1. Introdução
Este artigo analisa o capítulo "Rudolf Steiner" do
livro de Fritz März, Grandes Educadores: Perfis de grandes educadores
e pensadores pedagógicos, trad. E.A. Royer, São Paulo:
EPU, 1987, pp. 131-135. Foram pinçados alguns trechos que me
pareceram exigir comentários. Como não tenho ainda autorização
da editora, deixo de colocar na Internet a transcrição
completa do capítulo; no entanto, posso enviá-lo por e-mail
a quem o solicitar.
Esta é a segunda resenha que faço sobre um capítulo
de um livro sobre grandes educadores. A outra foi sobre o capítulo
"Rudolf Steiner 1961-1925" escrito por Jürgen Oelkers
no livro de Joy A. Palmer 50 Grandes Educadores: de Confúcio
a Dewey, trad. M. Pinsky, São Paulo: Ed. Contexto, 2005 (pp.
229-235). É interessante comparar os dois capítulos e
as duas resenhas: na primeira, tive que esclarecer muito mais pontos,
em tal medida que ela se tornou uma introdução não
só à Pedagogia Waldorf, mas também a vários
pontos importantes da cosmovisão de Rudolf Steiner. Em certos
aspectos, os dois trabalhos se complementam.
Atenção: neste artigo há vários
vínculos (links) referentes ao antigo site da Sociedade
Antroposófica no Brasil que, devido a uma implementação
falha do novo site, da qual não participei, ficaram "quebrados".
Aos poucos irei mudando ou eliminando esses vínculos.
2. Comentários
2.1 "A preocupação da época atual
deve ser a de basear a escola inteiramente numa vida espiritual livre."
(p. 131.)
Com essa citação (provavelmente de Steiner), März
abre o capítulo. Ela requer alguma explicação.
Em 1919, ano da fundação da primeira Escola Waldorf, que
implementou a pedagogia de Steiner, ele tentou introduzir uma renovação
na estrutura social, pois tinha esperança de que a 1ª Guerra
Mundial tinha mostrado amplamente a necessidade de profundas mudanças
na organização dos Estados, na economia e nas instituições
culturais. Steiner dividiu a sociedade em três grandes áreas,
que ele denominou de "Vida Econômica" (Wirtschaftsleben),
"Vida Jurídica" (Rechtsleben) e "Vida Espiritual"
(Geistesleben). Essencialmente, elas têm a ver, respectivamente,
com a satisfação de necessidades, o relacionamento entre
as pessoas e instituições, e a prestação
de serviços ou exercício de habilidades. Essas três
atividades referem-se não só ao mundo físico ou
natural, mas também à vida dos sentimentos, da cultura
e do aperfeiçoamento individual. Por exemplo, claramente existem
necessidades físicas, como vestuário, alimentação,
habitação, transporte, higiene e saúde, mas também
existem necessidades não-físicas, como a educação
das crianças e jovens, a aquisição de conhecimentos,
o desenvolvimento pessoal (pela auto-educação), espaço
para o exercício da criatividade, etc. Assim, uma escola existe
para satisfazer necessidades de crianças e jovens e, portanto,
deveria ser considerada como parte da Vida Econômica. Obviamente,
os critérios de avaliação de uma instituição
educacional devem ser totalmente diferentes de uma instituição
de produção de bens. Quando funcionários e professores
de uma escola encaram os alunos dela, deveriam sempre ter em mente que
estão satisfazendo a necessidade que eles e os seus pais têm
de que recebam uma educação e desenvolvam-se como indivíduos.
Por outro lado, o professor de uma classe é um representante
da Vida Espiritual, na medida em que ele exerce suas habilidades, e
presta o serviço de educar seus alunos.
As características básicas que Steiner associou com cada
área foram: para a Vida Econômica, a fraternidade (ou solidariedade);
para a Vida Jurídica, a igualdade; para a Vida Espiritual, a
liberdade. De fato, se não houver solidariedade na satisfação
das necessidades, alguns terão um excesso, e outros falta em
relação ao que precisam (note-se que as necessidades variam
de indivíduo para indivíduo). Na Vida Jurídica,
que engloba as leis, os contratos, acordos e regras de convivência
entre pessoas, deve haver igualdade, isto é, neles e em sua aplicação
uma pessoa não pode ser privilegiada em relação
a outra. Na Vida Espiritual, o exercício de habilidades exige
liberdade para que seja frutífero. Por exemplo, um professor
tem que ter liberdade de apresentar um determinado tema do currículo
de um modo para uma classe, e de outro para outra; ele tem que ter liberdade
para improvisar aquilo que é mais adequado para cada momento
de suas aulas – nesse sentido, ele deve ser em primeiro lugar um artista
da educação, e não um técnico. Mas há
ainda um outro aspecto: não deve haver interferência de
instituições ou organismos de uma área sobre a
outra, isto é, deve haver independência de cada área.
