COMENTÁRIOS SOBRE O ARTIGO DE FERNANDO REINACH
"COMO O CÉREBRO GERA A MENTE"
Valdemar W. Setzer
Depto. de Ciência da Computação, IME-USP
www.ime.usp.br/~vwsetzer
Original de 19/11/17; esta versão: 22/11/17
Fernando Reinach mantém uma coluna no jornal "O Estado de
São Paulo" todos os sábados, que leio sempre com grande
interesse, pois ele sempre traz algo de novo sobre pesquisas científicas
recentes, em geral baseando-se em artigos publicados em revistas científicas
de renome. Este meu artigo comenta o seu artigo "Como o cérebro
gera a mente", da p. A22 da edição de 18/11/17, cuja
cópia anexo depois destes meus comentários.
Meu último comentário em e-mail pessoal a ele foi
em 3/12/16 a respeito do sono; eu aleguei que se a ciência não
mudar seus paradigmas, jamais teremos uma explicação física
completa sobre o sono. Não recebi resposta. Anteriormente eu já
havia comentado a ele um artigo sobre o cérebro, e se me lembro
bem recebi como resposta algo como "É, essa questão
é muito complexa."
Desta vez resolvi escrever uma resenha do artigo mencionado acima, que
novamente aborda o cérebro, pois não concordo com várias
das afirmações que ele faz. Vou inseri-la em meu site
e enviar a ele, com o compromisso de anexar qualquer resposta que ele
dê e que queira ver acompanhando este meu artigo. Aproveito para
expressar várias de minhas ideias a respeito dos temas abordados.
Os itens numerados a seguir correspondem a alguns trechos sequenciais
do citado artigo.
1. "[...] seu olho foi apontado para uma criança,
a imagem foi captada e enviada para o cérebro, que, após
comparar essa imagem com o que existia na memória, concluiu que
era uma criança e que sua expressão facial era um sorriso."
Isso requer vários reparos. Em primeiro lugar, não se tem
a mínima ideia de como uma percepção visual, feita
por nossos sentidos ópticos, é enviada ao cérebro.
Tentou-se descobrir a imagem (invertida, formada na retina) sendo enviada
pelos nervos ópticos para o cérebro: o que se detectou foi
ruído. De fato, as imagens são divididas em quadrantes em
cada olho, depois os nervos que saem das retinas cruzam misturando tudo.
Por outro lado, se não me falha a memória, existem 7 áreas
distintas no cérebro que são envolvidas na visão,
por exemplo detectando movimentos no campo visual, memória visual
etc. Como dessas 7 áreas vemos uma só imagem? Não
se sabe. Isso quanto à "imagem ... foi enviada para o cérebro".
2. "[...] após comparar essa imagem com o que existia
na memória, [o cérebro] concluiu que era uma criança
e que sua expressão facial era um sorriso."
Sinto muito, Reinach, mas não se pode dizer que o cérebro
comparou com o que existia na memória, simplesmente por que não
se sabe como seria esse processo de comparação e como a
memória funciona. Não se sabe nem algo extremamente simples
como a seguinte representação gráfica do dois: 2.
Não se sabe onde ela está no cérebro e como é
consultada.
Agora vou permitir-me uma digressão filosófica. Tomemos
todas as possíveis representações simbólicas
do 2, como por exemplo 2, II, ii, .., :, !!, ??, dois, two, dos, due,
deux, zwei, дBa ("dva", em russo), שתיים
(chtaim, em hebraico), duas pessoas, animais ou objetos etc. Agora,
pensemos no que há de comum entre todas essas representações:
é o conceito puro do dois, que não tem representação
simbólica, e com o qual podemos trabalhar mentalmente e na matemática,
e ao qual associamos toda representação que encontramos
do dois. Ora, se esse conceito puro não tem representação
simbólica, ele não pode estar gravado fisicamente no cérebro,
isto é, conceitos não estão gravados no cérebro
e nem em outra parte física do organismo.
Portanto, se associamos uma representação simbólica
ou auditiva do dois ao conceito puro do dois, também associamos
as percepções da criança e do seu sorriso aos conceitos
correspondentes, que podem não estar (e na minha concepção
não estão) na memória.
Há uma evidência aceita hoje por muitos neurocientistas:
aparentemente, nossa memória é ilimitada. Nunca alguém
quis memorizar um número de telefone ou o nome de uma pessoa, ou
uma poesia, e teve a sensação de que "não havia
mais lugar para isso." Ora, se a memória é ilimitada,
infinita, ela não pode ser física. Por exemplo, mesmo contando
dispositivos externos de armazenamento, qualquer computador tem uma capacidade
finita de armazenar dados.
Falando de memória, é muito curioso que pessoas bem idosas
começam a lembrar de fatos de sua infância que haviam esquecido,
ao passo que não conseguem lembrar, por exemplo, o que vieram buscar
no recinto no qual acabaram de entrar. Aliás, simplesmente o fato
de se esquecer algo, não se conseguir lembrar e de repente ter
essa lembrança, indica que a memória não pode ser
física. Obviamente, um dispositivo de armazenamento de dados pode
ser mais lento ou rápido do que outro, mas não é
essa a questão aqui: aparentemente algo estava totalmente ausente
da memória e reapareceu.
Também não estou de acordo com a expressão "[o
cérebro] concluiu". Não se pode afirmar isso cientificamente.
Se for detectada alguma atividade cerebral justamente nessa conclusão,
o máximo que se pode afirmar cientificamente é que o cérebro
participou dessa atividade. Enquanto não se conhecer todo
o processo cerebral dessa "conclusão", não se
pode dizer que é o cérebro que a executa.
Usei a expressão "participou" pois se há uma
lesão cerebral perdem-se eventualmente algumas funções
mentais, por exemplo certas memórias, certas sensações,
certos sentimentos etc. Novamente, aqui o correto cientificamente é
dizer que o cérebro participa desses processos, e uma lesão
pode interrompê-los ou pelo menos impedir que tenhamos consciência
desses mesmos processos. É devida a Rudolf Steiner a ideia de que
o cérebro físico reflete as atividades mentais para a consciência,
como um espelho. Sem ele simplesmente não as percebemos
o que não significa que algumas delas não existam sem o
cérebro, do mesmo modo que ao se quebrar um espelho não
podemos mais ver nosso rosto, que não deixa de continuar existindo.
