UM ANTÍDOTO CONTRA O PENSAMENTO COMPUTACIONAL

Valdemar W. Setzer
www.ime.usp.br/~vwsetzer

Este ensaio, de abril de 2006, é uma tradução do original em inglês, escrito em 1996, disponível em meu site, onde se encontra também a versão publicada na revista eletrônica Netfuture. Introduzi aqui muitas ampliações em relação àquele original. Última revisão: 2/2/14.

Recomendo que os leitores não interrompam a leitura para seguir os vínculos (links); ao final da leiutura, escolham um dos vínculos para segui-lo, concentrando-se então da mesma maneira no texto correspondente.

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As máquinas que não são computadores ou, mais precisamente, não são máquinas digitais, são máquinas concretas, isto é, produzem algo físico. Sua funcionalidade pode ser resumida como artefatos que transformam, transportam ou armazenam energia ou matéria. Por outro lado, computadores fazem isso, mas com dados. Estes são meras seqüências de símbolos quantificados ou quantificáveis, representações de pensamentos, portanto não têm consistência física intrínseca. Dependendo da pessoa que recebe dados, se esta consegue dar-lhes algum significado, eles podem ser absorvidos como informação. (Para considerações sobre a diferença entre dado e informação, veja-se meu artigo "Dado, informação, conhecimento e competência", em meu livro Meios Eletrônicos e Educação: uma visão alternativa, São Paulo: Ed. Escrituras, 3a. ed. 2005, ou o artigo em meu site (a versão em inglês é mais atual). Obviamente, dados são representados fisicamente, mas essa representação não é essencial. Todos os dados ou foram pensados antes de serem representados, ou são frutos de processamentos ou medidas feitas por máquinas ou computadores, previamente planejados e portanto pensados. O mesmo aplica-se aos programas de computadores, que também foram pensados ao serem programados, e que também são, essencialmente, dados.

O que um computador faz quando interpreta um programa (a rigor, é incorreto dizer que um computador "executa" um programa) é simular exatamente os pensamentos que o programador teve ao programá-lo. Dado um programa e seus dados de entrada, a sua interpretação pelo computador pode ser simulada mentalmente ou com lápis e papel. Estou aqui desprezando o caso de um computador que controla outras máquinas concretas, como no caso, por exemplo, de um torno com "controle numérico"; também não estou considerando restrições de tempo ou erros feitos por uma pessoa. Aquela simulação feita pelo computador não ocorre com outras máquinas: simular uma bicicleta com papel e lápis não leva a pessoa de um lugar para outro. Simular as ações e reações químicas produzidas por um extintor não apaga nenhum incêndio.

Computadores não podem ser empregados como máquinas de transporte, o resultado de seu processamento não pode ser usado como alimento ou vestuário, eles não produzem nada de real. Assim, os computadores são completamente alienados da realidade (tomada em um sentido ingênuo): ao contrário das outras máquinas não digitais que, como vimos, são concretas, eles são máquinas abstratas, matemáticas, lógico-simbólicas.

Para produzir um programa, um programador deve pensar de uma maneira muito especial, usando uma linguagem também muito especial, alguma inguagem de programação. Essa linguaguem é absolutamente formal, sendo expressa por meio de elementos lógico-simbólicos. Ela pode ser completamente descrita em termos matemáticos, usando o que se denomina de "gramática formal" e de "semântica formal". Este último é um nome errado, pois não há um significado associado ao "mundo real" por detrás dos comandos ou instruções de um programa. De fato, a "semântica formal" deve ser necessariamente descrita em termos de regras de formação e de interpretação, que são puramente simbólico-estruturais, isto é, gramaticais. O significado é uma interpretação lógica dos comandos ou instruções. Assim, o computador tem uma outra característica que deve ser adicionada às descritas no parágrafo anterior: ele é uma máquina sintática. Cada dado ou trecho de programa deve ser expresso de uma maneira puramente estrutural para poder ser representado dentro da máquina. (A propósito, considero a Lógica Matemática como sendo puramente sintática, e especialistas em Lógica confirmaram-me isso.) Portanto, o pobre programador é forçado a pensar de uma maneira muito restrita, tendo que descobrir como expressar por meio de comandos ou instruções de uma linguagem de programação as transformações, transportes e armazenamentos de dados que ele deseja que o computador execute.

