Computador. Pode ser perigoso para menores

Computador para crianças? Nem pensar. Só aos 17 anos a máquina oferece menos riscos, e, até os adultos devem manuseá-la com cautela. A opinião não é de leigo nem de anticomunicador fanático: foi expressa com todas as letras pelo professor Valdemar W. Setzer, do Departamento de Ciência da Computação, do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (USP), consultor da Promon, do IPT e da Itautec.

Para os que imaginam a criança mais bem informada por manusear computadores, ter acesso a Internet ou ficar com reflexos mais rápidos por vencerem os desafios do videogame, o prof. Valdemar Setzer deixa seu recado e um universo de graves indagações.

Em entrevista à repórter Sueli Parente o professor fala ao jornal Vida Integral sobre os efeitos negativos de computadores, videogames, Internet e televisão para quem ainda está em fase de formação.

Vida Integral: Há quanto tempo o senhor estuda a influência do computador na mente das pessoas?

Valdemar Setzer: Desde 1.971. O primeiro curso que dei sobre impacto social e individual dos computadores foi no bacharelado em Ciência da Computação da USP, em 1.974. Desde essa época dou praticamente todo ano essa disciplina nesse curso de bacharelado. Este ano foi a disciplina optativa mais solicitada pelos alunos. Veja como a juventude está percebendo que é preciso ter atitude mais crítica, uma sensibilidade diferente com relação às máquinas, do que simplesmente sair usando uma.

Vida Integral: E por que o senhor considera o computador nocivo para a mente das pessoas, especialmente de crianças e jovens?

Valdemar Setzer: Para jovens e crianças certamente é nocivo. Para os adultos considero nocivo se for feito uso exagerado, ou mesmo se for pouco o uso, mas sem compensação.

O problema é que o computador impõe um pensamento que tecnicamente chama-se "lógico-simbólico". É um pensamento matemático, mas é uma matemática restrita e não ampla. Por exemplo, não se pode colocar no computador a noção de infinito ou de contínuo que se tem na matemática. Essa matemática restrita sempre lida com símbolos redutíveis a números. O computador, então, força esse tipo de pensamento e, com crianças, a constatação é de que esse pensamento não é adequado. Crianças não devem pensar dessa maneira matemática, formal e simbólica como o computador impõe. Por exemplo, quando se aciona um ícone para alinhar as linhas de um parágrafo verticalmente à esquerda e à direita, o que o computador faz internamente é executar uma função matemática.

Vida Integral: Como deixar esse processo mais claro para o leitor?

Valdemar Setzer: Não é difícil entender essa função. Ela conta o número de palavras em cada linha, conta os espaços à direita que sobram quando as palavras estão juntas, divide o número de espaços pelo número de palavras menos um, e depois começa a mover as letras, os caracteres das palavras inserindo entre cada duas o número de espaços calculados até distribuí-las igualmente na linha. É, portanto, uma função matemática que termina manipulando símbolos (as letras).

O computador executa uma função matemática para qualquer comando que se dê, seja num joguinho ou num editor de textos, ou mesmo na Internet. Esses comandos formam uma linguagem formal e exigem esse tipo de pensamento lógico-simbólico. É impossível usar qualquer software sem dar comandos à máquina. Cada comando ativa uma função que pode ser descrita matematicamente. Portanto, o raciocínio forçado pela máquina é do tipo matemático, apesar de usar notação diferente da usual na matemática.

Vida Integral: Diante disso, qual é a fase ideal para usar o computador sem prejuízos?

Valdemar Setzer: A criança não tem nada de formal. A linguagem da criança não é muito precisa, é cheia de erros de gramática e tudo isso não é fundamental para ela. É muito mais fundamental aquilo que exprime de sentimentos, de sua vivência, de sua vontade... Até os sete anos a criança é essencialmente vontade. Quando uma criança de sete anos quer um sorvete, só há uma maneira de ela não querer mais tomar sorvete: desviar a sua atenção para que tenha vontade de outra coisa.

Vê-se, portanto, que a criança nem se domina ainda. Dos sete aos 14 anos a criança devia estar desenvolvendo sua capacidade de imaginação e observação. Mas novamente sem teorias, sem formalismos.

Vida Integral: Mas a educação não é cheia de formalismos?