É interessante notar que "refletir" é um sinônimo
de "pensar", talvez indicando uma profunda sabedoria da linguagem
natural. Voltarei à consciência quando ela aparecer no artigo
do Reinach, no próximo item (3).
Portanto, já aqui posso expor por que discordo mesmo do título
do artigo de Reinach: não se pode afirmar cientificamente que o
"cérebro gera a mente." O máximo que se pode dizer
é que ele participa das atividades mentais, como por exemplo
pensar, sentir (ter sensações e ter sentimentos vou caracterizá-los
posteriormente, no item 8), querer ou vontade (desde instintos até
decisões conscientes), memória, consciência e autoconsciência.
3. "Você teve consciência de que viu uma criança
sorrindo e ficou feliz."
Aqui há a primeira citação de "consciência."
Acontece que não há a mínima noção
científica de como temos consciência. Esse é considerado
um "problema difícil" ("hard") da ciência.
Inclusive, é muito difícil caracterizar o que é a
consciência, apesar de a vivenciarmos claramente.
É interessante notar que os animais têm consciência.
Por exemplo, se cutucamos um cachorro com uma agulha, claramente ele sente
dor pois reage, isto é, teve consciência da dor. Mas só
o ser humano tem autoconsciência. Existem experiências mostrando
que certos animais se reconhecem em um espelho. Mas para mim isso não
é autoconsciência; posso imaginar que é uma reação
automática associando, por exemplo, um movimento próprio
com o movimento da imagem (não sei se as experiências envolveram
animais parados). Claramente, o ser humano pode ter consciência
do que está pensando; acho que esse é o suprassumo da autoconsciência.
Ou decidir fazer um movimento, por exemplo com um braço, e verificar
que realmente o está fazendo. Ou sentir uma saudade de algo ou
alguém e vivenciar essa sensação.
Uma observação cuidadosa pode mostrar que os animais não
têm memória consciente, consultável conscientemente,
como os seres humanos. Por exemplo, um cachorro pode sentir falta do dono,
mas isso só ocorre se ele é incentivado por algo que o faz
sentir essa falta. Por exemplo, cheirar algo do dono que não está
presente e sentir falta do carinho que ele faz, ou sentir fome e então
sentir a falta do dono que lhe dá comida.
4. "A primeira descrição é nossa percepção
consciente do que ocorre em nossa mente e a segunda descrição
reflete nosso conhecimento científico sobre como funciona o sistema
visual e o processamento de informação no nosso cérebro."
De início, há dois pontos aqui. (1) Podemos sorrir ao ver
uma criança sorrir sem termos consciência disso; pode ser
muito bem uma reação involuntária nossa. (2) A "nossa
percepção consciente" é na verdade a autoconsciência
que citei acima.
De qualquer modo, é interessantíssimo que aqui Reinach
faz uma clara distinção entre mente e cérebro. Em
nenhum lugar do artigo ele identifica esses dois. Como foi colocado no
título, para ele os processos mentais pelo menos os que ele aborda
são gerados pelo cérebro, isto é, a mente
não é algo existente por si, mas é produzida pelo
cérebro, é um resultado da atividade cerebral. Portanto,
a mente deve necessariamente constituir-se de processos físicos.
Analogamente ao fato de o fígado secretar bile, o cérebro
deve secretar os pensamentos e as outras atividades mentais.
Voltando ao trecho, não temos conhecimento científico suficiente
sobre como funciona o sistema visual. Como citei acima, não se
tem a mínima ideia de como se forma uma imagem interior, a representação
mental de algo que vemos, nem mesmo como ela é novamente invertida
a partir da imagem invertida que se forma na retina, para vermos tudo
de cabeça para cima. Não estou seguro, mas acho que não
se conhece a formação de uma imagem fisicamente no cérebro
a partir de algo percebido visualmente.
Uma palavra sobre "processamento de informação".
Eu jamais uso a expressão de que o cérebro "processa"
algo, simplesmente porque isso remete ao processamento de dados feito
pelos computadores. Aliás, computadores não processam informações,
processam dados. Um dado deve necessariamente ter representação
simbólica quantificada ou poder gerar uma tal representação
sem perda, como é o caso de uma foto que é varrida por um
scanner, portanto quantificada, e depois, a partir dessa representação
quantificada, gerar-se outra foto idêntica em precisão à
primeira. Já uma informação requer uma compreensão.
Por exemplo, uma tabela de cidades e temperaturas máximas e mínimas
como são publicadas pelo jornais pode estar numa língua
desconhecida; nesse caso é um simples amontoado de dados: pode-se
não saber que se trata de tabela de cidades e temperaturas, no
entanto podem-se processar esses dados mudando as colunas, mudando as
fontes dos caracteres, achando-se valores médios sem saber o que
significam etc. Mas se alguém traduzir o significado da tabela,
os nomes das cidades e as unidades de temperatura (podem estar em Fahrenheit,
por exemplo), aí a tabela vira informação. Para mais
detalhes, veja-se meu artigo "Dado,
informação, conhecimento e competência" em
meu site.
É muito importante reconhecer-se que se o modelo que se tem do
cérebro é computacional (e talvez Reinach o tenha), então
o cérebro é puramente físico e só pode processar
dados, e não informações. Um computador não
entende absolutamente nada do que está processando. A compreensão
por meio do pensamento, transformando dados em informações,
é uma atividade interior puramente humana. De fato, caracterizo
"compreender" como a associação, feita por meio
do pensamento, de algo percebido sensorialmente com o conceito imanente
ao objeto, ou associar dois ou mais conceitos corretos.
Quando trato do pensar em minhas palestras, sempre pergunto o que os
ouvintes estão percebendo visualmente na entrada da sala onde estão.