Vejamos um exemplo que é relativamente antigo, da Linguística Computacional. Durante a década de 1960, alguns lingüistas decidiram usar o computador para descobrir estilos literários ou características da maneira de escrever de cada autor. Eles reduziram o estilo a certas propriedades numéricas ou estatísticas, como por exemplo quantas vezes palavras como "guerra", "paz", "amor", "ódio", etc. apareciam em um texto. Contaram também a "distância", em número de palavras, que ocorria em média entre duas palavras-chave, por exemplo "pessoa" e "amor", e assim por diante. Obviamente, não usaram como critério a atenção, a tensão ou a alegria que um texto produz em seus leitores – estes sentimentos não podem ser levados em conta por um computador, a menos que sejam quantificados (há uma ciência chamada Psicometria que lida com quantificação de sentimentos, desejos, etc.). Aqui vemos uma outra característica dos computadores: eles empobrecem qualquer coisa que processam, em termos de conteúdo. Estou aqui deixando de lado transformações de forma, tais como alinhamento de textos, definição de fontes das letras, bem como o simples armazenamento do que já está quantificado, como letras de um texto, fotografias digitalizadas, etc. Todo isso não entra na minha noção de "empobrecimento" em relação à realidade, resultante da representação de algo em forma de dados e do seu processamento por um computador.

Caracterizo o tipo de pensamento formal e alienado da realidade, que denomino de "pensamento computacional", necessariamente exercido pelos programadores, como sendo um "pensamento poluído". Ele é um pensamento morto, abstrato, não tendo nada a ver com a realidade. Caracteriza-se pelo fato de o programador ser obrigado a gerar pensamentos tais que ele os possa expressar como combinação de comandos de uma linguagem de programação, isto é, devem ser pensamentos que ele consiga introduzir dentro da máquina. Devido a isso, também denomino-os de "pensamentos maquinais". Conjeturo que esses pensamentos são uma das principais causas do que é denominado "síndrome do programador": tensão nervosa, insônia, falta de apetite, dificuldades no relacionamento social e outras misérias.

Mas o pensamento computacional ou maquinal não é propriedade exclusivo de programadores, onde ele está claramente presente. Qualquer usuário de um computador é obrigado a sofrê-lo. De fato, toda a vez que um usuário aciona um ícone, escolhe uma alternativa em um menu, ou dá um comando em forma de texto ou combinação de teclas, ele está tendo que pensar computacionalmente e está usando uma linguagem estritamente formal, extremamente restrita. Isso é devido ao fato de que, ao dar-se ao computador qualquer comando, o programa executa uma ou mais funções estritamente matemáticas de manipulação de símbolos. Portanto, o usuário não percebe, mas está tendo que exercer um pensamento matemático, lógico-simbólico, algorítmico, como o programador. O fato de esse pensamento ser muito restrito, "quadrado", é devido à necessidade de se escolher em cada instante um dos comandos disponíveis na linguagem de comandos do software sendo executado; qualquer comando que não seja um desses disponíveis, ou escrito fora das regras de formação de comandos imposta pela linguagem do software, não será reconhecido e dará um erro. Por exemplo, se alguém resolve escrever um poema concreto em forma de texto triangular, não poderá utilizar um dos comandos icônicos de alinhamento disponíveis no editor de texto (alinhamentos à esquerda, direita, centrado ou nas duas margens verticais): terá que forçar mudanças de linha tais que as linhas formem um triângulo. O resultado é que as pessoas enquadram seu pensamento e acabam usando somente os alinhamentos disponíveis nos citados ícones. Além disso, a seqüência de uso dos comandos deve ser matematicamente planejada. Por exemplo, não é possível armazenar um texto em uma unidade de armazenamento permanente, e depois alterá-lo: é sempre necessário primeiro alterá-lo e depois armazená-lo.