Assim, o Estado ou o setor de produção de bens não
deveria de modo algum interferir na educação. Note-se
que, aqui no Brasil e em vários países, o ensino denominado
"público" é na verdade um ensino estatal; o
Estado determina os currículos, os livros-texto, escolhe e nomeia
professores, etc. É por isso que as escolas Waldorf em vários
países europeus têm o nome de "Escola Waldorf Livre".
Além de cada escola ser independente, os seus professores têm
liberdade total de estabelecer currículos, organizar a escola,
promover atividades, etc. É sob esses prismas que, penso, aquelas
palavras de Steiner devem ser entendidas.
2.2 "As reações às suas idéias
e impulsos foram bastante contraditórias. Enquanto seus adeptos
o veneravam como fundador de uma religião e citavam suas publicações
como se fossem Escritura Sagrada, seus adversários e críticos
acusavam-no de magia e ocultismo, de idéias vagas e nebulosas.
Segundo estes, sua "antroposofia" não apresenta nenhuma
originalidade, é uma mistura de filosofemas orientais e helenísticos,
de idéias clássicas e românticas, na verdade um
renascimento de motivos gnósticos; suas propostas pedagógicas
teriam sido tomadas de empréstimo das idéias dos grandes
pedagogos reformadores da sua época." (p. 131.)
Esse início do primeiro parágrafo do capítulo
contém imprecisões ditas pelo autor e pelas vagas pessoas
que ele cita.
Os seguidores de Steiner jamais poderiam tê-lo venerado como
"fundador de uma religião" pois a sua Antroposofia
não é religião: não tem cultos, não
tem sacerdotes, não tem dogmas, não tem uma organização
hierárquica como é típico de muitas religiões.
De fato, por solicitação de pastores da Alemanha, Steiner
deu as bases de uma renovação da religião, a "Comunidade
de Cristãos", que se qualifica como "Movimento de Renovação
Cristã". Dessas bases foi fundada por eles essa religião,
que continua existindo até hoje (há uma lindíssima
igreja em São Paulo, na Av. Ver. José Diniz). Ela fundamenta-se
na Antroposofia, mas relativamente poucos daqueles que se dizem "antropósofos"
são membros da Comunidade de Cristãos. Steiner relutou
a atender o pedido daqueles pastores, que desejavam uma total renovação
do cristianismo praticado pelas igrejas ditas cristãs da época.
Ele dizia que não havia mais lugar para crenças; o ser
humano moderno requer uma atitude científica, de formulação
de hipóteses e teorias, bem como observações conscientes,
comprovações experimentais e aplicações
práticas das mesmas. Em geral, as religiões dirigem-se
aos sentimentos, e não à compreensão, como é
o caso da Antroposofia. No entanto, Steiner reconheceu que havia pessoas
que ainda precisavam de um impulso religioso, e acabou cedendo à
insistência dos que lhe pediam aquelas bases.
Assim, classificar genericamente a Antroposofia como religião
é um erro de quem não a conhece. Por outro lado, jamais
os seguidores de Steiner deveriam considerar suas publicações
(28 livros e quase 300 volumes com cerca de 6.000 palestras – não
há nada dele que não esteja publicado, entre livros e
palestras) como "Escrituras Sagradas". Repetidamente ele afirmou
que jamais se deveriam tomar suas palavras como verdade absoluta e definitiva;
a atitude correta propugnada por ele era tomarem-se suas comunicações
e idéias como hipóteses de trabalho, a serem verificadas,
tanto em termos de coerência como de aderência ao que pode
ser constatado no exterior e no interior de cada um. Além disso,
ele deu o caminho (constituído de exercícios meditativos,
feitos individualmente) para que cada um desenvolva os órgãos
de clarividência que claramente ele possuía; por meio desse
desenvolvimento, cada pessoa deveria comprovar pelo menos algo de suas
palavras, e com isso admitir com confiança, por experiência
própria, que elas são verdadeiras. Em geral, seus seguidores
e continuadores não têm dificuldades em admitir tudo o
que ele disse como hipóteses razoáveis, pois a coerência
e a abrangência de suas idéias é excepcional. Elas
alargam enormemente a visão de mundo proporcionada pela ciência
moderna, e ajudam a compreender o passado da humanidade, por exemplo
com magníficas interpretações absolutamente originais
de mitos, escritos antigos e a Bíblia. Isso faz com que essas
escrituras e lendas passem a ser compreendidas e deixem de ser meras
"historinhas" inventadas por nossos antepassados, pretensamente
supersticiosos e cheios de crendices, como uma visão materialista
necessariamente tem que admitir.
