Crianças na rede

por Claudia Altschüller
(publicado em Bolsa de Mulher , edição de 4/3/02, seção "família")

Comentários adicionais de V.W.Setzer, em forma de notas de rodapé indicadas com (...)

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Imagem: Fabio Tadeu


Foi-se o tempo em que as crianças só pensavam em televisão (1), boneca e carrinho. Hoje elas querem é navegar pela web, papear nos chats ou nos programas de comunicação instantânea, fazer downloads, brincar com joguinhos, e até usar e abusar da internet  essa nova fonte de informações  para se salvar nas pesquisas escolares. Herói ou vilão, o computador está indiscutivelmente cada vez mais presente nos lares e na vida de todos, inclusive dos pequenos.

O professor-titular do Departamento de Ciência da Computação da USP, Valdemar W. Setzer, é do time dos que criticam a utilização precoce do computador. De acordo com ele, essa máquina força certo tipo de atividade intelectual que não é própria para as crianças (2). "Elas perdem a criatividade, adquirem rigidez mental, diminuem a sociabilidade e terão mais dificuldade para se adaptar e ser útil profissionalmente", afirma. Pode colocar o software que quiser, pode ser joguinho eletrônico ou educacional, o computador, segundo o professor, sempre força um tipo de raciocínio matemático chamado lógico-simbólico (3), que não é adequado para a criança. "Ela não deveria pensar quadrado, desse jeito matemático. Se uma criança consegue pensar quadrado assim, já está pensando como adulto, já não é mais criança", alerta. "No caso do computador, nós estamos queimando etapas de anos e anos que a criança teria que passar. O desenvolvimento tem que ser muito paulatino, muito devagar, para que vá acompanhando o desenvolvimento total físico e psicológico. Existe idade para tudo", conclui Valdemar, que recomenda o uso a partir dos 16 ou 17 anos.

A professora da PUC-RJ Marisa Lucena pensa de forma contrária. Na sua opinião, quanto mais cedo a criança for exposta à tecnologia, menos temores e preconceitos desenvolverá ao desmitificar e entender as capacidades da máquina (4), melhores situações surgirão para a formação e construção do seu conhecimento (5) e para a formação de suas capacidades lógicas e cognitivas (6). Entretanto, para Marisa, é necessário um certo cuidado para não haver exageros (7). "Pretender que uma criança que ainda não esteja com suas habilidades motoras devidamente coordenadas use um mouse é perda de tempo", explica (8). Algumas crianças estão familiarizadas desde cedo como, por exemplo, João Pedro Coelho. Com três anos, o menino vive pedindo ao tio para entrar em sites de bichos, principalmente os que tenham fotos de tartarugas. "É um momento muito divertido. Eu fico lendo o que está escrito e ele curte ver os bichos em movimento", conta Fernando Coelho, o tio-coruja (9).

O professor da USP também critica a internet. Segundo ele, navegar pela rede é mais prejudicial que o computador em si, pois coloca o mundo inteiro à disposição da criança com tudo que é bom e também ruim. "O pai pode comprar um software (10) e achar aquilo adequado para seu filho. A internet é diferente, ela é aberta, não há ninguém ali para controlar", explica. A dentista Carla Ramos quase desmaiou quando viu o filho de 11 anos entrando num site que enaltecia Bin Laden e outros terroristas. Recuperada do susto, chamou um técnico e instalou um filtro especial no computador (11). O engenheiro João Paulo Freire também passou por um episódio desagradável. "Além da conta de telefone ter triplicado, descobri que meus filhos entravam em chats de sexo e recebiam emails com baixarias. Não tive opção, coloquei senha até para ligar o computador", lembra (12). A artista plástica Claudia de Castro optou pela praticidade e colocou o micro na sala de visita para poder vigiar os sites que a filha de nove anos visita (13).

Para Marisa Lucena, a ética deve fazer parte dos ensinamentos e do uso diário. O que não se pode fazer na internet é o que não se deve fazer no dia-a-dia (14). A postura, o comportamento e os valores não mudam só porque a pessoa está num espaço virtual (15). "É bem verdade que os perigos e tentações estão dentro de casa, mais à mão e mais freqüentes (16). Mas os pais que têm certeza que estão dando uma boa criação e oportunidades de ampliação de horizontes com acompanhamento próximo e assíduo aos seus filhos não devem se preocupar (17). Colherão os frutos que plantaram" (18), opina.