A propósito, parece-me que uma das principais razões de crianças e jovens que usam o computador passarem, em geral, a ter pior rendimento escolar, é justamente o fato de serem obrigadas a usar um pensamento computacional antes que seu intelecto esteja maduro para isso. A respeito dos problemas educacionais causados pelo computador, bem como pelos outros meios eletrônicos, ver vários artigos em meu site, especialmente 'Considerações sobre o projeto 'um laptop por criança'".

Não sou da opinião que programadores ou usuários profissionais de computadores devem deixar sua profissão, a menos de casos extremos: se há um emprego para eles, a sociedade necessita-os. A questão é como balancear um tal pensamento unilateral, "poluíco", para se ter uma vida sadia.

Ao dar palestras intituladas "A Miséria da Computação" mencionando, entre outros, o problema da imposição do pensamento computacional, pergunto aos ouvintes qual seria um antídoto, uma terapia para contrabalançar o pensamento computacional. Algumas pessoas respondem: praticar esportes. Acho que atividades esportivas são essenciais, e posso garantir por experiência própria que, mesmo na velhice, pode-se ser um esportista, isto é, praticar esportes regularmente todos os dias, e que os benefícios em termos de se melhorar a capacidade física e de sentir bem são extraordinários. Mas não é uma atividade que "limpe", "higienize" o pensamento. O que os esportes em geral fazem é abafar os pensamentos conscientes, ou até mesmo eliminá-los, devido à necessária rapidez nos movimentos dos membros, já que todo pensamento consciente é lento, isto é, esses movimentos devem ser automáticos e não podem ser planejados calmamente. Por exemplo, eu não consigo pensar enquanto corro, nado, faço musculação (como vou contar os movimentos, fazer força e pensar ao mesmo tempo em algo que não sejam as ações que tenho que fazer?) ou jogo tênis (nesse caso, tipicamente, quanto mais se pensa pior se joga; aliás, deixei de jogar tênis aos 71 anos, pois descobri que esportes com bola não são para idosos, pois em geral os movimentos não são controlados). Mas consigo pensar enquanto faço o exercício de andar, mesmo com uma certa rapidez – um de meus esportes é fazer Nordic Walking, andar com bastões inclinados empurrando-os para trás e assim exercitando também a parte superior do corpo. Ao andar, a cabeça fica praticamente parada em relação ao plano horizontal e não é necessário ficar movendo-a lateralmente, condições essenciais para se ter a calma necessária para um pensamento consciente.

A questão não é contrabalançar o pensamento computacional "poluído", morto, deixando de pensar. O que é necessário é exercer um pensamento contrário, "vivo", isto é, fazer-se uma verdadeira "higiene mental".

Considero atividades artísticas como o antídoto ideal para o pensamento computacional exercido por programadores e usuários intensos de computadores. Quando se pratica ativamente alguma atividade artística, não se pensa de uma fora abstrata, formal, bem definida. Nem mesmo se pensa de maneira puramente conceitual. Obviamente, não estou me referindo aqui à arte feita com o computador – a esse respeito, veja-se meu artigo "O computador como instrumento de anti-arte", no livro citado ou em meu site. Nas atividades artísticas, há uma atividade mental de pensamentos, intimamente ligada com sentimentos, inclusive os estéticos. Para produzir uma verdadeira obra artística, não se pode planejar de antemão o que se fará: a improvisação, a observação constante dos resultados e os sentimentos que se têm durante essa produção são essenciais para se prosseguir. Se uma obra de arte é totalmente planejada e prevista de antemão, ela torna-se ciência. Para Goethe, tanto a ciência como a arte tinham a mesma origem – o mundo platônico das idéias –, e ambas revelavam um certo tipo de conhecimento: a primeira por meio de conceitos, a segunda por meio de objetos reais. Em uma palestra dada em Oslo em 20/5/1920, Rudolf Steiner, que editou e comentou as obras científicas de Goethe para a Edição Kuerschner, disse (veja-se seu The Arts and their Mission, Anthroposophic Press, N. York 1964) "O que leva à arte é um sentir espiritual e observação do mundo, em lugar de um pensar cerebral..." e "Quanto mais uma pessoa entrega-se a pensamentos abstratos, mais se torna um estranho para a arte. Pois a arte deseja o que vive e nele tem seu centro."

