exemplo de ensino de sucesso baseado na maturidade por idade, pois
tem como fundamento principal uma conceituação profunda
sobre o desenvolvimento da criança e do adolescente.
- Dar um mesmo assunto da mesma maneira em classes diferentes. Isso
seria ignorar a individualidade das/os alunas/os, e tratá-los como massa,
como coisas. O/a professor/a transforma-se num robô, e nesse caso talvez
uma máquina acabe ensinando melhor...
A respeito de aulas que não despertam o interesse das/os alunas/os,
talvez seja interessante citar uma de minhas "leis", publicada
na seção Fórum dos Leitores do jornal O Estado
de São Paulo, na edição impressa de 20/4/11,
sem a parte de EAD: O ensino está tão ruim, mas tão
ruim, que até computadore ou ensino a distância (EAD) ensinam
melhor
Os quatro "pecados" segundo Nilson J. Machado
- Desamparo: preconcepções sobre tendências inatas (por exemplo,
superestimar o conhecimento e capacidade das/os alunas/os
- Mateologia: ensino de assuntos acima da capacidade de compreensão
das/os alunas/os.
- Fantasmas: excesso de abstração, falta de realidade.
- Cocotologia: abusos na linguagem (abuso de definições).
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