Todos dizem invariavelmente "Uma porta." Chamo a atenção
para o fato de que ninguém disse "Uma fralda" ou qualquer
outra coisa. Aí eu mostro que estão todos errados: o que
se percebe visualmente são impulsos luminosos; não se percebe
uma "porta", pois "porta" é um conceito, e
conceitos não se percebem visualmente. O que ocorreu é que
o pensamento fez uma ponte entre a representação mental
do objeto percebido visualmente e o conceito que é subjacente a
ele, no caso "porta". Quando se disse "porta", estava
se reconhecendo que aquela representação mental tinha algo
em comum com todas as portas já vistas ou com a ideia que se fazia
de uma porta. Chegou-se à conclusão que o objeto percebido
pertence à categoria das portas. É importante reconhecer
nesse exemplo que os conceitos são objetivos e universais ninguém
deixou de dizer que o que estão percebendo é uma porta.
Resta fazer uma hipótese fundamental: os conceitos são
ideias, não são entes físicos. Eles estão
no mundo platônico das ideias, que não é físico.
Não estão armazenados de maneira física misteriosa
no cérebro, como supõem muitos, incluindo cientistas.
Para maiores detalhes desse processo e profundas considerações
sobre o pensar, sentir e o querer, recomendo a obra seminal de Rudolf
Steiner, A Filosofia da Liberdade, disponível na Internet
no original alemão (Philosophie der Freiheit) ou em inglês
(Philosophy of Spiritual Activity ou Philosophy of Freedom,
dependendo da tradução).
O mais importante até aqui é que o modelo computacional
do cérebro, usado por muitos neurocientistas e claramente empregado
por Reinach no artigo, é absolutamente indevido. Para se ter um
modelo computacional do cérebro, é necessário conhecer
o código usado e interpretado por ele. A propósito, um computador
não executa um programa em linguagem de máquina, a linguagem
mais básica; ele o interpreta. Cada instrução do
programa é decodificada, interpretada, ativando a execução
de ações por parte dos circuitos da máquina ou por
outros trechos do programa. Pois bem, o código usado pelo cérebro
não é conhecido. Tenho uma conjectura muito forte: ele jamais
será conhecido, pois não existe.
5. "No futuro vai existir uma terceira versão que
descreverá o que aconteceu em termos da atividade dos milhões
de neurônios envolvidos."
Em primeiro lugar, fico admirado com as expressões usadas por
Reinach, como "No futuro vai existir ... que descreverá ..."
Essa é uma afirmação extremamente categórica,
indicando não uma possibilidade, mas uma certeza. Nada, absolutamente
nada no conhecimento científico indica que vai se conhecer o que
acontece em termos da atividade neuronal.
O que se conhece dessa atividade é que certas áreas do
cérebro são mais, ou menos, ativas durante os processos
mentais. Gostaria de fazer aqui mais uma observação. Segundo
as últimas pesquisas, por sinal realizadas na Universidade Federal
do Espírito Santo, temos cerca de 86 bilhões de neurônios,
com pelo menos um trilhão de sinapses, isto é, ligações
entre eles (sinapses são elementos de ligação entre
os axônios que saem dos neurônios e se ligam com as dendrites
que entram nos neurônios). Ocorre que a atividade fundamental dessa
rede é elétrica, e que células, em particular os
neurônios, são eletricamente muito imprecisas. Além
disso, o funcionamento dos neurônios é aparentemente não
determinístico, isto é, com as mesmas entradas um neurônio
às vezes dispara, outras vezes não dispara. Com isso, uma
rede desse tamanho devia gerar ruído, isto é, não
ter um comportamento coerente a menos que um fator externo a ela
controle seu funcionamento, ou que esse funcionamento não tenha
uma ligação direta com as atividades mentais que, em geral,
são bem coerentes.
6. "Descreveremos o que aconteceu nos neurônios que
captam a luz na sua retina, ..."
Reinach não devia ter tanta certeza como suas palavras expressam.
Como já escrevi acima, a formação da representação
mental interior a partir de uma percepção visual é
totalmente desconhecida. Minha conjectura é que jamais será
conhecida se não houver mudanças radicais no paradigma científico.
É interessante notar que o exemplo usado por ele parte de um estímulo
externo, isto é, uma percepção visual. Vamos considerar
um outro caso, um estímulo puramente interno. Por exemplo, o leitor
poderia fazer o seguinte exercício. Mova um dos braços.
Por que o braço moveu-se? Digamos que houve impulsos elétricos
vindos de algum lugar, fazendo com que certas fibras musculares do braço
contraíssem-se e outras se relaxassem. Suponhamos que esse lugar
tenha sido uma área A do cérebro. Ótimo. Mas por
que essa área A emitiu esses impulsos? Digamos que uma outra área
B emitiu alguns impulsos para a área A, ativando-a. E como a área
B emitiu seus impulsos? Será necessário imaginar que houve
outra área C etc. etc. Isso me leva a uma conjectura bastante forte:
Se seguirmos uma sequência de causas e efeitos físicos em
qualquer ação puramente interior de um ser vivo, sempre
se chega a um beco sem saída, ou a uma sequência circular.
Isso vale, por exemplo, para o crescimento dos seres vivos, que se dá
por divisão celular. Por que uma determinada célula não
permaneceu como estava, mas subdividiu-se (meiose ou mitose) ou começou
a morrer (apoptose)? Que a causa tem que ser externa fica muito claro
ao se observar o crescimento simétrico, por exemplo das mãos.
Como elas, partindo de mãozinhas pequeninas de um bebê, gorduchinhas,
com dedinhos meio cônicos, com buraquinhos nas junções
para os dedos, foram crescendo, mudando bastante a forma mas mantendo
uma extraordinária simetria? (Basta comparar uma mão de
qualquer pessoa com a oposta de outra pessoa, para ver como são
muito diferentes.) Obviamente, não existe uma troca de informações
dos tecidos de uma mão à outra para que células que
se subdividiram parem de se subdividir, esperando que as correspondentes
da outra mão se subdividam também, senão a simetria
seria quebrada. É como se houvesse um modelo dinâmico controlando
em cada momento que células vão permanecer como estão,
quais vão começar a se subdividir e quais vão começar
a morrer. Mas o que é um modelo de forma? Um pensamento
e é por isso que reconhecemos as formas, por exemplo das folhas
de uma planta, a partir das quais distinguimos a espécie da planta.