Valdemar Setzer: É lógico que na matemática na escola já se começa com formalismos, as operações, as frações... Existe uma conotação formal, só que no primeiro grau dever-se-ia relacionar as coisas estudadas, mesmo na matemática, com a vida real e não usar abstrações intelectuais. Se quer falar de frações, faça frações de uma pizza, de um bolo etc. Deve ser alguma coisa ligada à vida do jovem. Só no colegial é que o jovem vai estar desenvolvendo o pensamento a tal ponto de ele ser puramente abstrato. Aí está na hora, por exemplo, de se provar teoremas. Antes, no primeiro grau, não faz sentido. Isso mostra como o ser humano, o jovem, vai se afastando cada vez mais do mundo. O adulto é justamente aquele que consegue ter vida interior completamente afastada do mundo.

Veja quantos milhares de anos se levou para ver que o Sol está parado e é a Terra que está se movendo na rotação diuturna. É preciso uma capacidade de abstração fantástica para se chegar a essa conclusão, pois a experiência visual é do sol movendo-se no céu. Não se pode forçar essa capacidade de abstração nas crianças, como a humanidade também não podia ser forçada a pensar dessa maneira; aos poucos isso passou a se tornar uma coisa comum. Mas também não se deveria contar para uma criança que o sol não se move, pois é isso que ela vê. Se fizermos isso, estaremos contradizendo a percepção sensorial dela e isso é um absurdo, pois estaríamos exigindo uma abstração que ela não deveria ter.

Vida Integral: Então o computador limita a capacidade de a criança ver as coisas de maneira mais natural, mais humana?

Valdemar Setzer: Lógico. Acaba limitando porque se desenvolve pensamento abstrato fora da hora e, se a criança é forçada a exercer esse pensamento, ela já não está mais se comportando como criança. Não estará mais enxergando o mundo como criança.

Existe uma regra de ouro em educação: Não se pode queimar etapas em educação. Se se queima uma etapa, acaba-se gerando problemas psicológicos mais tarde. O computador, na minha conjectura, e eu não tenho provas disso, a não ser observando programadores e analistas de sistemas, produz muitos desses problemas. Esse pensamento que temos que exercer para usar um computador é extremamente limitado, rígido e é matemático. Se há algo exibido na tela, qualquer pessoa que apertar uma certa tecla vai produzir exatamente o mesmo efeito no computador. É uma máquina rígida como não existe na natureza ou em outras máquinas. Se uma pessoa faz uma curva, com um automóvel ou bicicleta, ao repetir o ato não fará exatamente a mesma curva. Mas no computador, como é uma máquina matemática, tudo é exato, o que não é próprio para as crianças.

Vida Integral: Se estivermos falando de jogos instrutivos ou de brincadeiras, ainda assim o computador é prejudicial para a criança?

Valdemar Setzer: Óbvio, pois como eu disse, qualquer software força um pensamento abstrato, lógico-simbólico, e uma linguagem formal, mas para que é preciso se preocupar em ver a criança aprender coisas abstratas, virtuais? Sabe o que ela precisa aprender? Precisa aprender a se localizar no mundo. Ela tem que aprender o que o mundo é e não, por exemplo, sinônimos de palavras. Lógico, que no primeiro grau isso tem que acontecer aos pouquinhos. Com o computador, existe um grande problema em educação. É que o computador, e muito pior a Internet, produz um ensino primeiro totalmente desumano, porque é feito por uma máquina e não por uma pessoa. Em segundo lugar, é algo totalmente descontextualizado.

Vida Integral: Como assim?

Valdemar Setzer: A educação sempre foi contextual. Quando um pai vai comprar um livro para seu filho, ele olha o livro para ver se é adequado para a idade, para a maturidade, verifica se o livro é bom e corresponde à educação que ele considera ideal, e principalmente se é contextual em relação à criança. Quando uma professora dá aula, ela leva em conta a aula anterior que deu, o que foi dado na semana, mês e ano anteriores. Quando a escola é integrada, como as escolas que eu uso como base, um professor leva em conta o que os outros professores estão ensinando.

O computador não leva em conta a maturidade e a individualidade da criança. Ele está lá pronto e a criança vai usá-lo do jeito que quiser, mas sempre dentro do espaço bitolado apresentado pelo software. Muito pior é a Internet, onde ela vai ter acesso a coisas que não foram nem colocadas no computador pelo professor ou pelo pai. Vai ter acesso a qualquer coisa fora do seu contexto de maturidade, de local, porque a criança nasce completamente integrada no mundo e aos poucos vai desenvolvendo uma separação em relação ao mundo. Se a criança pequena puder escolher o "site" adequado estará se comportando como adulto, o que produzirá problemas mais tarde.

