PANE NO DISCO RÍGIDO

Entrevista publicada pela revista Educação, Ano 26, No. 222, outubro de 1999, pp. 3-8,
realizada por José Tadeu Arantes

[Pequenas correções e adições colocadas por VWSetzer estão em colchetes.]

Valdemar Setzer é o inimigo número um do uso de computadores no ensino fundamental. E da utilização de computadores por crianças, de maneira geral. Mas conhece como poucos o adversário que pretende combater. Engenheiro [Eletrônico], professor titular de Ciência da Computação do Instituto de Matemática e Estatística da USP, consultor, na área de informática, da Promom e do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), de São Paulo, ele não é um simples usuário de computadores, mas alguém que sabe em detalhes o que se passa do outro lado da tela do monitor. Casado, pai de quatro filhos e avô coruja de dois netinhos, Setzer trocou uma promissora carreira de músico concertista pela engenharia e a matemática. É autor ou co-autor de 10 livros e de mais de 50 artigos especializados. Nos textos que publica regularmente em seu site, na Internet (www.ime.usp.br/~vwsetzer), em polêmicas participações em programas de televisão ou em palestras que adora proferir, ele trava uma incansável cruzada contra o atropelamento da infância pelo pensamento rígido que, em sua opinião, está inevitavelmente associado à máquina. Seu lema é: "Deixe as crianças serem infantis. Não lhes dê acesso às TVs, [videogames] e computadores".

P – Qual é a sua posição sobre o uso de computadores na infância – mais especificamente no processo educacional?

R – Dá para resumir em uma só palavra : contra. Isso vale na escola, no lar, em qualquer uso que se faça de computadores na infância. Também sou contra o uso de computadores durante a juventude, pelo menos até a adolescência, depois da puberdade. Só não tenho restrições, desde que os jovens sejam alertados sobre os problemas que os computadores podem causar, a partir dos 17 anos.

P – Quer dizer que, na sua opinião, até os 17 anos o indivíduo não deveria ter contato com computadores?

R – Mais do que não deveria. Eu acho que os computadores são prejudiciais.

P – Prejudiciais por que?

R – Porque o computador força [um] pensamento lógico-simbólico e algorítmico. Esse é um pensamento muito particular, que a gente até desejaria que todos os adultos tivessem a capacidade de exercer – e eu acho que nem todos tem -, mas que é absolutamente inapropriado para crianças e jovens, antes dos 15, 16 anos. Porque a gente espera que uma criança pense de uma maneira muito mais qualitativa do que formal e quantitativa, como o computador exige.

P – Explique melhor a diferença entre esses dois tipos de pensamento.

R – Quando a criança é bem pequena, espera-se que ela esteja completamente integrada com o ambiente e com sua fantasia. Assim, por exemplo, quando ouve uma história, ela cria imagens interiores daquilo que está sendo [contado]. Esse é o tipo de pensamento que eu acho adequado para uma criança. É o pensamento da criança que brinca com uma boneca de pano e imagina as mais variadas situações: que a boneca está chorando, está rindo etc. Em comparação com essa simples boneca de pano, a boneca de plástico já é muito elaborada, muito acabada, tem tudo muito definido e não deixa mais praticamente nada para imaginar. Mais rígido ainda é o funcionamento do computador.

P – Mas o computador não poderia ser utilizado de maneira lúdica?

R – Não há possibilidade de se usar um computador sem dar comandos para ele. Em qualquer software, você tem que emitir comandos. Se você aciona um ícone, já está emitindo um comando, e esse comando ativa funções matemáticas dentro do computador. Podemos não saber disso, mas, cada vez que acionamos um ícone, estamos [empregando] uma linguagem absolutamente formal, cuja gramática não é a mesma da linguagem natural. Não é possível usar o computador, qualquer computador, sem usar concomitantemente essa linguagem formal[, que não é ambígua, ao contrário de qualquer linguagem natural].

P – Quem utiliza essa linguagem matemática não é o criador do software?

R – O usuário do computador também a utiliza, sem saber. Ele pode não se dar conta, mas aprende a usar uma sequência matematicamente estrita, matematicamente definida. Por exemplo: se você estiver escrevendo e acionar o ícone de alinhar um parágrafo, a máquina sempre vai fazer aquele alinhamento, a não ser que apresente algum defeito, o que é coisa rara. Ela sempre faz o mesmo alinhamento, porque, interiormente, isso corresponde a uma função matemática. Uma função que eu posso até descrever: junte as palavras, [colocando um espaço mínimo em branco entre cada uma,] conte quantas são, pegue o resto do espaço em branco até o fim de cada linha, divida pelo número de palavras menos um, distribua esse espaço entre as palavras [movendo as letras uma a uma para uma nova linha]. Você acha que foi a máquina que fez tudo isso. Que você mesmo apenas acionou um ícone, uma coisa visual. Mas o tipo de pensamento que você tem que usar para ficar dando ordens [que no fundo são matemáticas] ao computador é um pensamento estritamente matemático. Você tem certeza absoluta de que, acionando aquele ícone, vai acontecer exatamente aquilo.