Os leitores poderiam perguntar: "Dentre todas as formas de atividades artísticas, há alguma que seja a mais adequada para a infeliz pessoa que vive programando computadores ou usando-os intensamente?" Penso que qualquer arte feita ativamente ajudaria a produzir interiormente o necessário equilíbrio descrito acima. Tomemos inicialmente o teatro. Ele desenvolve uma sensibilidade social muito acurada, pois o ator tem que prestar atenção aos outros atores, e fazer muitas improvisações – afinal, não é possível planejar, durante os ensaios, todos os movimentos e intonações de voz com precisão, sob risco de a peça perder a espontaneidade e a realidade. Além disso, a peça deve fluir de acordo com a maneira com que os atores sentem o público. Mas o principal da arte teatral está nos ensaios, onde os atores irão interpretar o texto segundo o que é denominado de subtexto, isto é, a maneira como sentem que ele deve ser. Assisti a uma extraordinária demonstração de leitura dramática de uma peça de Harold Pinter (prêmio Nobel de literatura), por Jolanda Gentilezza e Luciano Chirolli, em que um casal relembra os momentos em que houve o primeiro encontro de ambos. Jolanda e Luciano leram e encenaram a peça como se a lembrança fosse extremamente amorosa; chegando ao fim, voltaram para o começo sem pausa, mas agora lendo o mesmo texto como se o casal estivesse brigando violentamente! Aí ficou claríssimo como o subtexto é o que há de mais importante em uma peça. Em seguida, os dois e mais uma estudante da Escola de Arte Dramática da USP leram e representaram uma peça em que as palavras não faziam o menor sentido, algo como "Eu torrei o não dormia" em lugar de "Eu fiz o que não devia". Pois a ação, os gestos e a intonação da voz foram suficientes para perceber-se que se tratava de um triângulo amoroso e o drama que se passava entre os personagens. Novamente, o subtexto foi o mais importante. Esses exemplos mostram que no teatro, principalmente durante o ensaio, os atores estão exercendo um alto grau de pensamento não formal, dando vazão principalmente a seus sentimentos.

O aspecto de sensibilidade social, aliado a essa questão do pensamento não formal e dos sentimentos envolvidos na atividade teatral, faz com que o teatro seja um excelente antídoto para o pensamento computacional, contrastando com a rigidez que o computador impõe nos pensamentos, a falta de sentimentos e de socialização ligados com o uso individual, isolado, dessa máquina. O sentimento principal que existe no seu uso é o de frustração de não se conseguir fazer com ele algo que se tem certeza de conseguir, como por exemplo dar-lhe um comando adequado ou atingir uma determinada página da Internet que se tem certeza que existe. Isso leva a um estado de excitação puramente intelectual, que acaba por prender o usuário ou programador à máquina, de tal modo que ele não consegue mais deixar de ficar tentando até conseguir o que queria ou até a exaustão total. Foi baseado nesses fatores que introduzi com sucesso no Bacharelado em Ciência da Computação de meu Instituto uma disciplina de leitura dramática, que tem sido excepcionalmente dada justamente pela citada Jolanda Gentilezza (ver o artigo "Teatro na Matemática", em meu site). Para se fazer uma disciplina de leitura dramática, nada mais é necessário do que um bom instrutor, pois todo o resto (sala de aula, copiadora) já existem em um ambiente acadêmico.