Vida Integral: O senhor fala em seus artigos na Internet em indução à indisciplina mental. O que é isso?

Valdemar Setzer: Ou esse programa é extremamente limitado para o usuário, ou induz a uma indisciplina. No primeiro caso, vamos usar como exemplo um programa de somar onde a criança vê duas borboletas, mais três e tem de chegar ao resultado de cinco borboletas, caso contrário o computador dirá que está errado e, talvez mostrando uma cara feia, ela tem de repetir a operação. Com isso, estaremos enrijecendo o pensamento, que será quadrado, sempre a mesma coisa. Suponhamos agora que o software não seja limitado e rígido e sim aberto, como um editor de texto, por exemplo, aparecerá o problema da indisciplina. É interessante que ou o computador impõe uma rigidez mental extrema, ou induz à indisciplina.

Vida Integral: Por que?

Valdemar Setzer: Porque no caso do exemplo do editor de textos a pessoa não precisa se preocupar com erros ortográficos, ordem das palavras, clareza de pensamentos, ou fluência das palavras, já que com ele pode-se corrigir tudo. O computador permite que a pessoa escreva indisciplinadamente, porque depois se corrige o que quiser. Eu pergunto: se uma máquina permite que a pessoa não se preocupe com a disciplina, ela vai se preocupar? É claro que não.

O ser humano gosta de relaxar. Então, o computador força um pensamento rígido e induz à indisciplina. Quer ver um exemplo? Eu desafio as companhias telefônicas a contradizerem a seguinte afirmação: os problemas que houveram com as ligações interurbanas foram problemas de software. O software foi mal programado, mal desenvolvido e mal testado, com quase total falta de disciplina. Isso porque o programador pode fazer o programa do jeito que quiser, sem documentação, o que torna dificílimo corrigir um programa.

Essa é a razão profunda do "bug" do ano 2.000. Indisciplina dos programadores, porque se cada variável que contém uma data tivesse um nome dado pelo programador como data da fatura, ou data do nascimento, ou data do vencimento etc, num instante se percorreria um programa, achavam-se essas variáveis com o nome data e mudava-se o formato de dois para quatro dígitos.

Vida Integral: E não dá para fazer isso?

Valdemar Setzer: Não, porque os programadores chamaram data tipicamente de X, resultado de indisciplina. O computador induz a essa mentalidade de fazer tudo mais rápido, com mais eficiência. Outro problema é que ele prejudica a criatividade e a fantasia. O que é ser criativo? Como disse o sociólogo italiano Domênico De Masi em palestra aqui em São Paulo, é exercer-se uma fantasia sobre alguma coisa concreta do mundo. E o que há para fantasiar num computador? A imagem já vem pronta, aliás na televisão também, o que resta para fantasiar? Não é como quando se lê um romance e tem que se imaginar tudo, completando-se e interpretando-se o que se lê.

Vida Integral: É mais saudável ouvir uma história e imaginar o cenário dessa história?

Valdemar Setzer: Não só é mais saudável. É absolutamente necessário para as crianças ouvirem histórias. Quando uma criança pequena, até os sete anos, ouve uma história, a gente vê seus olhos fixados no infinito. Vidrados. Porque lá dentro dela ela está construindo a imagem de tudo aquilo que está ouvindo. Imagine como isso desenvolve a construção de imagens interiores e a fantasia. A mesma coisa ocorre com brinquedos. Pegue uma boneca de plástico perfeitinha, com nariz, olhos, sobrancelhas, cabelo... O que há para imaginar? Agora pegue uma boneca de pano, em que os olhos são duas manchinhas, o cabelo um pouco de lã etc. A criança pode imaginar tudo, que esta boneca está rindo, chorando, dormindo...

É um absurdo o que se faz e os pais não percebem que uma das coisas fundamentais que se tem de desenvolver nas crianças pequenas é a fantasia, para depois essa fantasia poder ser orientada para o mundo e virar criatividade. Mas com aparelhos que têm imagens como computador, televisão e videogame não se dá chance à formação interior de imagens. Por isso é tão importante desenvolver atividades artísticas. Pega-se uma folha de papel e pode-se pintar, criar imagens, porque não há nada pronto, pré-definido. Se um pai deseja desenvolver o pensamento de seus filhos, dê-lhes livros e faça-os praticar atividades artísticas. Se quer embotar o pensamento de seus filhos, dê-lhes TV, videogame e computador.