"Magia" é a última coisa que se pode encontrar
em Steiner. Dizer que ele a praticava é ignorar totalmente sua
maneira de adquirir conhecimentos e suas atividades. Já "ocultismo"
encaixa-se bem em sua atividade, desde que se entenda corretamente essa
palavra. Um de seus livros básicos teve o título de Geheimwissenschaft,
que foi traduzido por A Ciência Oculta (São Paulo:
Ed. Antroposófica, 1998), mas que eu traduziria preferivelmente
como "A Ciência do Oculto" (disponível
na Internet em inglês). Nele, Steiner inicia dizendo como
entende a expressão: não se trata de uma ciência
sobre algo secreto, mas sobre aquilo que não pode ser observado
diretamente pelos nossos sentidos. De fato, nesse sentido, os sentimentos
e os pensamentos do leitor destas linhas são exemplos de que
há atividades ocultas: ele os "observa" interiormente,
mas não pode mostrá-los para outrem. Nas palavras de Steiner
no livro citado, "Não se trata aqui de um saber que em qualquer
sentido se possa considerar ‘secreto’, acessível apenas a alguns
por circunstâncias especiais do destino. Faremos jus ao uso aqui
proposto da expressão se considerarmos o que Goethe tem em mente
ao referir-se aos ‘mistérios manifestos’ nos fenômenos
do Universo. O que permanece ‘oculto’, não manifesto nesses fenômenos,
ao serem eles compreendidos apenas pelos sentidos e pelo intelecto a
estes ligado, é considerado como o conteúdo de uma forma
supra-sensível de conhecimento. Para quem considera ‘ciência’
apenas o que se revela por meio dos sentidos e do intelecto a serviço
destes, naturalmente o que se subentende aqui como ‘Ciência Oculta’
não é ciência alguma. Contudo, se quisesse compreender
a si própria, tal pessoa deveria reconhecer estar recusando uma
‘Ciência Oculta’ não por um discernimento fundamentado,
mas por um julgamento arbitrário oriundo de uma sensibilidade
puramente pessoal." (p. 32). Steiner chamou o seu método
de investigar o "oculto" de ciência pois é baseado
numa atitude científica (para uma caracterização
desse termo, veja-se meu artigo "Ciência,
religião e espiritualidade"), por exemplo admitindo
hipóteses de trabalho e não crenças ou fé.
A originalidade de Steiner é tão enorme, que a afirmação
contrária pelas pessoas referidas pelo autor soam como opinião
sem fundamento no conhecimento de sua obra – e o autor devia ter colocado
essa questão em seu devido lugar. Há na Antroposofia filosofemas,
isto é, proposições filosóficas. No entanto,
ela deveria mais propriamente ser denominada de cosmovisão, ou
de visão de mundo (Weltanschauung). Já em termos
da filosofia Steiner é original: em seu livro Rätsel
der Philosophie ("Enigmas da Filosofia", ainda não
traduzido), em que ele analisa as idéias de muitos filósofos
antigos e modernos (até sua época), ele as coloca em termos
da manifestação cada vez mais intensa do "Eu superior"
ao longo da história. Em lugar de emprestar as idéias
dos filósofos, ele as examina sob um prisma totalmente original.
Por outro lado, obviamente muito filósofos analisaram corretamente
a humanidade, portanto suas idéias permanecem até hoje
e, quando se as admite como válidas e se as cita ou usa, não
de deveria dizer que elas são "tomadas de empréstimo".
Quanto às propostas pedagógicas de Steiner, sua Pedagogia
Waldorf foi absolutamente revolucionária e original, desde a
proposta de classes mistas (não comuns para a época),
até o fato de não haver notas ou repetições
de ano, passando pela figura do Professor de Classe, que acompanha uma
dada turma da 1ª à 8ª série, e ainda o ensino em "épocas",
períodos em que apenas uma matéria é ministrada
durante 3 ou 4 semanas diariamente. Mas, em minha opinião, a
originalidade mais marcante da Pedagogia Waldorf é o fato de
todo o ensino ser baseado em uma visão holística do desenvolvimento
do ser humano, como um ser volitivo, emotivo e intelectual, reflexo
de uma visão espiritualista conceituando claramente o que vem
a ser o corpo, a alma e o espírito humanos e sua progressiva
manifestação no decorrer do desenvolvimento da criança
e do jovem, em períodos bem marcados.