Observando as fantásticas simetrias nos seres vivos, como as dos
desenhos das asas de borboletas, ou as formas com regularidades matemáticas,
como várias flores (margarida, girassol etc.) que formam espirais
em números da sequência de Fibonacci (1, 2, 3, 5, 8, 13,
21 etc.), formulo a hipótese de que um modelo controla o crescimento
dos seres vivos. Esse modelo, que não é físico, é
da natureza do nosso pensamento por isso reconhecemos as formas
com nosso próprio pensamento! Note-se que houve tentativas de explicar
aquelas formas espiraladas que ocorrem também, por exemplo, em
pinhas e abacaxis, buscando-se a otimização do uso do espaço,
mas não se chegou a uma prova nesse sentido.
A justificativa padrão é que quem regula o crescimento
levando a simetrias e a formas que seguem padrões matemáticos
é o DNA. Em primeiro lugar, o que é mais importante para
os processos fisiológicos não é o DNA, e sim as proteínas
geradas a partir do DNA. Em segundo lugar, quais sequências de nucleotídeos
de um DNA vão participar da geração de aminoácidos
em um dado instante? Provavelmente há também aqui um não
determinismo físico. Em terceiro, como as células vivas
são muito imprecisas, um crescimento a partir exclusivamente do
DNA não conservaria o grau de simetria que é observado em
muitos seres vivos, começando pelo ser humano: além das
mãos, por exemplo, tamanho e forma de braços, pernas, orelhas
(estas não param de crescer...), lobos do nariz etc.
7. "[...] ativaram os neurônios que são sua
consciência."
Isto é, para Reinach a consciência é um produto das
atividades neuronais. Gostaria de ter uma conversa com ele para que me
definisse o que é a consciência. Tenho certeza de que ele
não vai conseguir. Ora, se não é possível
definir um certo processo, e sua origem é desconhecida, como se
pode achar que ele pode advir de processos físicos? Existem processos
físicos conhecidos mas de origem desconhecida, como por exemplo
os relâmpagos a diferença de potencial elétrico
e a distância entre as nuvens ou destas para a terra não
é suficiente para romper a barreira do ar, que funciona como um
isolante elétrico. Depois que o raio começa a fluir, aí
a ionização do ar justifica a passagem da corrente elétrica
do relâmpago, mas o seu início ainda é desconhecido
a teoria mais aceita é que raios cósmicos de alta energia
ionizam o ar e daí o raio começa a fluir. No caso da consciência,
tanto o processo físico quanto a sua origem são totalmente
desconhecidos. Qualquer especulação sobre o futuro desses
conhecimentos é indevida.
8. "[...] coloco uma máquina na sua cabeça
que monitora a atividade dos neurônios. Feito isso, viro para você
e digo: pelas atividades neuronais que observei, posso afirmar que você
viu uma criança sorridente e ficou feliz, é isso mesmo?
E você vai dizer, é isso, você foi capaz de 'ler' minha
mente."
Tenho dúvidas quanto a se conseguir detectar que objeto (a criança)
está se vendo. Por outro lado, é possível que se
possam detectar certas atividades cerebrais e dizer o que se passa mais
ou menos na mente de uma pessoa. Por exemplo, suponhamos que ao sentir-se
alegria uma certa área do cérebro é ativada mais
do que outras. Uma tomografia ou Pet Scan detecta hoje áreas mais,
ou menos, ativadas. Fazendo-se uma certa pessoa ter sensações
de alegria e monitorando-se as áreas mais ativadas, pode-se talvez
dizer posteriormente: "Você está alegre." Ou triste,
ou com medo, ou depressivo etc. Mas o que não se pode de modo algum
é sentir a alegria ou medo que o outro está sentindo! Isso
por que sensações (por exemplo, o gosto que se sente ao
comer uma banana) e sentimentos (se se gosta ou não do gosto da
banana ou, mais fundamental, se há simpatia ou antipatia por esse
gosto ou, mais fundamental ainda, se há atração ou
repulsa pelo gosto da banana) são totalmente individuais e subjetivos.
Experimente-se descrever o gosto de uma banana a uma pessoa que jamais
comeu uma; isso é impossível ela jamais sentirá
como é o gosto de uma banana somente a partir de alguma descrição.
Uma pessoa ou máquina pode reconhecer o que a outra está
sentindo, pelas suas expressões, por exemplo faciais, como a reação
ao sorriso da criança mencionado por Reinach. Mas o que é
totalmente impossível é sentir o que o outro está
sentindo. Essa individualidade e subjetividade do sentir levou-me a conjecturar
que máquinas jamais vão ter sensações e sentimentos,
pois elas são universais e objetivas. Em particular, toda máquina
digital suficientemente geral é universal pois pode simular qualquer
outra máquina digital; o projeto e construção de
um dado tipo de máquina analógica, como por exemplo uma
geladeira, é o mesmo para todas as máquinas daquela produção,
isto é, não há individualidade no sentido humano,
que é muito mais ampla do que qualquer individualidade animal.
Obviamenete, todas as máquinas são objetivas. Nesse sentido,
os robôs que têm sentimentos nos filmes Artificial Intelligence
de Spielberg ou The Bicentennial Man" de Columbus são
verdadeiras idiotices. Eles transmitem a ideia de que todas as capacidades
humanas poderão ser transferidas a máquinas. Com isso induz-se
a ideia de que o ser humano é uma máquina, o que o degrada,
em vez de o elevar.
Quanto a "ler" a mente, não se trata nada disso! Trata-se
de detectar e reconhecer atividades neuronais. (A propósito, como
muitas outras usadas na computação, essa expressão
"ler" está errada, pois computadores não leem,
quem lê é o ser humano o que eles fazem é reconhecer
caracteres, imagens, sons ou impulsos.) Além disso, duvido que
se consiga um reconhecimento perfeito de uma atividade mental por meio
do cérebro pois, como já citei no item 5, células
vivas são muito imprecisas.