Vida Integral: Mas os pais não poderiam alegar que, com o sistema de vida que temos atualmente, o computador e o videogame tornam-se maneira de a criança ficar dentro de casa? Especialmente no caso de pais que trabalham fora e têm de manter a criança o mais segura possível, o computador não é boa alternativa?

Valdemar Setzer: Acho que ainda estão se voltando muito mais para a televisão, que é a "babá eletrônica". E por que ela põe a criança calma? Porque deixa a criança sem atitude, anti-infantil, estática, sem qualquer ação física, não há nem ação do pensamento, porque não dá tempo para pensar, ou então opta pelo computador.

Quero deixar mensagem muito importante para os pais: deixem as crianças serem infantis. Não lhes dêem acesso à televisão, ao videogame ou ao computador, porque nos três casos não estarão se comportando como deveriam, correndo, jogando bola, brincando de esconde-esconde, socializando-se de maneira muito intuitiva, natural. Não há conversas profundas entre duas crianças. Ela brincam. Mesmo em jovens a sociabilização é muito mais pelo contato, pela presença e pela atividade que se faz do que pelo que se fala.

No computador só vêm falas, textos, imagens. Se não há espaço para aquelas atividades, dê-se às crianças materiais simples e ela inventará brincadeiras continuamente. Uma criança sadia, não precocemente intelectualizada, não pára de criar brincadeiras sozinha.

Vida Integral: Atualmente não é importante a criança saber usar computador?

Valdemar Setzer: Outra mensagem importante é que não há nenhuma necessidade de aprender a usar computador quando criança. Porque em primeiro lugar, esse computador vai ser totalmente diferente daqui a cinco anos. Há cinco anos não havia a www da Internet. Imagine só quando a criança for adulta? O que ela estiver aprendendo hoje será completamente diferente daqui a cinco anos.

O segundo fator é que os computadores estão ficando cada vez mais fáceis de serem usados. Em dez minutos ensino qualquer pessoa madura a usar a parte básica de um editor de textos. Para que ficar horas e horas na escola usando computador para aprender uma coisa que é tão obvia e que daqui a cinco, vinte anos será muito mais simples de ser usada? Você poderia me dizer: "Mas faz parte do mundo." Mas é um mundo cão. Se existe violência no mundo, vamos colocar a criança na violência? Quase todos os pais protegem suas crianças. Eles não trancam a porta de casa? Como é que depois eles abrem a televisão e o videogame e deixam toda aquela violência entrar? Abrem o computador na Internet e deixam entrar tantas coisas impróprias ao contexto da criança? O que aconteceu é que as pessoas perderam totalmente a intuição do que é educação sadia, do que é ser criança, ser jovem. As crianças estão se portando como jovens ou adultos e os jovens como velhos.

Vida Integral: O senhor considera o computador nocivo mesmo que a criança o utilize por pouco tempo?

Valdemar Setzer: Mesmo que seja por pouco tempo.

Vida Integral: A partir de que idade uma pessoa usa o computador sem prejuízo para o raciocínio?

Valdemar Setzer: A partir dos 17 anos. Tive uma experiência pessoal na universidade, em chamar classes de colegial para uma introdução ao computador de um dia completo e sempre insisti no terceiro ano de colegial. Uma vez veio uma classe de primeiro ano, faixa de 15 anos, e nosso programa foi um desastre. Esses jovens só queriam brincar com o computador. Não conseguiam encarar o computador seriamente, aprender o que é um computador e para que serve. Com essa idade o jovem ainda não está preparado para encarar o computador como instrumento, o que é, para que serve, os problemas que causa e os cuidados que se deve tomar ao utilizá-lo.

Existe escola que introduz o computador muito cedo. O que essa criança vai fazer com o computador? Fazer trabalhos escolares é um absurdo. Ela tem de fazer os trabalhos à mão para caprichar, aprender a desenvolver letra bonita, desenvolver a escrita fluente, que acho que é uma das coisas mais importantes que a escola tem que desenvolver. Como fazer isso se a criança ou jovem podem usar um editor de texto, que permite toda indisciplina? Não é preciso nem pensar mais na ortografia correta, pois o corretor ortográfico do computador sugere só alternativas corretas.