Não adianta ficar dizendo que Steiner emprestou isso ou aquilo;
é óbvio que o que é verdade permanece de um autor
para outro. É preciso apontar especificamente o que ele teria
"tomado de empréstimo" e de quem. Essa deveria ser
a atitude acadêmica adequada.
2.3 No segundo parágrafo (p. 132), o autor traça
uma breve biografia de Steiner, à qual não tenho maiores
reparos. A sua frase "Doutorou-se com um estudo sobre a filosofia
da liberdade" exige uma observação. A sua tese de
doutorado, defendida na universidade de Rostock em 1891, publicada com
o título de Verdade e Ciência (trad. R.Lanz, São
Paulo: Ed. Antroposófica, 1985), versou sobre a cognição;
baseada nela ele escreveu o livro Die Philosophie der Freiheit,
traduzido como A Filosofia da Liberdade (trad. M. Greuel, São
Paulo: Ed. Antroposófica, 2000) disponível na íntegra
em inglês e espanhol
na Internet. De fato, sua análise da liberdade e o que seria
uma ação moral baseada na liberdade é o pináculo
do livro, mas sua maior parte versa sobre o pensar e cognição.
2.4 "Segundo Steiner, a vida do Estado, da economia e do
espírito deve existir como campos autônomos. Especialmente
o ensino deve ser libertado da dependência do Estado e da economia
e basear-se "numa vida espiritual livre" (somente uma "escola
livre colocará, na vida, homens aptos a desenvolver sua plena
capacidade no Estado e na economia, porque esta é desenvolvida
neles"). Destes dois impulsos, Steiner espera uma solução
para a questão social, uma reforma da sociedade e de todos os
campos da vida; da ciência e da arte, da economia e da vida social
e, não em último lugar, da educação."
(p. 132.)
Sobre as primeiras frases desse trecho do 3º parágrafo já
discorri no item 2.2. A tradução seria mais correta se
tivesse empregado "as vidas" e "devem existir".
Note-se que a expressão "escola livre" deve ser entendida
como independente de ingerências externas. De fato, todas as escolas
Waldorf são independentes. Elas se agregam em federações
nacionais, como a Federação
das Escolas Waldorf no Brasil (FEWB), e uma internacional, Bund
der freien Waldorfschulen ("União das Escolas
Waldorf Livres"), mas essas federações não
têm ingerência sobre cada escola. A FEWB, por exemplo, simplesmente
certifica escolas como seguindo o método e os princípios
da Pedagogia Waldorf e organiza cursos e congressos para os professores.
A Pedagogia Waldorf
propõe-se a "colocar, na vida" seres humanos aptos
a exercerem suas capacidades em todos os aspectos, e não só
"no Estado e na economia" (esta última aqui entendida
no sentido comum, e não no da Vida Econômica como expus
em 2.2). Já os tais "dois impulsos" referidos escapam
a meu intelecto. Se foram, as Vidas Econômica e Espiritual na
acepção de Steiner, elas são âmbitos da sociedade,
e não impulsos. E não são deles que Steiner esperava
uma reforma da sociedade, e sim de cada indivíduo, das comunidades
e da sociedade como um todo. Quanto às crianças e jovens,
ele deu a máxima importância possível à educação,
pois esta, se mal feita, pode produzir adultos com pensamentos rígidos,
insensíveis e sem coragem para agirem. Quanto aos adultos, ele
colocava uma importância fundamental na auto-educação.
Em sua A Filosofia da Liberade, já citado em 2.3, Steiner
escreveu: "A natureza faz do ser humano um mero ser natural; a
sociedade, um ser que age conforme leis; um ser livre somente ele
pode fazer de si mesmo. A natureza libera o ser humano em determinado
estado de sua evolução; a sociedade o conduz alguns passos
adiante; o último aperfeiçoamento somente ele podedar
a si mesmo." [p. 119, ênfases do autor.] A escola Waldorf
tem como meta justamente preparar os alunos para viverem plenamente
em sociedade, e prepará-los para continuar seus estudos e darem
o passo do auto-desenvolvimento no caminho para a liberdade. Não
é fácil criar a potencialidade para a liberdade no mudo
atual, onde a massificação, os meios eletrônicos
e a ação movida por prazeres superficiais e muitas vezes
artificiais, estão cada vez mais impedindo o ser humano de atuar
livremente.
