Sonia Setzer

PARSIFAL: UM PRECURSOR DO SER HUMANO MODERNO

São Paulo: Editora Antroposófica, 2008

Introdução

Rudolf Steiner (1861–1925) foi um importante pensador austríaco que desenvolveu sua maior atividade na Alemanha e na Suíça. Tendo ministrado um considerável número de cursos e palestras em muitos países da Europa, todos eles publicados, escreveu ainda quase trinta livros sobre os mais diversos assuntos. No início do século XX, depois de ter atuado por alguns anos como Secretário-geral da seção alemã da Sociedade Teosófica, desvinculou-se desta e fundou a Sociedade Antroposófica. A partir de pesquisas objetivas realizadas no âmbito espiritual, formulou inicialmente as bases conceituais do que denominou "ciência espiritual antroposófica". Mais tarde promoveu várias inovações no âmbito artístico (pintura, escultura, arquitetura) e criou a Eurritmia e a Arte da Fala, novas expressões artísticas no campo do movimento e da dicção (recitação e dramaturgia), respectivamente. Nos últimos anos de vida, atendendo a solicitações de muitos profissionais e outras pessoas, deu novos impulsos às áreas da Pedagogia, da Medicina, da Farmacologia, da Pedagogia Terapêutica e da Agricultura, entre outras.

Em 1919 foi fundada a primeira Escola Waldorf em Stuttgart, a pedido dos operários da fábrica de cigarros Waldorf-Astoria, os quais desejavam para seus filhos uma educação mais ampla e humanizada do que a que haviam recebido. O currículo e a estrutura da Pedagogia Waldorf elaborados por Steiner significaram (e ainda significam) uma verdadeira revolução no sistema educacional. Seu fundamento é o desenvolvimento da criança e do jovem, tal qual Steiner o descreveu com base em sua pesquisa espiritual. Para os alunos do penúltimo ano escolar, com idade em torno de dezessete anos, ele introduziu o estudo da obra Parsifal, de Wolfram von Eschenbach, no contexto da Literatura Medieval Alemã.

Hoje em dia há escolas que aplicam a Pedagogia Waldorf espalhadas em todos os continentes. No Brasil, a primeira Escola Waldorf, a atual Escola Waldorf Rudolf Steiner de São Paulo, foi fundada em 1956. Quando se iniciou o ensino médio dessa escola, meu pai, Rudolf Lanz (1915–1998), um de seus fundadores e que seria o responsável por algumas das matérias a serem ministradas nesse ciclo, sugeriu que o tema ‘Parsifal’ fosse trabalhado durante uma viagem de classe, com duração de uma semana. As aulas teóricas seriam complementadas com aulas de pintura. A sugestão foi aceita, e desde 1974 esse curso vem sendo ministrando dessa maneira naquela e em algumas outras escolas Waldorf brasileiras. O próprio professor Lanz assumiu o curso, dando-lhe uma estrutura inteiramente nova em comparação com a que era adotada na Europa até então.

Em inúmeras conferências, Rudolf Steiner havia revelado a importância da obra de Wolfram, sublinhando não se tratar de mera literatura cavalheiresca e mostrando que, por detrás de todas as aventuras, havia uma mensagem esotérica muito profunda. Ele até mencionou o fato de Wolfram ter sido um iniciado, apto a colocar em linguagem trovadoresca verdades espirituais importantes. Quem, na época, estivesse familiarizado com os conteúdos espirituais saberia a quê se referia ele; quem não dispusesse desse conhecimento esotérico teria prazer nas aventuras relatadas e absorveria inconscientemente as elevadas mensagens ocultas, como ocorre com os contos de fadas dos Irmãos Grimm.

Em 1990, Rudolf Lanz adoeceu e não pôde ministrar o curso previsto. Eu trabalhava na mesma instituição como médica escolar, e certo dia um grupo de professores perguntou-me se eu estaria disposta a substituí-lo nesse curso. Numa atitude compatível com a de Galvão (assunto a ser abordado neste livro), aceitei o desafio. Preparei- me com meu pai, que me transmitiu todo o esquema do curso e alguma bibliografia. Na época, tive oportunidade de conversar com professores Waldorf estrangeiros de passagem pelo Brasil e com vários amigos; enfim, recebi muita ajuda. O primeiro curso foi mais uma cópia da abordagem de meu pai, mas já nessa ocasião introduzi pequenas modificações. No ano seguinte ele já estava plenamente restabelecido, mas recusou-se a voltar a ministrar essas aulas. Desde então tenho-me dedicado a essa tarefa, porém com uma atitude mais compatível com a de Parsifal: a de aprofundar-me cada vez mais, estudando e lendo tudo o que me cai nas mãos. Pouco a pouco fui acrescentando aspectos novos, modificando o material ‘herdado’. Houve um momento em que, por motivos particulares, eu não poderia assumir o curso previsto, mas não havia quem me pudesse substituir; com muita dificuldade e sacrifício, dei as aulas possíveis. Entendi, então, que tinha de preparar outra pessoa para dividir comigo essa tarefa. Quase não havia bibliografia disponível em português; além disso, para ministrar esse curso com uma postura interior adequada o(a) professor(a) deveria ter alguma familiaridade com os conteúdos da Antroposofia. Encontrei uma companheira maravilhosa na pessoa da professora Ilka Roth. Durante vários anos, dividimos essa tarefa