Vida Integral: O que o senhor diz das escolas que aceitam como trabalho pesquisas que foram simplesmente puxadas da Internet e que, muitas vezes, nem foram lidas?

Valdemar Setzer: O uso da Internet só faz sentido quando o jovem tem maturidade suficiente para ler informações e julgar o que é bom ou ruim. E, se ele já tem maturidade para isso, não é mais uma criança. Um professor de primeiro grau tem que proibir assuntos impressos vindos da Internet. Criança de sexta ou sétima série tem que aprender a ler enciclopédia, livro, com calma. E na Internet não existe calma.

Uma das conseqüências modernas é que o computador está introduzindo a apreciação do cosmético. É mais importante a forma, os desenhos etc, do que o conteúdo. O cosmético agora é visto como importante para qualquer coisa impressa. Com isso estamos ensinando as crianças a enganarem o mundo. Como essas crianças vão conseguir ler um livro, fazer esforço para ler um livro que exija pensamento e concentração, se estão acostumados a puxar uma coisinha aqui e outra ali na Internet e imprimir?

Outra coisa é saber que tipo de ensino elas vão exigir do professor, se este quiser se concentrar sobre alguma coisa e ficar durante uma hora falando a respeito, se elas estão acostumadas a ficar pulando de galho em galho na televisão ou na Internet? O computador na educação prejudica a própria educação, porque torna a educação uma brincadeira. O lúdico é importante na educação, mas ela não é brincadeira e deve ser encarada com respeito e veneração. A televisão faz tudo virar um show. O computador, quando usado na educação, torna tudo um joguinho eletrônico. Atrai pelo jogo, pelo cosmético, pelos efeitos...

Vida Integral: As escolas cometem engano quando incluem um curso de computação como matéria de rotina?

Valdemar Setzer: No meu entender estão cometendo um crime contra a humanidade, porque estão fazendo crianças e jovens deixarem de ser infantis ou juvenis e adotarem atitudes de adultos. Além de roubar tempo precioso que deveria ser dedicado às outras matérias.

Vida Integral: E quando o argumento é que por ficar jogando, ter que se defender etc, a criança desenvolve raciocínio muito mais rápido?

Valdemar Setzer: O que é raciocínio rápido? Raciocínio rápido é aquele em que a pessoa tem uma intuição, uma idéia muito rapidamente e age segundo aquilo. O ser humano deveria agir, quando adulto, refletidamente. Deveria pensar antes de agir. O animal não consegue fazer isso. Ele sempre age por impulso.
Pode-se até condicioná-lo, mas será sempre programado. É justamente o ser humano que pode agir com liberdade. Não se consegue ser livre se não se pensa, se não há consciência. O bêbado não é livre, a criança não é e não deveria ser livre, pois está se desenvolvendo para chegar a ser adulto livre.

Vida Integral: O senhor afirma em seus artigos que aquelas imagens, às quais a criança ou jovem estão expostos, ficam armazenadas no subconsciente. Diante disso, esse jovem pode ter atitude imprópria em conseqüência daquela imagem que armazenou?

Valdemar Setzer: Sim. Por que grandes empresas gastam centenas e milhões de dólares em propaganda de televisão? Porque funciona. Elas são muito inteligentes e controlam muito bem as suas despesas. Se investem em propaganda, é porque sabem que terão lucro. As pessoas absorvem tudo aquilo e optam por seus produtos na hora das compras, por exemplo.

Muitas vezes o jovem vai agir de acordo com os impulsos seguindo as imagens que armazenou e não pela sua moral e seu pensamento. E é isso que o computador e a televisão fazem. O computador é uma máquina muito rápida que induz essa sensação de fazer as coisas o mais rápido possível, de não pensar. Em outras palavras, está reduzindo o ser humano a um animal para reagir instintivamente. Pior ainda, no caso do videogame, o está reduzindo a uma máquina. De um lado o videogame reduz o ser humano a um animal, de reagir sem pensar, e do outro lado automatiza a reação, como se fosse máquina, fazendo pequenos impulsos com as mãos, com os dedos, como reação a uma mudança em uma imagem.

Vida Integral: Existe algum estudo sobre o efeito de ondas eletromagnéticas, irradiação etc, sobre crianças ou adultos que ficam horas diante da tela?