Há ainda outro fator importante: a plasticidade do cérebro,
descoberta na década de 1970 por M. Merzenich. Devido a ela o cérebro
está em permanente mudança, especialmente nas sinapses,
os pontos de contato entre as fibras que saem dos neurônios (os
axônios) e as fibras que levam às entradas de outros neurônios
(as dendrites). Tanto as vivências da pessoa como seus sentimentos,
pensamentos e ações mudam as sinapses e portanto a topologia,
a forma do cérebro isso deveria dar uma responsabilidade
muito grande ao que uma pessoa pensa; afinal, o pensamento pode ser dominado,
o que não acontece com o sentir e o querer. Um exemplo de plasticidade:
em uma pessoa que ficou cega, áreas do cérebro destinadas
à percepção visual passam a se dedicar a percepções
táteis.
9. "Nesse momento poderemos dizer que o mistério de
como funciona a relação mente-cérebro foi resolvido.
Estamos muito longe, mas temos um plano para chegar lá."
Minha conjectura é que com o atual paradigma da ciência
jamais vai se conhecer o mistério da relação mente-cérebro.
Vão se conhecer certos efeitos mentais sobre o cérebro,
mas não vai se saber como as atividades mentais causam processos
no cérebro.
Estranho muito a afirmação de que temos um "plano
para chegar lá." Como isso é possível, se não
conhecemos o tal de "lá"? Por exemplo, o que é
a consciência, o que são sensações, como formamos
representações mentais etc. Provavelmente Reinach considera
que as experiências neuronais que ele descreve mais para o fim do
artigo constituam esse "plano".
10. "Para descrever o que ocorre a nível neuronal
precisamos de dois tipos de informação. O primeiro é
um mapa dos pontos de contato entre todos os neurônios (as sinapses).
Em seguida, precisamos mapear como cada um desses neurônios se comporta
quando uma criança sorridente aparece na frente dos nossos olhos."
Já citei a plasticidade do cérebro. Com ela, qualquer mapa,
se fosse possível ser construído num tempo muito breve,
valeria apenas para aqueles momentos. Qualquer atividade física
ou mental da pessoa mudaria o mapa.
Como se construiria esse mapa, já que ele é individual?
Até hoje não se fazem pesquisas invasivas no cérebro,
pois isso é antiético. No máximo foram usados macacos,
como os de Miguel Nicolelis (por exemplo, as experiências descritas
no livro Muito além de nosso Eu). A propósito, a
pesquisa dele é meramente empírica; ele implanta uma matriz
de sensores no cérebro de macacos e deriva matematicamente, usando
provavelmente o que se denomina na estatística e na matemática
de "regressão linear múltipla", que certos impulsos
detectados pela matriz correspondem a certos movimentos dos membros dos
macacos, e calcula funções que transformam os impulsos cerebrais
em movimentos das pernas de um robô ou o movimento de um cursor
numa tela. Em suas pesquisas, parece-me que não há compreensão
do porquê e como os impulsos cerebrais detectados são gerados
pelo cérebro. Aliás, é provável que hoje Nicolelis
esteja usando as técnicas de "deep learning" (mais
uma expressão errada; computadores não aprendem, gravam
dados e calculam parâmetros; não se sabe como o ser humano
aprende, senão nossos cursos de medicina durariam talvez 2 anos
e não 6). Essas técnicas permitem que se deem dados de entrada
e se calculem parâmetros que produzam dados de saída correspondentes
ao que se deseja, por exemplo, distinguir um gato de um cachorro. Dando-se
várias fotos como entrada, e especificando-se as saídas
correspondentes (um ou o outro animal), o sistema calcula parâmetros
para depois deduzir com razoável precisão se uma nova foto
ainda não usada é de um gato ou de um cachorro.
11. "[...] teremos a descrição completa do
fenômeno. Relacionando as duas informações durante
o funcionamento do cérebro saberemos como ele funciona."
Repetindo, com os paradigmas atuais da ciência, conjecturo que
jamais teremos uma descrição completa dos fenômenos
cerebrais e saberemos como o cérebro funciona, e muito menos ainda
saberemos como "funcionam" os fenômenos mentais.
Reinach parece usar um dos dogmas centrais da ciência atual: se
não conhecemos hoje, conheceremos amanhã. A física
quântica mostra que existem fenômenos incompreensíveis,
como as transições energéticas instantâneas
em um átomo, a não localidade, a existência de elementos
sem limite clássico nos modelos matemáticos (portanto, incompreensíveis)
etc. Por exemplo, o elétron não é uma bolinha e não
gira em torno do núcleo, como se aprende erradamente como verdade
nas escolas, com o modelo planetário de Rutherford-Bohr de 1911.
(Modelos planetários seguem a mecânica clássica, que
não se aplica ao nível atômico.) Então o que
é um elétron? Ninguém sabe.
12. "É claro que tudo isso assume que não existe
nada imaterial ou sobrenatural, como alma ou espírito, interferindo
no processo."
Como deve ser entendida essa frase? Interpretando a palavra "assume"
como especificando uma hipótese de trabalho, aqui se revela a concepção
de mundo que Reinach emprega em seu artigo: sua hipótese é
que não existe nada de transcendental à matéria,
nada sobrenatural. Tudo no ser humano e certamente no universo resume-se
a matéria, energia e processos puramente físicos; tudo pode
ser explicado usando-se apenas esses fatores. Essa é a concepção
de mundo (ou cosmovisão, Weltanschauung) materialista ou
fisicalista. No artigo, tudo é expresso em termos físicos,
materiais. No entanto, levando em conta todos os artigos de Reinach que
eu já li, posso extrapolar dizendo que sua concepção
geral de mundo, e não só para esse artigo, é materialista.
Note-se que usei a expressão "hipótese de trabalho".
A outra possibilidade seria de se ter a crença de que só
existem processos físicos no ser humano e no universo. Quando estou
supondo que essa concepção de mundo de Reinach seja uma
hipótese, estou assumindo que ele tem a atitude que considero correta
hoje em dia: ter hipóteses e não crenças. Hipóteses
devem: (1) não contradizer o que pode ser observado exteriormente
e interiormente (isto é, o que o observador pode constatar fora
de si e em si próprio); (2) estar sempre sujeitas a constatação
por evidências; (3) estar sempre sujeitas a revisão; (4)
servir de base para uma teoria que deve ser coerente, isto é, não
conter contradições; (5) ser expressas por meio de conceitos
claros levando à compreensão, o que deve se aplicar também
às teorias nelas baseadas; (6) servir de base para a busca de compreensão
do ser humano, da natureza e do mundo, isto é, servir de base para
a pesquisa; (7) levar a pessoa a estar aberta a quaisquer ideias, sem
preconceitos. Já a crença e a fé não estão
sujeitas a nada disso, baseiam-se fundamentalmente em sentimentos, não
levam à pesquisa e remontam a um passado já ultrapassado.