Uma outra arte, que não exige nada além de lápis e papel, é escrever poesias; nesse caso, é claro que empregam-se pensamentos, mas sem nenhuma restrição além de serem formados por palavras. Nem mesmo as regras gramaticais precisam ser seguidas. Um aspecto fundamental nesse exercício é que os poemas evoquem sentimentos. Qualquer pessoa pode escrever poemas, basta começar e treinar com certa constância. Obviamente, ler poesia é excelente e ajuda a desenvolver a criatividade nessa atividade. É interessante observar que a poesia é a arte mais "elevada" e subjetiva (a mais concreta e objetiva é a arquitetura).

Como eu disse, a atividade teatral é excelente como antídoto contra o pensamento computacional, mas nesse sentido tem três pequenos defeitos: exige a companhia de outras pessoas, obriga o ator a se restringir ao texto e, em geral, não permite que ele crie uma calma interior. Uma outra arte que também tem restrições é a escultura, que lida com um material muito terreno, com grandes limitações na possibilidade de se o trabalhar – mas que permite a calma interior. Ela é excelente para alguém que é muito "fluido", necessitando de forma interior, mas nosso programador ou usuário intenso de computadores já tem justamente forma demais em seu pensamento, literalmente "quadrado", rígido. Nesse sentido, considero a pintura com aquarela em papel molhado a atividade artística ideal como o antídoto procurado. Nessa forma de pintura, usam-se as cores transparentes, isto é, pouco rígidas, da aquarela, e é muito difícil produzir contornos precisos, pois a tinta espalha-se no papel. É sempre possível, até certa medida, mudar o que já se pintou, sobrepondo as cores que então se combinam, sentindo-se se já foi obtido um resultado satisfatório – que nunca será o definitivo, pois quando a tinta seca muda um pouco de tonalidade. É interessante usar o método empregado nas escolas Waldorf, usando-se apenas as cores-pigmento básicas amarelo, vermelho e azul, duas tonalidades de cada uma (por exemplo, azul marinho e azul da Prússia). Com isso, é necessário misturar cores em proporções diversas (que, obviamente, não devem ser calculadas!) para se obterem as várias tonalidades de verde, violeta, marrom, cinza, etc. Podem-se misturá-las num ladrilho branco, ou diretamente no papel, o que produz efeitos inesperados, ajudando o efeito terapêutico, sempre cuidando para se passar o pincel delicadamente pois senão machuca-se o papel produzindo-se fiapos do mesmo que estragam a pintura (um bom papel para aquarela ajuda muito). É óbvio que, em lugar de copiar quadros, o melhor é improvisar formas, que não precisam imitar nada do mundo real, se a pessoa tem dificuldade em fazê-lo. No entanto, durante o processo de aprendizado a cópia de quadros de grandes pintores ajuda enormemente o desenvolvimento de técnica e a capacidade de pintar quadros figurativos. É muito importante, ao pintar, criar uma calma interior, trabalhando-se com muita paciência até chegar-se a algum resultado satisfatório; essa calma e essa paciência são justamente o que, em geral, programadores e usuários intensos dos computadores não têm. Aos leitores que gostariam de ter aulas sobre pintura e escultura com fins terapêuticos, recomendo, por experiência própria, procurarem a orientação de alguém que faça Terapia Artística (ver em www.sab.org.br, seção Medicina e terapias antroposóficas).

Para caracterizar a minha recomendação de um antídoto que contraste com a rigidez mental imposta pelo computador, menciono uma atividade artesanal que é excelente para produzir uma calma interior: fazer tricô (para os homens também!). Só que aí a rigidez de se colocar cada ponto ao lado do outro, contar os pontos em cada carreira, etc., não têm o mesmo efeito do antídoto procurado como o teatro e a pintura, sendo esta a menos rígida das artes plásticas.