Valdemar Setzer: Houve estudos isolados, por exemplo de um caso em que o tubo foi produzido com defeito e estimava-se que muitas pessoas tivessem tido lesões no sistema óptico devido aos Raios X emitidos. Todos os vídeos irradiam Raio X. É impossível eliminar isso, porque o princípio é o mesmo do aparelho que produz Raio X. É um feixe eletrônico arrancado do filamento com tensão muito alta e ao bater em um anteporo metálico (no caso da tela, é a própria tela metalizada), produz o Raio X. É por isso que na minha casa eu uso micro tipo notebook, que tem tela de cristal líquido, não tem irradiação de Raio X.

Vida Integral: Quer dizer que até fisicamente o computador prejudica?

Valdemar Setzer: Sim, mas no caso do Raio X eu não posso provar. Isso é efeito cumulativo. A irradiação é pequena e o efeito teria de ser medido durante 20 anos. Ninguém faz isso. Além disso, como podemos separar esse efeito cancerígeno de outros efeitos como poluição do ar, da comida etc. Gostaria de chamar a atenção dos pais, para que olhem a atitude dos filhos com aquele mouse e teclado e vejam a tensão dos braços, do corpo, da coluna. Isso é normal para uma criança? A tensão em conseguir fazer algo no computador e a tensão maior quando não se consegue, mas se tem certeza de que existe um comando do computador capaz de fazer o que se pretende. Aí o usuário entra num estado que eu chamo de "estado do programador’’ ou ‘‘do usuário obsessivo". Ele fica horas e horas ali tentando, tentando e não levanta enquanto não resolver. O computador agarra qualquer pessoa, porque apresenta desafio puramente intelectual.

Vida Integral: Pode-se concluir que mesmo quando se trata de jogo não violento, como basquete, por exemplo, ele vai causar a mesma situação de estresse?

Valdemar Setzer: Se o jogo não for violento, não haverá gravação de imagens violentas, o que é algo muito ruim, pois todas as nossas vivências ficam gravadas para o resto da vida. Sempre digo aos pais: devem ter muito cuidado, porque as crianças só deveriam ver coisas boas e belas. Não deveriam experimentar coisas feias. Se os pais querem brigar entre si, briguem, mas façam isso trancados no quarto de dormir, nunca na frente das crianças. A criança está procurando um mundo bom e belo. Se colocamos à sua frente coisas feias, horríveis, ela terá decepção muito grande com o mundo. Há tempo para a criança ver coisas ruins. Se ela é educada num ambiente bom e harmonioso, quando for
adulta terá muito mais capacidade para enfrentar a maldade e a feiura do mundo. A criança poderá distinguir o que é bom do que é ruim. Se ela cresce no meio do feio, quando for grande não perceberá o que é ruim.

Vida Integral: E quanto aos adultos, programadores e usuários, o que devem fazer para amenizar o problema quando são obrigados a usar computador?

Valdemar Setzer: Acho que todos os adultos deveriam saber usar o computador. Não sou contra computador como instrumento para coisas úteis. Até a Internet pode ser útil. Se a pessoa é obrigada a usar computador profissionalmente, tem que compensar com um pensamento que não é rígido, não é matemático ou determinista como o computador força. No fundo, é preciso fazer uma higiene mental, pensando em coisas belas e boas e, para isso, as habilidades artísticas são o antídoto que recomendo para o pensamento computacional. Não algo passivo como ouvir música, mas fazer. Qualquer um pode aprender a tocar violão, piano, flauta doce ou fazer outra coisa ligada às artes.

Vida Integral: Por que o senhor acha que a criança só deve aprender a ler e escrever a partir dos sete anos?

Valdemar Setzer: Para isso é preciso entender o modelo de desenvolvimento do jovem, da criança, que é usado na Pedagogia Waldorf, por exemplo. Nota-se que justamente aos seis e meio ou sete anos, coincidindo com a troca dos dentes, é que a criança faz um desenvolvimento
interior, como se ela liberasse forças do crescimento e formação do organismo que a partir de então podem ser canalizadas para o aprendizado de coisas formais e abstratas como as letras. As letras são hoje totalmente mortas. Não é o caso dos ideogramas chineses ou japoneses que representam uma casa com o desenho de uma casinha. Os hieróglifos representavam imagens de coisas e hoje as letras são mortas. Não representam nada. E a criança até os sete anos está muito impregnada de vida para se forçar essa atitude de aprender as letras, que são coisas mortas. E, será que uma criança que aprendeu a ler com cinco anos, aos 20 terá lido mais livros? Lógico que não. Ao contrário, uma criança que vai aprender a ler muito cedo, vai se esgotar mais cedo, porque não se lhe permitiu amadurecer como criança. Para que uma criança precisa ficar sentada lendo um livro? Ela deveria ficar sentada para ouvir uma história, porque tem algo muito humano provindo da pessoa que conta. Algo muito mais vivo, sem nada de rígido. Há hora para se chegar para tudo na educação e não há necessidade de se apressar. Quanto mais deixar a criança ser criança, mais ela poderá criar no futuro, mais será jovem e adulto equilibrados.