Assim, nesse sentido estou classificando Reinach como pertencendo à
categoria das pessoas que estão de acordo com a mentalidade que
considero adequada ao mundo de hoje, a que procura compreensão
e não crença, o que exclui, por exemplo, fundamentalismos
religiosos, claramente dogmáticos e preconceituosos.
Reinach está bem de acordo com a tendência materialista
que vem aumentando desde meados do séc. XVIII; nesse sentido, ele
é bem um ser humano da atualidade. Mas estamos na época
de suplantar essa tendência, pois não considero que ela esteja
de acordo com o que a humanidade deveria estar desenvolvendo caminhando
para o futuro: admitir como hipótese de trabalho que existem processos
transcendentes à matéria, sobrenaturais, isto é,
uma hipótese e uma concepção de mundo espiritualistas,
porém sem cair em crenças, fé e dogmas. Já
abordei no item anterior algo que já é uma evidência
de uma tal concepção: não sabemos o que é
a matéria, e aparentemente jamais saberemos. Os materialistas têm
uma característica extremamente curiosa: acham que só existe
matéria física no universo, e somente processos físicos
mas não sabem o que é a matéria. Tudo se passa como
se eles, e quase todos os cientistas atuais, claramente materialistas,
morassem e trabalhassem num prédio onde falta o andar térreo!
Além de não se saber o que é a matéria e
talvez nunca se chegar a saber de um ponto de vista meramente material,
há várias outras evidências para se adotar a hipótese
espiritualista. Por exemplo, a origem da matéria e energias no
universo, bem como os limites do mesmo, não fazem sentido físico.
É também interessante notar que, pelas teorias atuais, não
sabemos o que constitui 95% da matéria e energia do universo: a
matéria escura (que faria com que as galáxias não
se dissolvessem pela sua alta rotação) e a energia escura
(que produziria a expansão acelerada do universo).
Observemos o ser humano. Qualquer um pode ter a vivência de poder
determinar seu próximo pensamento, em uma concentração
mental. Se não fosse assim, seria impossível, por exemplo,
fazer à mão uma conta de soma armada, com parcelas de vários
algarismos: o pensamento iria pipocar em vários assuntos e a conta
talvez nem chegasse a ser completada, além de provavelmente dar
um resultado errado. Obviamente, isso ocorreria se o pensamento fosse
gerado pelo cérebro; não adianta imaginar um processo de
autorregulação ou realimentação, pois seria
necessário mostrar esse processo e seus detalhes, que são
desconhecidos. Se eu não me concentrasse e determinasse meu próximo
pensamento, seria incapaz de escrever estes comentários, e Reinach
não teria podido escrever o seu artigo.
Vou dar um exemplo de concentração mental que qualquer
um pode fazer; garanto que não dói. Fechem-se os olhos,
produza-se uma calma interior (uma sensação muito especial,
em que não se é agitado por pensamentos espúrios
ou sentimentos) e escolham-se mentalmente dois números quaisquer
que não tenham nenhum significado pessoal tais como datas significativas,
idades, telefones ou suas partes etc. Agora imaginem-se alternadamente
os dois números em um mostrador, desses de senhas, com algarismos
vermelhos. Em seguida, escolha-se um dos dois para "visualizar"
interiormente no mostrador, mantendo-se essa imagem interior o quanto
der, sem se imaginar mais nada e nem "ouvir" interiormente qualquer
som, inclusive a própria "voz". Assim, vivenciamos que,
sem que haja absolutamente nenhuma necessidade interior ou exterior para
isso, podemos determinar nosso próximo pensamento por alguns momentos.
Sem treino de concentração, depois de algum tempo o pensamento
vai divagar; pode-se aproveitar a chance de observar (com o próprio
pensamento!) que houve essa divagação e qual ela foi, em
um processo de autoconsciência.
Ora, determinar conscientemente o próximo pensamento significa
que somos livres para pensar o que quisermos, pelo menos por alguns instantes.
Esse livre arbítrio no pensar deve ser vivenciado por cada pessoa,
é impossível provar que ele existe. Há pessoas e
cientistas que acham que o livre arbítrio é uma ilusão.
No entanto, qualquer pessoa pode vivenciá-lo como no exercício
que acabei de relatar. É uma ilusão achar que o livre arbítrio
é uma ilusão...
Admitindo-se pela própria experiência que podemos ter livre
arbítrio no pensar, deve-se chegar necessariamente à conclusão
de que há algo dentro de nós, ou associado a nós,
que não é físico, pois se fôssemos seres puramente
físicos estaríamos exclusivamente sujeitos às leis
e condições físicas, que são inexoráveis.
Se não o fossem, as máquinas não funcionariam e os
prédios cairiam, pois são projetados levando em conta que
as leis físicas vão funcionar. Se fôssemos seres puramente
físicos os pensamentos seriam gerados aleatoriamente pelo cérebro
e não seria possível determinar o próximo pensamento.
É um fato que da matéria não pode advir livre arbítrio,
por isso os materialistas coerentes o negam.
Note-se que não foi necessário eu falar de alma ou espírito.
Será que Reinach tem uma boa conceituação do que
eles são e de sua diferença? Parece-me que não, pois
como constatei acima, seu pensamento é puramente materialista,
fisicalista, portanto qualquer coisa que seja transcendente ao mundo físico
deve ser incompreensível para ele.
Note-se que na experiência dos dois números, o livre arbítrio
não está no pensamento, e sim na decisão do
que pensar, por exemplo na escolha de um dos dois números, e também
a decisão de não pensar em mais nada além da imagem
do número escolhido. Ora, uma decisão é um ato de
vontade, portanto é nela, no querer, que temos livre arbítrio,
como a própria palavra "arbítrio" indica.