2.5 Ainda no 3º parágrafo, "Em 1919, um ano após
o fim da Primeira Guerra Mundial, abriu uma escola modelada segundo
suas idéias antroposóficas e de reforma social, para filhos
dos operários da fábrica de cigarros Waldorf-Astoria,
em Stuttgart." (p. 132.)
É preciso deixar claro que a fundação da primeira
escola Waldorf se deu por iniciativa dos funcionários daquela
fábrica. Eles tinham dificuldade de acompanhar as idéias
de Steiner sobre reforma social, e quando este lhes disse que isso era
um problema educacional, afirmaram que então queriam para seus
filhos uma educação diferente. Emil Molt, o diretor da
fábrica, abraçou com entusiasmo a idéia e chamou
Steiner para formar a escola para os filhos dos funcionários.
Steiner exigiu total liberdade para isso, a escola foi formada e algum
tempo depois desligou-se totalmente da fábrica.
2.6 O início do 4º parágrafo é o seguinte.
"Não há dúvida, o educador formado de acordo
com os princípios da antropologia pedagógica moderna sente-se
de certo modo perplexo diante do corpo humano ‘quadripartido’ da teoria
de Steiner. Não terá problemas quanto ao ‘corpo físico’.
Mas o que há de entender por ‘corpo vital ou etéreo’,
por ‘corpo da sensibilidade ou astral’ e, finalmente, por ‘corpo-eu’?
Isso sem falar das dificuldades em que incorre na reflexão sobre
a ‘reencarnação’, a lei da reincorporação,
da vida terrena repetida". (pp. 132-3.)
De fato, uma das caracterizações dadas por Steiner do
ser humano (e não do "corpo humano"), é uma
organização que é traduzida como "quadrimembrada",
correspondendo literalmente ao original "viergliederig".
"Partes" têm uma conotação de "partes
estanques", ao passo que membros ("Glieder") sempre
interagem uns com outros, formando um todo, como por exemplo nossos
próprios membros, que têm características próprias
mas interagem e dependem dos outros; os membros de uma comunidade social
ou de trabalho também interagem e formam o todo que é
ela própria. Os membros "corpo etérico", "corpo
astral", e "Eu" (e não "corpo-eu", expressão
jamais usada por Steiner), não são físicos. Brevemente,
a eles estão associados os processos vitais e a forma orgânica
(também nas plantas e animais), os processos de percepção,
dos sentimentos, dos instintos e da consciência (também
nos animais) e os processos da individualidade "superior",
como o intelecto racional, a auto-consciência, a liberdade e o
amor altruísta (inexistentes nos animais), respectivamente. Para
maiores detalhes, veja-se meu texto "Uma
introdução antroposófica à constituição
humana". Acontece que os três citados membros superiores,
não sendo físicos, escapam totalmente a uma compreensão
baseada em uma visão de mundo materialista, daí o autor
mostrar perplexidade quanto a eles – fora o fato de aparentemente não
ter estudado as extensas descrições e caracterizações
que Steiner deu sobre eles, em livros e palestras. Uma conceituação
adequada desses três membros superiores é fundamental para
o professor Waldorf, pois durante o processo educativo eles vão
gradativamente se manifestando cada vez mais, e adquirindo individualidade.
Em grande parte, o currículo Waldorf, isto é, o que se
ensina em cada idade, e como (de maneiras gerais, pois receitas rígidas
não devem ser seguidas, já que cada aluno e cada classe
têm individualidades e características diferentes), baseia-se
na conceituação desses membros superiores, seu desenvolvimento
e manifestação cada vez mais crescente com o amadurecimento
da criança e do jovem.
Quanto à reencarnação, é absolutamente
fundamental considerar-se que o conceito que Steiner deu a ela é
absolutamente original, apesar de obviamente conter elementos comuns
a várias tradições espiritualistas que a preservaram.