P – E é essa certeza que atropela o pensamento qualitativo, intuitivo?

R – Exatamente. O pensamento exigido para se operar o computador é um pensamento do tipo "sim ou não". Nunca "mais ou menos", como aquele usado por uma criança ou um jovem que anda de bicicleta. Quem anda de bicicleta não pensa com quantos metros ou centímetros de raio deve fazer a próxima curva. A pessoa sabe que cada curva é diferente da outra. É tudo na base do "mais ou menos". Ela vai sendo guiada pela intuição. Com o computador, não há nada de intuitivo. Se você usar o computador intuitivamente, sem pensar, isso vai dar um monte de besteiras. É preciso estar absolutamente consciente do que se faz. [Essa consciência não é sadia para crianças, pois exigiria delas uma atitude de adulto.]

P – Mas, quando se redige um texto no computador, não existe uma margem de espontaneidade?

R – Claro. Ao digitar um texto, você não precisa se preocupar muito com o teclado. Você está acostumado a digitar. Então, vai pensando naquilo que quer expressar, enquanto os seus dedos apertam as teclas certas. Mas já não é assim quando se precisa acionar algum comando. Por exemplo, você não pode gravar um arquivo primeiro e depois alinhar. Você tem que alinhar primeiro e depois gravar, senão o computador não vai gravar alinhado. Percebeu a seqüência? É uma seqüência estritamente lógica, que tem que ser seguida, para não dar tudo errado.

P – E, nesse caso, o maior prejuízo causado pelo computador seria embotar o pensamento intuitivo?

R – Essa seria outra consequência prejudicial. Eu acho que a pior consequência é forçar o pensamento lógico-simbólico antes da época. Porque, na minha concepção de evolução do ser humano, de desenvolvimento pessoal, apenas depois da puberdade, a partir dos 14, 15 anos, é que a gente deveria exigir da pessoa um pensamento puramente abstrato. É o caso de uma demonstração de teoremas, por exemplo. É um absurdo pedir provas de teoremas de matemática durante o ensino fundamental. Porque, simplesmente, não faz sentido para uma criança dessa idade ter que provar alguma coisa. Eu fui obrigado a provar teoremas de geometria, sobre semelhanças de triângulos, quando cursei o que é hoje a quinta série. Então, eu olhava para o livro, para dois triângulos semelhantes, com todos os ângulos iguais, e pensava: "Mas eu estou vendo que eles são semelhantes! Por que eu tenho que provar uma coisa dessas?". Para uma criança, não faz sentido provar um teorema, porque isso não faz parte da vida imediata. O jovem tem que ter já um afastamento muito grande do mundo para perceber que demonstrar teoremas possui alguma importância. É uma importância puramente formal, não uma importância prática. É claro que é preciso desenvolver esse tipo de raciocínio, mas não antes da hora. Não há necessidade de acelerar a educação. Há tempo para tudo.

P – E o tempo de demonstrar teoremas ocorreria por volta dos 14, 15 anos?

R – Exato. No começo do ensino médio, daquilo que se chamava antigamente de colegial. Isso não quer dizer que não se possa ensinar antes uma coisa como o teorema de Pitágoras, por exemplo. Pode-se, é claro. Mas devíamos apresentar uma prova geométrica dele – e não algébrica. Existem provas geométricas muito bonitas do teorema de Pitágoras. A geometria é mais visual, mais intuitiva, mais adequada para a mente da criança. Só aos poucos é que a álgebra deveria ser introduzida. Isso que eu estou falando é exatamente o oposto daquela que se tornou a tendência dominante na matemática. Depois do trabalho desenvolvido pelo grupo Bourbaki, na década de 30, a matemática transformou-se numa simples manipulação algébrica. A tendência é acabar completamente com a geometria.

P – E isso se refletiu no ensino?

R – Sim. Leia o livro do Morris Klein, [O Fracasso da Matemática Moderna]. É um livro absolutamente fantástico, escrito numa época em que [todos consideravam] a ["matemática moderna"] uma maravilha. Eu sempre fui contra. Porque eu achava que a matemática moderna exagerava no formalismo, na axiomática, coisa que não faz o menor sentido do ponto de vista prático. Mas foi assim que a matemática foi pesquisada neste século e isso se refletiu no ensino. O que um pesquisador faz na universidade, no seu doutorado, como pesquisador propriamente dito, não deveria ter nada a ver com sua maneira de ensinar [nos ensinos fundamental e médio]. É um absurdo que se faça da educação um reflexo daquilo que se gostaria que a pessoa fosse como profissional. A educação deve ser um processo muito lento de metamorfose. Essa é uma das palavras muito importantes que a educação atual ignora. Não se deve forçar o intelectualismo, o pensamento abstrato muito cedo. O ensino tem que ser todo vivo, todo artístico, no primeiro grau. E puramente recreativo e social na pré-escola . Desta, nem o artístico deve fazer parte. E o que estão fazendo atualmente? Estão ensinando a ler e escrever na pré escola!