A professora da PUC e coordenadora da ONG Kidlink acha também que a criança pode perfeitamente ter um computador no seu quarto, cabendo aos pais estabelecer os limites sobre quando, como e porquê usá-lo (19). "Isso faz parte da lista das coisas a ter e a administrar: o uso de celular, de telefone, televisão e som no quarto (20), do tempo de banho, das companhias", esclarece. A violinista Regina Cruz está tranqüila em relação ao filho de 14 anos. "Não adianta ficar proibindo, o Zeca pode fazer na casa dos amigos aquilo que não deixo em casa (21). Eu confio na educação que dou pra ele, sei que ele não vai ficar dando o nome e telefone dele para estranhos. Ele sabe se proteger. Por isso deixo ele acessar a internet no micro de seu quarto. Só proíbo o uso depois da dez da noite, pois ele acorda muito cedo pra ir pro colégio", conta (22).

Falando em colégio, vários começaram a reclamar das "pesquisas" que seus alunos fazem com a ajuda do computador. Muitas vezes, a criança apenas entra num site de busca, encontra algumas páginas sobre a matéria, cola o texto num documento word e imprime sem se dar ao trabalho de conferir a seriedade da página que foi pesquisada. Algumas escolas até passaram a exigir que os alunos façam o trabalho na biblioteca fora do horário de aula (23). Para Marisa Lucena, geralmente, quando há preguiça, é a pesquisa que não é interessante e a criança, como qualquer ser humano, precisa estar motivada e reconhecer algum sentido no que deve ou tem que fazer (24). "Quando não havia internet, elas xerocavam materiais dos livros e revistas e também "copiavam e colavam", só que dava mais trabalho", lembra (25). A pesquisadora vai mais longe e lembra que a internet é um excelente espaço para especializações (26). "Além de pesquisarem o necessário, há a possibilidade de irem além, conforme o nível de interesse", garante (27).

Sem dúvida o tema é bem polêmico. De um lado, a idéia de que a criança precisa encontrar tempo para brincar, estar em contato com a natureza e amadurecer lentamente. Do outro, a necessidade de correr para acompanhar o ritmo cada vez mais acelerado do mundo e suas conexões (28). O que fazer? Proteger os baixinhos das desvantagens do computador e também da internet ou orientá-los a usar essa poderosa máquina de forma adequada (29)? Eis a questão!

Agradecimentos:

Marisa Lucena
Doutora em Engenharia de Sistemas e especialista em Informática na Educação. Coordenadora do Kidlink no Brasil
http://www.kidlink.org/portuguese/brasil/ksociety/cv-marisa.html

Valdemar W.Setzer
Professor Titular do Dept. de Ciência da Computação  USP
Autor do livro "Meios Eletrônicos e a Educação: Uma Visão Alternativa, Editora Escrituras.
vwsetzer@ime.usp.br
www.ime.usp.br/~vwsetzer