Esse conceito apresenta uma grande dificuldade para muitas pessoas pois,
por uma necessidade da humanidade, por bastante tempo ele desapareceu
quase que totalmente. Era necessário que a humanidade, provindo
dos mundos espirituais, caísse na matéria, onde pode cometer
erros, para que o ser humano pudesse adquirir a liberdade e a individualidade
(note-se como na Antigüidade, e nos povos primitivos, a consciência
grupal suplantava a individual). A reencarnação só
tem sentido de um ponto de vista espiritualista, pois do materialista
tudo termina para um ser humano com sua morte, já que só
existe nele a sua parte física. Portanto, realmente um materialista
não consegue fazer uma "reflexão" sobre a reencarnação
– principalmente por que provavelmente tem preconceito a respeito de
qualquer noção espiritualista do ser humano e do universo,
e recusa-se a estudar e refletir sobre o que poderia ser a reencarnação
e se ela tem sentido e explica algo (como mostrou magistralmente Steiner,
inclusive com muitos exemplos). Quero deixar aqui somente um pensamento
lógico meu a respeito: se alguém considera que a vida
deve ter um sentido, então este deve ser o desenvolvimento de
cada indivíduo e, portanto, deve-se ter a chance de compensar,
em uma vida subseqüente, os erros cometidos em uma vida. Obviamente,
nada disso faz sentido para um materialista coerente, pois da matéria
não pode advir sentido para a vida.
Nas escolas Waldorf, o conceito de reencarnação jamais
é tratado, pois considera-se que os alunos ainda não têm
maturidade suficiente para encararem livre e conscientemente esse assunto.
Pode acontecer de alunos do fim do ensino médio formularem perguntas
a respeito da reencarnação – aí o professor deve
abordar a questão da maneira adequada à maturidade deles,
respeitando, na classe, os que não têm interesse pelo assunto.
No entanto, o conceito de reencarnação deve estar presente
em todos os professores Waldorf, para considerarem que cada aluno é
um ser espiritual que ali está para aperfeiçoar-se, merecendo
portanto todo o respeito. O mestre deve considerar-se um simples instrumento
para o aperfeiçoamento da individualidade de cada aluno, contribuindo
para seu desabrochar. No extremo oriente, há em certas regiões
uma tradição de o professor inclinar-se frente a seus
alunos, pois algum deles pode ter uma individualidade muito mais desenvolvida
que a sua; na Pedagogia Waldorf, o importante é o respeito para
com cada aluno que, nessa encarnação, colocou-se sob a
orientação do mestre e espera que ele lhe proporcione
o desenvolvimento adequado para poder, posteriormente, agir como adulto
livre, criativo e socialmente atuante.
2.7 A frase seguinte é: "Steiner descreve assim
os três primeiros períodos do desenvolvimento humano: o
período dos primeiros sete anos começa com o parto do
corpo físico e caracteriza-se pelo modelo e a imitação;
o segundo período, que inicia com o nascimento do corpo etéreo,
é determinado pela autoridade e a obediência, sendo que
a criança durante oito anos é conduzida pela mesma personalidade
do educador e professor; finalmente, o terceiro período, que
principia com a libertação do corpo astral e o amadurecimento
sexual, estende-se até aos vinte e um anos. Nele, o jovem alcança
a sua autonomia e capacidade de julgamento. Esta interpretação
da evolução do desenvolvimento humano dificilmente será
aceita sem restrições pela moderna psicologia do desenvolvimento."
De fato, uma das bases da Pedagogia Waldorf é o desenvolvimento
da criança e do adolescente em períodos de 7 anos, os
"setênios". Como o autor menciona, eles são em
parte caracterizados pelo nascimento físico, e por uma metáfora
de "nascimento" dos corpos etérico (ao redor de 7 anos),
do corpo astral (ao redor dos 14 anos) e do Eu (ao redor dos 21 anos).
Esse "nascimento" desses três últimos deve ser
entendido como uma independização, análoga à
saída do bebê do corpo protetor da mãe. De fato,
por exemplo, nos 7 primeiros anos a criança está devotada
largamente à formação de sua base física
e vital, e tudo o que tem a ver com esse processo, como o desenvolvimento
da postura ereta, a coordenação motora, o andar, o falar,
o desenvolvimento dos órgãos de percepção
sensorial, etc., culminando fisicamente com a troca dos dentes. Esforços
intelectuais de aprendizado, como aprender a ler e a fazer contas, prejudicam
nessa época o desenvolvimento harmônico de todas essas
capacidades, de modo que a Pedagogia Waldorf recomenda que aqueles esforços
só sejam feitos a partir de 6 ½ a 7 anos de idade, lentamente
e de maneira o menos abstrata possível (já que as letras
viraram símbolos meramente abstratos).