Um materialista não só deve negar a existência do
livre arbítrio como, por exemplo, D. Dennet em seu Freedom Evolves
(isto é, para ele o livre arbítrio é um processo
físico que evoluiu darwinisticamente): um materialista não
pode associar responsabilidade e dignidade ao ser humano, pois esses dois
não fazem sentido sem livre arbítrio. Um desses era Einstein,
que como bom spinozista era determinista e, portanto, em meu entender
ele era materialista, apesar de seus escritos humanistas e sua "religião
cósmica". Nela, ele não admitia uma divindade pessoal
que premiasse e punisse as ações humanas. Ele disse algo
como "Eu posso muito bem entender que uma pessoa cometa um crime.
Não foi sua responsabilidade, foi sua condição física
e as condições do meio ambiente que o levaram a cometer
o crime. Mas não é por isso que eu preciso tomar chá
com um criminoso." Curiosamente, quando ele soube dos campos de concentração
e extermínio nazistas, atribuiu responsabilidade por isso a todo
o povo alemão (ver Einstein: Sua vida e seu universo, de
Walter Isaacson).
É interessante constatar que muitos, senão todos os cientistas
materialistas prezam enormemente sua liberdade de pesquisa e de ensino.
Será que eles querem que seu corpo físico tenha as liberdades
de escolha correspondentes, apesar de estar totalmente sujeito às
leis e condições físicas? Ainda bem que muitos materialistas
são incoerentes...
Se, ao contrário, supor-se a existência de algo transcendental
ao corpo físico atuando em cada ser humano, e próprio de
cada indivíduo, muita coisa fica clara, como o pensamento e o livre
arbítrio. Se essa hipótese de trabalho fosse assumida, haveria
uma grande expansão na pesquisa, o que me faz lembrar da história
contada por Joseph Weizenbaum em seu excelente livro Computer power
and human reason. Um bêbado estava à noite procurando
algo embaixo de um poste de luz. Passa um guarda e pergunta o que ele
estava procurando. "Minhas chaves", disse o bêbado. O
guarda logo percebe que ali não havia chave nenhuma, e pergunta:
"O senhor tem certeza que as perdeu aqui?" O bêbado: "Não,
foi mais lá adiante!". O guarda: "Mas então por
que está procurando as chaves aqui?" O bêbado: "Pois
aqui há luz!"
É assim que os cientistas em geral fazem hoje em dia: pesquisam
algo com sua visão materialista estreita, em áreas iluminadas
pelos instrumentos de que dispõem. É importante reconhecer
que qualquer aparelho é projetado dentro de uma certa teoria e
jamais vai revelar algo fora dela. Simplesmente admitir-se que o pensamento
e as funções mentais não são gerados pelo
cérebro iria abrir um enorme campo de pesquisa, deixando-se de
procurar apenas onde os aparelhos detectam algo, e verificando-se como
algo que não é físico manifesta-se fisicamente. Aliás,
eu tenho uma teoria de como isso é possível sem violar as
leis e condições físicas: algo que não é
físico e que está associado individualmente a cada ser vivo
faz a escolha de uma dentre várias transições fisicamente
não deterministas; essa escolha não requer energia. Por
exemplo, no crescimento de um ser vivo, a escolha de quais células
de um tecido vão mudar ou se vão permanecer como está,
e se na mudança vão começar a morrer ou a se dividir,
como vimos no item 6 acima. O mesmo se passa na regeneração
dos tecidos. Um caso pessoal: numa lixadeira de fita ralei totalmente
a pele de meu indicador direito, ficando em carne viva. Depois de algum
tempo, a pele regenerou-se e o detector digital de meu banco voltou a
reconhecer a impressão digital que estava gravada antes do acidente.
Somente um modelo da impressão digital, impondo o desenvolvimento
das células, poderia tê-la reconstituído praticamente
como era antes.
Posso perfeitamente compreender o fato de muitas pessoas com cultura
e quase todos os cientistas serem materialistas: com razão, rejeitam
os espiritualismos que encontram na esquina e em muitos livros, especialmente
os místicos, mediunísticos e os religiosos, pois não
podem admitir dogmatismos, explicações que não são
coerentes e baseadas não na compreensão mas em sentimentos,
e cultos dos quais nem os ministrantes compreendem o significado, se é
que o há. Infelizmente, desconhecem que há espiritualismos
que não são dessa natureza.
Finalmente, é importante salientar que um espiritualismo com enfoque
científico não pode negar qualquer fato científico.
Pode, sim, contrariar julgamentos científicos, como o de o cérebro
gerar as atividades da mente.
Para mais detalhes, chamo a atenção para meus artigos,
encontrados a partir de minha home page: Ciência,
religião e espiritualidade, Por
que sou espiritualista e Consequências
do materialismo.
13. "Quando inserido no cérebro de camundongos, na
prática somente 200 desses sensores acabam suficientemente próximos
de neurônios, o que permite medir simultaneamente a atividade de
200 neurônios, um número 10 vezes maior que a melhor das
tecnologias anteriores. Se com 20 neurônios você pode analisar
190 pares de neurônios, agora você pode analisar 19.900 pares,
o que aumenta em 100 vezes a chance de monitorar neurônios que estejam
conectados entre si."
Ele não explica como chegou a esses números, de modo que
vou explicar. Dados 20 neurônios, ele se refere a conexões
de cada um dos 20 aos outros 19 detectados pelo sensor; imaginem-se fios
ligando cada neurônio a cada um de todos os outros. Essas ligações
são chamadas "arestas" de um "grafo", em que
cada neurônio é um "nó" do grafo. Para calcular
quantas arestas existem, temos uma combinação de 20 dois
a dois, o que é expresso pela fórmula 20*(20-1)/2=190
arestas, o número que Reinach dá. Por exemplo, se houver
um grafo triangular com 3 nós, temos 3*2/2=3 arestas
(os lados do triângulo). Se os nós formam um retângulo,
temos 4*3/2=6 arestas (os quatro lados e as duas diagonais),
se for um pentágono, temos 5*4/2=10 arestas (os 5 lados
do pentágono e os 5 braços das diagonais, que formam um
pentagrama), e assim por diante. A combinação de n
elementos m a m é o número n!/((n-m)!*m!).