No entanto, senti a necessidade de tornar o material que eu havia estudado, as novas idéias que eu havia desenvolvido e a experiência acumulada acessíveis a outros professores. Talvez alguém tivesse o desejo de ministrar esse curso, sem ter a mesma facilidade que eu tive para consultar a riquíssima bibliografia existente em outros idiomas. Assim, surgiu a idéia de escrever este livro. Inicialmente era um germe embrionário, pois ainda faltavam muitas leituras, principalmente do aspecto esotérico oculto atrás do conteúdo exterior, não abordado junto aos alunos. Redigi no começo apenas os tópicos apresentados a eles, permitindo-me o tempo para um amadurecimento dos aspectos mais profundos, apesar da pressão – aliás, bastante positiva – de meu marido, Valdemar Setzer, para que eu criasse e concluísse rapidamente este livro. Comecei também a dar cursos sobre ‘Parsifal’ para adultos, expondo cada vez mais os conteúdos espirituais. Nesse meio tempo, o embrião passou à fase fetal, cresceu, engordou e está prestes a nascer. Em realidade, desde meus primeiros estudos até o momento do ‘parto’ a Lua terá completado aproximadamente um ciclo de passagem pelo zodíaco: o chamado ‘nodo lunar’ ocorre a cada 18 anos e 7 meses.

Tal qual procedo em todos os cursos, inicio este livro com uma breve descrição da Idade Média, a fim de evocar o clima da época e proporcionar informações importantes sobre o que será abordado posteriormente. Segue-se a menção de várias obras que tratam do tema do Graal, de Parsifal ou outros correlatos. Depois há um resumo da obra de Wolfram, com a descrição dos personagens e das cenas que a compõem. A análise da obra começa por sua estrutura (absolutamente genial; como fiquei feliz ao conseguir solucionar seu enigma!), para em seguida abordar os encontros importantes que marcaram a vida do herói principal. É fascinante como, após tantos anos e dezenas de cursos ministrados, ainda tenho novas intuições a respeito de significados vários.

Quanto aos aspectos gerais da obra, a ênfase maior cabe às três correntes culturais nela representadas: a cultura celta, o cristianismo e o arabismo. Na narrativa são mencionados três símbolos do Graal: a espada, a lança e o próprio Graal. Para se poder comparar a corte de Artur e a Comunidade do Graal, é preciso primeiro elucidar o mistério em torno da espada do Graal.

Depois de analisar as situações e atitudes que diferenciam as figuras de Parsifal e Galvão, introduzi um capítulo abordando o desenvolvimento interior pelo qual passa Galvão (assunto não tratado com os alunos). A seguir, analiso o significado da lança do Graal e do próprio Graal. Este último tema não é tratado com a mesma profundidade com os alunos, pois junto a eles omito grande parte de seu caráter esotérico, aqui descrito; prefiro deixar que as imagens falem por si.

O capítulo seguinte trata de várias correntes históricas. Ele se inicia com uma descrição da seita judaica pré-cristã dos essênios, cujos membros estavam preparando-se intensamente, e de maneira singular, para a vinda do Messias. A seguir aborda correntes heréticas e místicas que têm, como fio condutor, a prática de um cristianismo esotérico. Um item sobre a Igreja Católica salienta sua missão e a diferencia das outras correntes.

No último capítulo, tento mostrar o caminho de iniciação percorrido por Parsifal; deste também omito muitos aspectos aos alunos. Na faixa etária em que estes se encontram, é mais importante receberem imagens fortes, que os toquem. Quando forem adultos, e se ainda quiserem aprofundar-se, poderão tomar conhecimento conceitual desses conteúdos mediante busca própria. Talvez este livro também possa servir para satisfazer sua procura.

Constam aqui inúmeras citações da obra de Wolfram. Elas estão assinaladas tal qual na tradução para o português de Schmidt Patier1: L. abrevia ‘Livro’ – ao todo são dezesseis. Segue-se o número do livro (em algarismos romanos) e, depois de uma vírgula, o número em algarismos arábicos da estrofe – sempre de trinta de versos. Assim, L. V, 231 significa o Livro V, estrofe 231, conforme se encontra na margem da tradução. Em notas de rodapé estão citadas as obras mencionadas no capítulo. No final do livro encontra-se uma bibliografia com todas as obras pesquisadas. A grafia dos nomes próprios empregada aqui é a da mencionada tradução para o português.

Durante todos estes anos recebi ajuda de inúmeras pessoas, não sendo possível citá-las todas. Contudo, não quero deixar de mencionar minha imensa gratidão aos meus colaboradores mais próximos: Ilka Roth e os professores de pintura Luzius Zaeslin e Eleonora Oiticica Canaes. Gostaria de dar ênfase especial ao fato de Luzius Zaeslin ter cedido as pinturas que ilustram este livro, inspiradas em nosso trabalho conjunto sobre Parsifal. Muitos anos de dedicação ao tema, aliados a uma grande sensibilidade e profundidade, permitiram a execução de pinturas cujo colorido e conteúdo tão bem fazem transparecer o caráter enigmático, profundo, e ao mesmo tempo tão colorido da narrativa.

Devo agradecer também aos professores-tutores responsáveis pelas classes (da Escola Waldorf Rudolf Steiner de São Paulo, do Colégio Waldorf Micael de São Paulo e da Escola Livre Porto Cuiabá, de Mato Grosso) que tive o privilégio de acompanhar; e às centenas de alunos de meus cursos – jovens e adultos, provenientes das escolas e de cursos de formação de professores Waldorf –, bem como de grupos de professores Waldorf e de outros profissionais, além de pessoas interessadas em geral, inspiradoras de inúmeras idéias que me surgiram durante as aulas, e que ainda fizeram muitas contribuições diretas. Sem todas essas pessoas não me teria sido possível amadurecer nesse tema e seguir essa trajetória tão maravilhosa de minha vida.

Sonia Setzer, novembro de 2008

1 Wolfram von Eschenbach, Parsifal.


Desviar para a capa com os textos correspondentes