O princípio da autoridade é uma característica
do ensino fundamental das escolas Waldorf, mas ela deve ser entendida
corretamente. Não se trata de autoritarismo, e muito menos de
forçar uma "obediência". A expressão usada
na Pedagogia Waldorf é "autoridade com amor": o professor
deve exercer autoridade como um exemplo amoroso de quem pode guiar as
crianças em seu desenvolvimento. O respeito dos alunos para com
o professor deve surgir de uma admiração por sua sabedoria
geral de vida, especialmente na sua capacidade de orientá-los,
e pela reciprocidade em relação ao respeito que cada professor
deve necessariamente sentir para com cada aluno. É sempre tocante
ver como, no começo do dia, o "professor de classe"
(que idealmente acompanha cada classe da 1ª à 8ª séries,
dando todas as matérias principais), fica na porta da sala de
aula e cumprimenta cada aluno que entra, apertando sua mão e
olhando para seus olhos; interiormente, ele deveria prestar atenção
a cada um, e não estar com seus pensamentos em problemas longínquos.
É também interessante salientar que, na falta de notas
e reprovações, a autoridade do professor deve ser realmente
desenvolvida não pela imposição de medo, mas por
um respeito pela sua capacidade de orientar cada aluno em seu amadurecimento
e de organizar cada aula adequadamente e de maneira interessante. Realmente,
na Pedagogia Waldorf o professor deve ser antes de tudo um artista educacional
e social, e não um técnico.
A aceitação ou não desse esquema dos setênios
e do desenvolvimento dos membros superiores da individualidade depende
exclusivamente de duas coisas: adquirir um conhecimento profundo de
seu significado, e verificar os excelentes resultados que isso traz.
Por exemplo, nunca houve problemas nas escolas Waldorf com a progressão
continuada e a falta de notas – esse tipo de problema só surge
quando os professores e pais não são preparados para atuarem
sem essas ferramentas de imposição de autoritarismo, de
forçarem os alunos a estudarem e trabalharem não por que
se interessam por um assunto dado em classe, mas por que são
obrigados a isso pois senão tirariam más notas e seriam
reprovados. É interessante observar que essa progressão
continuada aparentemente foi proposta pela UNESCO baseada no sucesso
mundial da Pedagogia Waldorf. Ela não está errada, a sua
aplicação é que foi mal feita em nosso país.
O que significa um aluninho tirar uma nota baixa em uma prova? Simplesmente
que ele não conseguiu responder adequadamente às questões
da mesma, da maneira como o professor as corrigiu. Isso não significa
que ele não tenha um conhecimento básico adequado da matéria;
o mau resultado pode ser conseqüência de distúrbios
emocionais momentâneos; pode significar que ele não tem
o interesse que o professor devia ter-lhe despertado pela matéria;
pode significar que ele, como criança, não teve o autodomínio
para estudar para a prova, isto é, que – ainda bem – ainda não
se comporta como adulto. A idiotice das provas pode ser comprovada por
qualquer um: quantos leitores deste texto, formados em curso superior,
conseguiriam se aprovados agora em um vestibular com grande concorrência?
Quantos seriam capazes de passar hoje nas provas que tiveram que fazer
durante toda a sua escolarização?
Finalmente, uma visão de mundo materialista, prevalente nos
meios acadêmicos e intelectuais da "moderna psicologia",
realmente não permitirá a aceitação "sem
restrições" da "interpretação"
da existência dos três membros superiores de cada individualidade
humana e o papel da educação escolar em seu desenvolvimento.
A psicologia do desenvolvimento coerente e prática introduzida
por Steiner, usada durante toda a fase escolar, desde o jardim-de-infância
até o fim do colegial, é claramente um diferencial da
Pedagogia Waldorf; por outro lado, eu gostaria de saber quais escolas
fora dessa pedagogia usam alguma psicologia do desenvolvimento, seja
lá qual for e em que fases do amadurecimento.
