Contra o uso de computadores por crianças e jovens

(Enviado, a pedido, a um jornal sobre educação de Porto Alegre, em 12/8/96)

Valdemar W.Setzer
www.ime.usp.br/~vwsetzer
Dept. de Ciência da Computação
Universidade de São Paulo

Para se falar de computadores na educação é preciso compreender o que é um computador, e o que é educação; para falar desta ultima, é preciso compreender o que é o ser humano e como ele se desenvolve com a idade.

O essencial de um computador é que ele é uma maquina abstrata, matemática. Tanto os dados, como os programas, quanto os comandos que se dão a um software de uso geral como um editor de textos são na verdade funções matemáticas. Assim, para qualquer pessoa usar um computador é necessario que ela exerça um raciocínio matemático, ou melhor dizendo, lógico-simbólico. Isso obviamente não se aplica quando a pessoa está digitando um texto, mas se aplica totalmente quando ela necessita, por exemplo, usar um comando qualquer do editor, como alinhar verticalmente o texto, definir o tipo de parágrafo, etc.

Em termos educacionais, faço a pergunta que quase ninguém faz: a partir de que idade é correto forçar uma criança a exercer um pensamento formal, lógico-simbólico? Para responder essa pergunta, usei o conhecimento do ser humano que foi introduzido no começo do século por Rudolf Steiner. Baseado nesse conhecimento, ele introduziu em 1919 o que se denominou Pedagogia Waldorf. Infelizmente ela não está presente no R.G. do Sul (porque será?) mas pode ser conhecida em sua parte prática de Florianópolis (Escola Anabá) para o Norte, nas apenas 12 escolas Waldorf do Brasil (existem cerca de 1000 no mundo todo, mais de 100 nos EE.UU., onde contrariamente ao nosso meio acadêmico cheio de preconceitos e ignorâncias, é objeto de muitos estudos e teses; para mais detalhes, ver a seção de Pedagogia Waldorf e os diretórios de escolas Waldorf em www.sab.org.br).

Pois bem, usando o modelo de desenvolvimento de Steiner e a imensa prática com sucesso das escolas Waldorf, cheguei há muito tempo à conclusão de que o pensamento abstrato forçado pelo computador prejudica os jovens até a idade de 16-17 anos, forçando-os a usarem uma linguagem e um tipo de pensamento que são somente adequados após muita maturidade mental. Por isso elaborei um programa de ensino do que é um computador, iniciando na 1a. série do Colegial com hardware (que não é tão abstrato) e culminando com software de uso geral na última série (veja-se artigo a respeito através de ponteiro em minha página da web). Não há necessidade alguma de uma criança começar a usar computadores antes, como não há necessidade nenhuma de ela ver TV ou jogar os terríveis video games. Para os pais que acham que a criança não estará preparada para enfrentar o mundo futuro, digo que em 5 anos os computadores e seu uso serão muito diferentes de agora, imaginem então quando essas crianças entrarem no mercado de trabalho... Além disso, não será (como já não é, em grande parte) necessário aprender a usar cedo um computador - o seu uso está cada vez mais simples, acessível a qualquer pessoa, mesmo a analfabetos, de modo que uma familiarização precoce não ajuda em nada. Pelo contrário, prejudica, pois em minha experiência educacional jovens até 15 anos só querem brincar com o computador, como se fosse joguinho eletrônico, e não aprender algo seriamente com ele ou a respeito dele.

E por falar em "seriamente," o que acontece se uma criança ou jovem usam um software educacional, digamos, de Geografia? Eles serão atraídos enormemente, terão um entusiasmo que dificilmente um professor-gente conseguirá despertar. Mas, pergunto, o entusiasmo é pela Geografia? Não, o entusiasmo é por todo o aspecto visual, auditivo e de animação, enfim, o entusiasmo é pelo cosmético e não pelo que ele embeleza. Por detrás desse cosmético multimídia está quase zero. Pensem os pais e educadores: como é que uma criança acostumada com esse cosmético excitante vai conseguir ler calmamente um livro ou assistir uma aula normal de Geografia? A crinaça está sendo vicida num padrão que não é o da educação; esta leva tempo, exige calma, reflexão e um contato humano entre professor e aluno, exige a arte do professor para atrair a atenção do aluno e ao mesmo tempo transmitir conhecimento. Isso nos leva ao proximo ponto.

Outras das falácias usadas para promover (vender???) computadores na educação são as de que com o computador cada aluninho pode seguir seu ritmo, não tem medo de ser repreendido e de tirar nota baixa. Tudo isso é verdade, mas é uma aberração do ponto de vista educacional. Em educação, não se pode queimar etapas, ensinar gramática antes de ler, álgebra antes de aritmética. A seqüência e o ritmo são absolutamente essenciais em educação. Afinal, isso tem funcionado nas classes tradicionais; lembremos que não se tem a mínima ideia como e porquê os seres humanos aprendem - senão o curso de medicina não levaria 6 anos... Somente um professor-gente pode saber e ter a intuição de que ritmo é adequado para sua classe e, idealmente, para cada aluno da classe (o que acontece nas escolas Waldorf). Somente um professor-gente pode ter experiência de que velocidade pode imprimir à sua materia e como abordá-la, qual a maturidade intelectual e emocional de seus alunos, o que foi visto na semana e no ano passados e o que outros professores estão dando. O ensino libertário permitido pelo computador é uma aberração educacional, altamente prejudicial às crianças.

Para finalizar, quero abordar o mais recente ataque às crianças e aos jovens: a rede Internet. Senhores e senhoras, Internet não é para crianças e jovens. Ela exige uma maturidade fantástica, pois senão o seu usuario vai perder uma enormidade de tempo navegando indisciplinadamente (aliás, o computador induz indisciplina mental, mas não tenho espaço para discorrer sobre esse terrível problema educacional) por águas muitas vezes sujas e que não levam a lugar nenhum. A quantidade de coisas inúteis e porcaria na Internet ultrapassa qualquer imaginação de poluição mental. Crianças jamais deveriam ser deixadas sozinhas usando a rede, pois há um perigo imenso de elas entrarem em contato com coisas impróprias para sua idade. Não me refiro somente à violência (como fabricar bombas terroristas) e pornografia (inclusive troca de mensagens interativas com pessoas inescrupulosas). Um inocente texto científico explicando o problema dos buracos de ozônio pode ser altamente prejudicial, se a criança não tem maturidade intelectual e emocional e nem base para compreendê-lo. Os leitores dirão: "mas isso já acontecia com livros e revistas." Sim, só que aí a atração não é tão grande e os pais e professores podem exercer o necessário controle, que desaparece quando a criança ou jovem é deixado a sós com seu computador.

Aí estão apenas alguns argumentos no pequeno espaço que me deram, mas suficientes para mostrar por que eu considero o uso de computadores por crianças e jovens de menos de 16-17 anos um crime contra a infância e a juventude. O computador transforma-os em adultos precoces, pensando formal e abstratamente, exercitando auto-educação, e exigindo auto-controle. Como disse Neil Postman em seu livro com esse título (mas que não aborda o problema do computador), estamos provocando o "desaparecimento da infância," o que será terrível para o futuro da humanidade. Que crime computacional!


V.W.Setzer é Prof.Titular (aposentado) do Depto. de Ciência da Computação da USP. Tem livros sobre computadores na educação publicados no Brasil, Inglaterra, Alemanha e Finlândia.


Last modified: Thu Apr 20 15:23:00 EST 2006