P – Quais são as conseqüências desse tipo de distorção?

R – Se a gente forçar o pensamento intelectual, como o [computador] força, estaremos fazendo a criança pensar como adulto. E eu acho que isso vai acabar produzindo pensamentos rígidos. Eu não tenho pesquisas sobre o resultado do uso precoce do computador. Mas não é difícil imaginar as conseqüências. Eu também não tinha pesquisas quando comecei a falar contra a televisão, em 1972. E agora saiu um artigo no New York Times, uma matéria transcrita da revista [Pediatrics], da Associação de Pediatria dos Estados Unidos, garantindo que a televisão realmente prejudica as crianças. Eu parto de uma concepção do que é o ser humano, de como se dá o seu desenvolvimento, e também do que é o aparelho, de que atitudes ele força ou induz nos usuários. Juntando tudo isso, não é preciso nenhuma pesquisa. Da mesma forma que eu não preciso de uma pesquisa para saber o que acontece se um trator passar em cima de uma plantação de morangos.

P – Muitos pais acham que seus filhos precisam se familiarizar cedo com os computadores, para não ficarem defasados em relação às outras crianças de sua geração.

R -- Isso é bobagem. Não há a menor necessidade de que crianças e jovens usem computadores. Para que elas precisam do computador? Para adquirir informações via internet? Educação não é aquisição de informação. Educação é desenvolvimento de habilidades corporais, sociais, artísticas, e, aos poucos, também intelectuais[, associadas à aquisição muito gradual de conhecimentos. Eu considero conhecimento como sendo mais do que informação. Em minha conceituação (veja artigo em meu "site") conhecimento exige vivência, que é o que deveria a base do ensino fundamental, e não meras abstrações.] Para isso não é necessário o computador. E, do ponto de vista de sua futura profissão, essa familiarização precoce também não lhes acrescentará nada. Pelo simples fato de que, quando eles forem adultos, o computador não vai ser a mesma coisa que é hoje. Há 5 anos atrás, não havia a web na internet. Não sei o que vai haver daqui 5 anos. E esses garotos não vão estar no mercado de trabalho antes desse tempo. Tenho certeza absoluta de que, daqui a 5, 10 anos, será muito mais fácil usar um computador. Assim como hoje é muito mais fácil do que há 5, 10 anos atrás. Não sei como serão os computadores do futuro, mas posso conjecturar que pelo menos os sistemas tutorais, os helps serão muito mais decentes do que são hoje. Deste ponto de vista, é falso o pensamento do tipo "meu filho precisa aprender logo a usar o computador porque assim ele terá mais chances no mercado de trabalho". Acho que é exatamente o contrário: ele terá menos chances, pois será menos criativo. Resumindo: do ponto de vista de preparar a criança para a futura profissão, tem muito tempo. Se isso for feito no colegial, será mais do que suficiente. Principalmente no fim do colegial. Do ponto de vista de aquisição de conhecimentos, de informação, eu também sou contra. Pois essa informação vai ser seca, descontextualizada.

P – Você tocou num ponto importante. Fale mais dessa descontextualização do conhecimento.

R – O ensino sempre foi contextual. O pai folheia o livro que vai comprar para sua criança, para verificar se ele é adequado. [A professora leva em conta o que ensinou ontem, na semana e mês passados, e a que alunos ela está se dirigindo no momento.] Mas, na internet, a criança tem acesso a milhares de coisas que não têm nada a ver com ela[.] Aliás, a televisão também é descontextualizada. O que é transmitido não é especial para aquela criança, com aquela idade, com aquela educação, com aquele ambiente. É transmitido para cem milhões de pessoas de uma vez. Mesmo fora da internet, o uso do computador leva a uma situação descontextualizada. Porque não se faz um programa especial para cada criança ou grupo de crianças. O sujeito que desenvolve um software educacional tem que pensar em uma criança abstrata. A criança que ele imagina certamente não será a mesma que eu imagino. E o computador não permite aquela improvisação que o professor pode fazer em aula, adaptando o conteúdo da matéria aos seus alunos concretos. Quantas vezes o aluno não dá uma resposta completamente errada, mas o professor percebe que o que ele pretendia dizer era certo? Num software educacional, não há essa flexibilidade. A resposta é "certa" ou "errada". Não há matizes. O computador é uma máquina rígida e burra, que não tem a inteligência, a sensibilidade, a intuição que um professor deveria ter.