Notas adicionais de V.W.Setzer

(1) Criança que vê TV não é mais 100% criança. Veja-se O Desaparecimento da Infância, de Neil Postman.
(2) Uma de minhas maiores preocupações é presenvar a infância das crianças; sem elas, tem-se jovens e adultos com inúmeros problemas psicológicos e psíquicos. A fantasia é uma das características mais marcantes das crianças. O ideal é que a capacidade de fantasiar se preservasse até a idade adulta, para se ter um adulto realmente inteligente do ponto de vista social e profissional. Os meios eletrônicos matam a fantasia da criança, ajudando nesse processo o que já se fazia de errado no lar e na escola.
(3) O raciocínio lógico-simbólico é um raciocínio matemático particular; na verdade, o computador força um raciocínio lógico-simbólico mais particular ainda: o algorítmico.
(4) Garanto que a Profa. Marisa, e praticamente todos que usam esse argumento, aprenderam a usar um computador quando adultos, e não quando crianças, sendo exemplos vivos de que não é necessário usar um computador muito cedo para poder dominar essa técnica muito bem mais tarde, na vida adulta e profissional. Esse argumento da necessidade de as crianças começarem muito cedo é uma das maiores falácias que se pode formular sobre o computador. Eu esperaria que ele fosse usado por vendedores, e não por acadêmicos, ou mesmo pessoas com um mínimo de cultura. Quanto ao medo, o computador tornou-se tão corriqueiro, que talvez apenas algumas pessoas muito idosas ainda têm "medo" dele, e provavelmente por que nunca o experimentaram. Por outro lado, quando uma criança usa um computador só há mistificação, pois ela não tem a mínima capacide de compreender seu funcionamento. Por exemplo, ela pode achar que ele é muito superior ao seres humanos, que erram, esquecem, executam as funções computacionais muito mais lentamente, etc. Isso talvez leve a uma catastrófica admiração pelas máquinas, com chances de perdurar até a idade adulta. Pior, parece-me que isso leva a uma terrível mentalidade de que o ser humano seja uma máquina, e muito imperfeita. O que essas crianças farão quando adultos deixará os horrores desumanos do nazismo, do comunismo e do maoismo como meras sombras.
(5) Crianças devem adquirir conhecimento da realidade, e não daquilo que pode ser transmitido por meio de informações, ou melhor, dados.
(6) O computador só pode promover o desenvolvimento de capacidades lógicas formais, o que viola totalmente as características infantis. Por exemplo, o computador força o uso de uma linguagem estritamente formal; mas nenhuma criança deveria falar com exatidão, pois nesse caso não comporta-se mais como criança. Por outro lado, as capacidades cognitivas proporcionadas pelo computador são também somente formais, impróprias para crianças, que devem ser infantis.
(7) Interessante. A Profa. Marisa reconhece que o computador pode trazer problemas. O problema é que esses problemas não são físicos, como é o caso de uma criança fumar, tomar drogas ou álcool, ou mesmo guiar um automóvel. Não sendo físicos, não são reconhecidos pelas pessoas. Nesses casos citados, garanto que a Profa. Marisa é radical, isto é, é totalmente contra seu uso por crianças. Eu sou radicalmente contra o uso dos meios eletrônicos por crianças por reconhecer o prejuízo que eles causam. Mas para isso é necessário ter uma visão do ser humano que, para começar, não o encara como máquina.
(8) Não, é muito pior: é altamente prejudicial, pois força o uso de músculos e coordenação motora que não deveriam estar maduros. Hoje em dia, reconhece-se que o uso do "andador" é um crime, pois causa inúmeros problemas posteriores. Não consigo compreender o que têm na cabeça os pais que os usam. Não há nenhuma criança normal que deixou de aprender a andar; por que acelerar esse processo, em lugar de deixá-la desenvolver-se em seu próprio ritmo e maturação? Pois bem: o "mouse" é um "andador manual"; o computador é um "andador mental". Quando o mundo reconhecer os prejuízos que esses dois fazem às crianças, muitos milhões delas terão já sofrido com eles, como se passou com os andadores.
(9) Muito melhor seria contra histórias de tartarugas, ou mostrar uma pintura artística de uma, e deixar a criança imaginar o movimento. Quanto mais rústico o brinquedo ou a figura, mais haverá para ser imaginado. Há uma grande chance de tratar-se, no caso descrito, de desenhos animados. Sou totalmente contra eles para crianças, pois representam uma caricatura do mundo, em geral sem arte e sem respeito. Não é esse o conceito de mundo que as crianças deveriam absorver.
(10) Pode, mas não deve; deve é comprar um lindo livro, sem monstros e caricaturas.
(11) Certamente esse filtro bloqueava alguns "sites" conhecidos. E todos os outros incovenientes para crianças?
(12) Será possível que não se perceba como o computador é perigoso para crianças?
(13) Coitada de sua filha, forçada a ser um adulto precoce. Ela deveria é estar brincando de casinha, lendo contos de fadas, etc. - como sua mãe provavelmente fez, se os pais foram inteligentes e não a deixaram ver TV.