Vida Integral: Na sua opinião, brincadeiras com pipas, skates, carrinhos de rolimã, bola, boneca, bicicleta etc, são mais saudáveis do que ficar diante de um computador?

Valdemar Setzer: Tenho minhas restrições ao skate. É muito máquina. É perigoso. O carrinho de rolimã também, mas é feito pela criança, não é perfeito, a roda vai sair, mas as brincadeiras são mais saudáveis. E para os pais, digo que não há necessidade de ficar dando o que fazer para a criança, se ela for saudável. A criança sempre está inventando coisas para fazer. Nós não tínhamos televisão em casa e as outras crianças da redondeza adoravam vir à nossa casa, porque lá as crianças estavam sempre criando. Punham duas cadeiras e brincavam de barco, ou punham a cadeira de cabeça para baixo e brincavam de castelo. Criei quatro filhos assim e só tive televisão quando minha filha mais nova se tornou adulta. Preservei a infância dessas crianças. Jamais contrataria uma empresa para fazer jogos numa festa de criança. Eu fazia os jogos, sem alto falante, sem música, com bate-panelas e muitas outras atividades sadias. Se a criança deixa de ser criança e o jovem deixa de ser juvenil, eles vão ser adultos deslocados, sem capacidade de criação ou concentração.

Vida Integral: Que tipo de distúrbio a falta de brincadeiras infantis e ao mesmo tempo o envolvimento com a máquina podem causar a uma criança?

Valdemar Setzer: Estamos forçando o pensamento rígido. Se a pessoa se desenvolveu e tem pensamento bem flexível, exercer pensamento rígido de vez em quando não prejudicará muito (assim mesmo tem que compensar). Mas, e uma criança que está desenvolvendo esse pensamento e já é forçada a pensamento rígido?! Acho que esse pensamento fica rígido mesmo. Por isso essa pessoa pode adotar idéias fixas. Como foi tudo teoria e abstração – afinal o computador é máquina virtual e não tem nada a ver com a realidade -, como foi tudo fora da realidade, esse jovem pode se atraído por idéias que não têm nada a ver com o real. Por exemplo, racismo, nazismo etc. Leva a atitudes fixas, rígidas, que não são adequadas ao ser humano. Justamente o nazismo e o stalinismo basearam-se em teorias, idéias fixas sem base na realidade e foram tragicamente desumanos. No caso do computador a situação poderá ainda ficar pior, pois ele induz à mentalidade de que o ser humano é máquina.

Vida Integral: Com menos sentimento...

Valdemar Setzer: Perde-se o bom senso. Como podemos desenvolver compaixão, isto é, capacidade de sofrer com uma pessoa que está sofrendo, ou capacidade de sentir alegria com quem está contente, se tudo foi canalizado para pensamentos abstratos ou sentimentos totalmente artificiais, que é o caso do computador e da televisão, respectivamente? Como essa pessoa vai conseguir sentir algo da realidade, do sentimento de uma outra pessoa, ter sensibilidade social? Aliás esse é um dos problemas muito grandes causados pelo computador: a associabilidade. A pessoa não agüenta mais o convívio social, porque as pessoas são imprevisíveis e o computador é sempre previsível. Além disso, o computador fica isolado e reage de acordo com os comandos que a pessoa dá. Os programadores e analistas de sistema têm, em geral, grandes problemas de sociabilidade. Eles se juntam e falam sobre bits e bytes. Não conseguem falar sobre outras coisas.

Vida Integral: Na sua opinião o computador pode prejudicar o desenvolvimento de aptidões naturais na criança, como a facilidade da pintura, desenho etc?

Valdemar Setzer: Claro. Toda criança nasce artista. A educação na escola e no lar é que trucida o artístico que existe em cada criança. No primeiro grau o ensino inteiro deveria ser baseado em artes, até na matemática. É muito fácil fazer isso. Eu consigo ensinar Teorema de Pitágoras de maneira estética e artística, contando a história de uma fazenda que tinha forma de triângulo, retângulo e os quadrados eram as áreas de plantio etc. Posso fazer isso usando uma história que se relacione com a vida, sem abstração.