2.8 Vou transcrever em seguida o 5º parágrafo por ele
ser altamente positivo; não tenho praticamente nenhuma objeção
a ele:
"Existe, todavia, um critério que, acima de todas as considerações
teóricas, é decisivo para o julgamento de uma personalidade:
seu sucesso ou insucesso na prática. Com o seu impulso pedagógico,
Rudolf Steiner deu origem a um movimento que há muito ultrapassou
os limites do seu país e sempre encontra novos adeptos na sua
aplicação pedagógico-escolar. Adeptos que, numa
época em que se multiplicam os suicídios de crianças,
querem abrir para elas, não raro com grandes sacrifícios
financeiros, um caminho, através de uma escola humana. Uma escola
que ao longo de muitos anos, com a conservação do princípio
do ensino em classe, garante às crianças uma pessoa de
referência confiável, inteiramente comprometida com a individualidade
e dignidade infantis, uma escola que não conhece distinção
de sexo, confissão religiosa, classe social, não faz discriminação,
censura, não reprova, e onde há muita prática,
igualdade de chances e democracia; uma escola que rejeita o intelectualismo,
a pressão por resultados, a tendência para a precocidade
e a adaptação forçada, características do
ensino público oficial; uma escola que através de uma
multiplicidade de atividades manuais e criativas atende às necessidades
de ação e de coisas concretas da criança: ‘O sentido
artístico do educador e professor dá alma à escola.
Permite ser alegre nas coisas sérias e ter caráter na
alegria. Pela inteligência, a natureza é somente compreendida;
pela sensibilidade artística ela é vivenciada.’"
(p. 133.)
Seria talvez interessante acrescentar que existem estudos estatísticos
mostrando os excelentes resultados da Pedagoga Waldorf. Um deles é
o trabalho
de Wanda Ribeiro e Juan Pablo de Jesus Pereira, que entrevistaram
mais de 100 ex-alunos da Escola Waldorf Rudolf Steiner de São
Paulo; um outro é um trabalho
mais extenso feito nos Estados Unidos.
2.9 Igualmente não tenho maiores reparos quanto ao restante
do capítulo, que também encara a Pedagogia Waldorf muito
positivamente. Para finalizar, duas observações a um trecho
do último parágrafo: "[...] o criador da escola Waldorf,
no seu anseio de cristificação do mundo, conseguiu êxito
pelo menos em uma área: nas escolas em que seus impulsos pedagógicos
diariamente determinam a vida comum das crianças e dos seus educadores."
Deve-se entender a palavra "cristificação"
de modo adequado, e distingui-la de todas as outras "cristificações"
correntes. No sentido da Antroposofia, essa palavra significa, de modo
geral, desenvolver: a dignidade, a individualidade e a liberdade do
ser humano; o irrestrito respeito mútuo e pela natureza; o amor
altruísta; o reconhecimento de que existe uma realidade não-física
nos seres humanos e no universo que vai desabrochando durante toda a
vida; uma capacidade de investigar objetivamente essa realidade; o conhecimento
da distinção essencial entre seres humanos e animais;
o reconhecimento da existência de um sentido superior para a vida
humana e para a natureza; o reconhecimento de que, no passado, a humanidade
estava em contato com os mundos espirituais, que caiu na matéria
mas dela deve erguer-se novamente, sem perder tudo o que foi conquistado;
o reconhecimento de que as antigas tradições míticas
e religiosas são imagens para realidades que podem ser investigadas.
Finalmente, o êxito de Rudolf Steiner e sua Antroposofia não
se deu somente na educação: também ocorreu na medicina
e nas terapias antroposóficas, na Pedagogia
Curativa, na Agricultura
Biodinâmica, na Arquitetura
Orgânica, na organização
social e empresarial, nas artes
em geral e na nova
arte da Euritmia.
3. Conclusões
Ao contrário do capítulo "Rudolf Steiner 1961-1925"
do livro 50 Grandes Educadores: de Confúcio a Dewey, citado
na Introdução acima, onde o tom é francamente negativo
e sobre o qual tive que fazer inúmeros reparos, parece-me que
o balanço do capítulo de März é bastante positivo.
Tem-se a impressão, pelo que ele escreveu, principalmente nos
últimos parágrafos, que pelo menos ele visitou algumas
escolas Waldorf, ou leu trabalhos objetivos sobre a Pedagogia Waldorf,
e não obras dos detratores da mesma (como em qualquer atividade
humana, sempre há os que são contra).
É uma pena que os meios acadêmicos continuem a ignorar
a realidade da Pedagogia Waldorf e seus excelentes resultados. Não
tenho esperança de que isso mude, pois eles não deixarão
de ser, a médio prazo, dominados por materialismo preconceituoso
e, portanto, contrário a uma atitude genuinamente científica
(a esse respeito, ver meu artigo "Ciência,
religião e espiritualidade").
Agradecimento
Agradeço a Anderson Paulino ter-me chamado a atenção
sobre o capítulo do livro de März, e solicitado que eu desse
um parecer sobre ele. É muito prazeroso trabalhar sabendo-se
que o resultado está sendo aguardado.