Além do antídoto, eu poderia dar algumas recomendações adicionais para programadores. Por exemplo, seria interessante que eles abandonassem o costume corrente de programar on-line, isto é, usando diretamente o computador. Isso significa voltar ao que se fazia quando não havia microcomputadores pessoais, ou terminais ligados a main frames: programava-se com lápis e papel, e só depois de ter o programa razoavelmente desenvolvido e bem pensado é que se o introduzia na máquina. Como demorava muito para se poder testar um programa e obter os resultados, ele tinha que ser cuidadosamente planejado, desenvolvido e simulado antes de se o colocar dentro da máquina. É importantíssimo os programadores reconhecerem em suas próprias atitudes que a programação on-line produz indisciplina, e da pior espécie, a mental. Eles podem verificar isso observando como, durante a fase de testes (que quase sempre não é planejada de antemão, como deveria ter sido o caso) fazem várias correções simultâneas até que o programa comece a funcionar – e não saberão, afinal, qual delas fez com que os resultados passassem a ser os esperados (o que não garante que um programa está correto para quaisquer dados de entrada; garante apenas que, para os dados testados, ele funciona corretamente). É realmente fantástico que, na quase totalidade dos programas do mundo, ninguém sabe por que realmente funcionam direito – e é por isso que ocorrem tantas panes durante as execuções dos mesmos!

Uma amostra adicional da indisciplina na programação é a falta de documentação adequada dos programas. Ocorre que o computador não usa a documentação de um programa durante sua execução, de modo que ela não é, intrinsecamente, necessária. Mesmo quando uma documentação inicial é bem feita, caso raríssimo entre programadores, depois de se ter feito algumas alterações no programa, em geral sem que se tenha alterado a documentação original, esta já não serve de grande coisa. A propósito, uma das "leis" de Setzer é: "O computador é a única máquina com a qual se podem fazer coisas mal feitas que funcionam." Pois bem, todas as atividades artísticas requerem disciplina, pois em caso contrário nunca se obterá um resultado satisfatório. Aí está mais uma importante propriedade terapêutica dessas atividades.

Uma recomendação óbvia que não se aplica somente a programadores, mas também a usuários constantes de computadores, é que conscientemente façam intervalos no uso da máquina. Provavelmente dever-se-ia fazer um intervalo de uns 5 min a cada meia hora de uso do computador. Nesse intervalo, seria interessante fazer uma atividade que contrabalance a rigidez física e pensamento quadrado impostos por ele. Por exemplo, como já citei, escrever ou mesmo ler poesias (o que exige uma grande imaginação e ativação dos sentimentos), observar obras de arte em livros (se alguém tentar fazê-lo com obras de grandes pintores, ficará espantado com os detalhes que irão aparecendo à medida que se repete o exercício com uma mesma prancha), andar um pouco, conversar com outras pessoas etc. Nas duas primeiras sugestões, note-se a necessidade de se fazer um esforço de concentração mental e de calma interior, o que é excelente para contrabalançar a terrível fragmentação das impressões visuais e dos pensamentos produzida pelos computadores, e a excitação que eles induzem. Em meu artigo "O que a Internet está fazendo com nossas mentes?" dou várias sugestões de atividades desse tipo.

O antídoto terá certamente principiado a funcionar se um programador ou usuário constante começa a reconhecer a verdade da seguinte frase: "A Natureza não é um cientista, é um artista." Para compreendê-la, é necessário complementar o conhecimento formal, científico, que usa um pensamento computacional, com a habilidade de entrar artisticamente em contato com uma realidade que transcende nossos sentidos e as explicações científicas fornecidas pelo paradigma atual de fazer ciência – e que tornou a ciência literalmente desumana. Em outras palavras, necessitamos de uma nova ciência, mais humana e impregnada de pensamentos vivos, qualitativos. Felizmente, esse tipo de ciência existe desde que Goethe estabeleceu seu método científico; infelizmente, seu enfoque foi ignorado, com as conseqüentes misérias produzidas pela ciência e sua filha, a técnologia, como por exemplo a poluição física e a mental. Acontece que o computador é o pináculo da realização científica moderna; é o rei das máquinas. Seu uso intenso e antes da idade adequada é muito perigoso do ponto de vista mental, o que acaba também produzindo distúrbios físicos e fisiológicos, e exige uma contrapartida. Espero que os leitores, tanto programadores como usuários intensos, pensem nestas reflexões, examinem-se a si próprios e tenham a coragem e paciência para tentarem o antídoto aqui proposto.