Estamos acostumados a tratar crianças com abstrações há dezenas de anos. Quando se dá nota para criança, já estamos falando em abstração. O que significa uma nota 5? Que a criança sabe metade de todos os pontos ou cada ponto ela sabe pela metade? Isso não tem sentido. A nota não revela a maturidade, interesse, o esforço que a criança faz. Isso é mais importante do que saber aquilo que é pedido na prova.

Vida Integral: E quanto aos pais que precisam usar computador em casa?

Valdemar Setzer: Se os pais tiverem que usar computador em casa, não deveriam deixar as crianças usarem. É para ser assim mesmo, autoritário. As crianças estão esperando que os pais exerçam autoridade. O pai que não exerce autoridade, com amor, deixa a criança insegura, porque ela está esperando ser guiada, para não ficar deslocada. As crianças pequenas imitam tudo e os pais só deveriam usar o computador quando elas estiverem dormindo.

Uma outra receita que tenho para dar aos pais é que façam um "computador" com caixa de papelão. Desenhe lá a tela, os botões, façam uma ranhura para entrar o papel para a "impressora". Deixem a criança desenhar com giz de cera e aí vai sair uma cartinha, com desenho etc. Ponham um fio de lã ligando uma "máquina" na outra e a criança vai estar imaginando que usa computador. Vai ser mais interessante para a criança do que usar um computador mesmo, porque ela vai estar exercendo sua imaginação e fantasia.

Vida Integral: O senhor defende a Pedagogia Waldorf. Por que?

Valdemar Setzer: Porque é ensino totalmente diferente no sentido de ser infinitamente mais humano do que em outros métodos pedagógicos (ou na falta deles). Por exemplo, não existe repetição de ano. Como penalizar uma criança de primeira, segunda ou terceira série? Ela não é adulta para saber que precisa ter o auto-controle de estudar. Ela só deve estudar se o professor incentiva e cria a curiosidade dela estudar e não porque precisa passar de ano. Senão, ela já está sendo tratada como adulto, tem que ser auto-responsável e criança não pode ser auto-responsável.

Na Pedagogia Waldorf não se dá notas, seria como pôr um carimbo. Eu chamo as notas de "vara de marmelo moral". Bate-se moralmente. Em particular, não há nenhuma escola Waldorf digna desse nome no mundo que dê computação no primeiro grau.

Vida Integral: Como o senhor vê a necessidade de se desenvolver a sensibilidade social?

Valdemar Setzer: Existe essa necessidade porque para a pessoa ser um ser humano integral ela tem que ter três capacidades: A capacidade científica, a artística e a social. Se não tiver os três, não é um ser humano completo. O que se está fazendo na escola é desenvolver apenas a capacidade científica. Mas esta tem que ser desenvolvida aos poucos e principalmente durante o colegial. Antes, deve ser a capacidade de observação, de sentir as coisas. A abstração vem no colegial. O resultado é um desastre.

O mundo está melhorando socialmente? É preciso fazer alguma coisa para ele mudar socialmente. O que deve ser mudado é a educação. A introdução das máquinas na educação só vai piorar a situação. Nós temos que tornar a educação mais humana, mais realista e voltada para o mundo, levando a um adulto com as três capacidades que citei. Mas há tempo adequado para o exercício de cada uma das três. O científico intelectual deveria ser deixado para o colegial, sem abandonar o lado artístico e social. No primeiro grau, somente devem ser cultivados o lado social e o artístico. É no jardim da infância somente o lado social; o artístico apenas através de brincadeiras. Infelizmente, estamos na era do incentivo ao desenvolvimento intelectual precoce, formando cabeças ambulantes sem coração e sem vontade própria por baixo.

Que mundo miserável, esse que desde a década de 1.950 vêm tentando destruir psicológica e psiquicamente as crianças e os jovens! É uma destruição que de certa maneira é pior do que a do físico, pois estamos criando seres humanos animalizados e robotizados. Pode haver mais miséria?


Esta entrevista foi publicada em quatro edições consecutivas do jornal Vida Integral, de agosto a  novembro de 1999.

Para outros artigos e entrevistas do Prof. Setzer, veja-se seu "site" www.ime.usp.br/~vwsetzer