(14) O dia-a-dia é real, a internet é virtual. Não há comparação. Mas o maior problema é que não se deve ensinar ética  para crianças formalmente, e sim por meio de exemplos de vida e de histórias, imagens, de maneira individual - justamente o que a Internet ou o computador não podem fazer. Uma criança que aprende ética conceitualmente não é mais criança.
(15) É uima pena que os pais que deixam seus filhos usar joguinhos eletrônicos violentos (95% destes), ou deixam seus filhos assistir programas violentos na TV (a maioria), não aprendam com a Profa. Marisa que estão comentendo um crime com seus filhos - afinal, para ela a ética é a mesma...
(16) Estão dentro de casa por que os pais querem - provavelmente por ignorância do mal que os aparelhos fazem aos seus filhos. Eu não tive TV em casa até minha filha menor ter se tornado adulta. Foi o melhor presente que eu pude dar a eles (naquela época não havia microcomputadores - eu não os teria deixado usá-los).
(17) Precisam preocupar-se, e muito. Não se deve subestimar a influência perniciosa dos meios eletrônicos - independente do uso (a menos de se usar a TV como mesinha, o computador como peso para  papel, etc.). Esses aparelhos foram feitos para atrair, e as crianças nào têm capacidade e maturidcade para resisitir ou mesmo selecionar o seu uso. Se aprenderam a fazê-lo, não são mais infantis, pobres coitadas.
(18) Se as suas crianças tiverem acesso a TV, joguinhos eletrônicos e computador, esses frutos serão terríveis. Será possível que não se perceba como a sociedade, os jovens estão piorando dia a dia, e que isso é devido em grande parte aos meios eletrônicos?
(19) Será possível? Se é necessário estabelecer limites, quer dizer que eles são perigosos (alguém precisou estabelecer limites para brincar com bonecas, para ler bons livros? Pode acontecer, mas é muito raro...). Mas como a Profa. Marisa quer que os pais estabeleçam limites se o computador está no quarto dos filhos? Eles mudar-se-ão para esse quarto?
(20) Todas essas coisas e atividades, pela maneira como ela fala, devem ser controladas. Mas justamente o caminho mais seguro para não se poder controlar é colocar no quarto das crianças. Não sei se há um crime pior que se pode cometer contra o interior de uma criança do que colocar uma TV em seu quarto.
(21) Mas o Zeca certamente faria as coisas inconvenientes muito menos na casa dos amigos do que dentro de sua própria casa - afinal, onde ele passa a maior parte de seu tempo? Quando meus filhos eram pequenos, não podíamos pedir para uma mãe cujo filho iria receber a visita de um dos nossos, que não ligasse a TV. Seríamos taxados de gente do outro mundo. Só que o exagero dos programas hoje em dia é tal, que qualquer mãe ou pai iria compreender que um outro não queira que seu filho veja TV. Essa é uma característica comum às forças que estão por detrás da tecnologia: sempre exageram. Basta uns e outros abrirem os olhos para enxergarem os problemas que ela causa.
(22) Isto é, até as 22:00 o filho pode usar qualquer software ou fazer acesso a qualquer "site", por mais impróprio que seja. Isso é educação? Os jovens devem - e inconscientemente querem - ser orientados, e não deixados ao léu, para aprenderem e fazerem o que não devem.
(23) Se eu fosse professor de ensino fundamental ou médio, não permitiria que os alunos entregassem trabalhos impressos pelo computador. Quem capricha num trabalho desses? É a máquina, não o jovem. Leiam-se meus trabalhos para se ver como o computador induz indisciplina mental.
(24) Só que o computador induz à preguiça. Tudo tem que ser atratente, cheio de cosmético, tem que ser rápido e fragmentado. O conteúdo não interessa mais, só a forma. Mata-se a capacidade de se concentrar em algo sério. O ensino vira um joguinhho eletrônico.
(25) Um professor que aceitava um trabalho assim, só com cosmético, não devia ser professor.
(26) Especializações? Será possível? Até o fim do ensino médio o aluno deveria ser o mais generalistga possível! Infelizmente, nossas universidades já exigem especialização logo no começo, mas isso é uma aberração de formação ampla de um indivíduo.
(27) O correto nesse caso é o uso de livros. Mas as crianças e jovens computadorizados não terão paciência para ler um livro, principalmente se isso exigir esforço.
(28) Essa necessidade simplesmente não existe. Como eu disse na entrevista, há tempo para tudo. Vai ser cada vez mais fácil aprender a usar um computador; uma disciplina de um semestre durante os últimos anos do curso me'dio é suficiente para dar todo o conhecimento básico do que vem a ser um computador, como se deve usá-lo bem e os males que traz. Mas, para isso, deve-se encará-lo objetivamente, e não entrusiasticamente.
(29) Isto é, torná-los adultos precoces, com capacidade de discernimento e do enorme auto-contrôle que os meios eletrônicos exigem para não serem usados ou, no caso do computador, só de maneira positiva e comedida.