Para m=2, tem-se n*(n-1)/2. Uma outra
maneira simples de se chegar a isso é considerar que os n
nós são os vértices de um polígono, desenhando-se
seus lados e também todas as suas diagonais, isto é, deve-se
ligar cada vértice a todos os n-1 restantes, obtendo-se
n*(n-1) conexões. No entanto, cada conexão
foi incluída duas vezes, por exemplo do vértice i
para o vértice j e depois do j para o i; com
isso devemos dividir o resultado por dois, descontando assim as repetições,
obtendo-se n*(n-1)/2.
Com 200 neurônios temos um grafo com 200 nós, portanto o
número de arestas ligando cada par de nós seria 200*199/2=19.900,
o número citado no artigo.
Em primeiro lugar, esse tipo de experiência foi feito com camundongos,
como o artigo relata. Seria antiético fazê-lo com seres humanos,
pois o resultado poderia ser desastroso.
Em segundo lugar, a presença dos sensores pode muito bem influenciar
a atividade dos neurônios e das sinapses, perfurando ou destruindo
alguns deles. Além disso, esses sensores certamente detectam minúsculas
correntes elétricas, que passam pelos ditos sensores. Mas nesse
caso os próprios sensores poderiam induzir correntes elétricas
nas ligações entre os neurônios e nestes mesmos, alterando
seu funcionamento. Todo experimento físico muda as condições
da experiência, por pouco que seja.
Em terceiro lugar, cada neurônio pode estar conectado com muitos
outros neurônios e não só com os dos sensores. Fazendo
uma conta bem grosseira de engenheiro, chego a uma média, para
cada neurônio, de 10.000 ligações para outros neurônios.
Talvez por isso Reinach escreve:
14. "Mas não se anime. Ainda estamos a anos-luz de
entender como o cérebro gera a mente."
Minha hipótese, baseada nas várias evidências que
citei, e muitas mais, é que a mente gera a atividade cerebral,
pelo menos em boa parte. Pensar, sentir, querer, memória, consciência,
autoconsciência estão na mente, e não no cérebro,
que é essencial para que tenhamos consciência desses processos,
como foi visto no item 2 acima. A mente, em minha concepção,
não é física, e não pode ser confundida com
o cérebro, como quis António Damásio em seu livro
Descartes Error, querendo desmistificar o dualismo corpo e alma
de Descartes. Para isso, logo no começo do livro ele usa o famoso
caso do rapaz Phineas Gage no séc. XIX que, num acidente com dinamite
teve parte de sua cabeça arrancada por uma barra de ferro. Com
isso ele perdeu capacidades sociais. Daí Damásio, anticientificamente,
deduz que aquelas capacidades eram geradas pelo cérebro. Cientificamente,
como expus no item 2 acima, ele devia no máximo dizer que o cérebro
participava das capacidades. Mas Damásio, como bom materialista,
deve assumir provavelmente como um dogma preconceituoso típico
de muitos materialistas, que a mente deve ser física e, portanto,
idêntica ao cérebro. Admitindo-se a existência de uma
mente não física que necessita do cérebro e interage
com ele, acaba o dualismo sem reduzir tudo a algo material. Fora ainda
a hipótese de que a matéria é a condensação
de algo não físico por isso não se consegue compreender
o que é um átomo. O dualismo acaba quando a origem de tudo
é algo que transcende o mundo puramente físico.
----
Finalmente, note-se algo fundamental em minhas considerações:
não há nelas absolutamente nada de crença, de fé,
de místico, ou baseado em alguma religião. O mundo espiritual
pode ser compreendido, ao contrário do que fazem essas tendências,
todas baseadas essencialmente em sentimentos e não na compreensão.
A apresentação de uma teoria coerente sobre o espírito
no ser humano e no universo e suficientemente abrangente levaria, infelizmente,
a um texto muito grande.
Agradecimentos
Agradeço a Sonia A.L. Setzer por uma cuidadosa revisão
e várias sugestões, e a Rogério Y. Santos por apontar
alguns erros de redação.
++++++++++
O ARTIGO
(Ver
o original, acesso a assinantes do jornal.)
Como o cérebro gera a mente
'Parece fácil, mas não é. Nosso
cérebro é do tamanho de um abacate, mas a quantidade de
neurônios é enorme'
Fernando Reinach(*), colunista
freinach@gmail.com
18 Novembro 2017 | 03h00
Você olha para uma criança sorrindo e fica feliz. Outra
maneira de descrever essa atividade: seu olho foi apontado para uma criança,
a imagem foi captada e enviada para o cérebro, que, após
comparar essa imagem com o que existia na memória, concluiu que
era uma criança e que sua expressão facial era um sorriso.
Seu cérebro então associou a criança sorrindo com
felicidade, mudou seu humor e enviou essa informação para
sua consciência. Você teve consciência de que viu uma
criança sorrindo e ficou feliz. A primeira descrição
é nossa percepção consciente do que ocorre em nossa
mente e a segunda descrição reflete nosso conhecimento científico
sobre como funciona o sistema visual e o processamento de informação
no nosso cérebro.
No futuro vai existir uma terceira versão que descreverá
o que aconteceu em termos da atividade dos milhões de neurônios
envolvidos. Descreveremos o que aconteceu nos neurônios que captam
a luz na sua retina, como esses neurônios estimularam outros neurônios
que construíram a imagem e estimulam outro grupo que, interagindo
com outros neurônios, identificaram a criança sorrindo e
ativaram os neurônios que são sua consciência.
Quando os neurocientistas forem capazes de descrever todos os detalhes
em termos de atividades de neurônios vai ser possível a seguinte
proeza: coloco uma máquina na sua cabeça que monitora a
atividade dos neurônios. Feito isso, viro para você e digo:
pelas atividades neuronais que observei, posso afirmar que você
viu uma criança sorridente e ficou feliz, é isso mesmo?
E você vai dizer, é isso, você foi capaz de "ler"
minha mente. Nesse momento poderemos dizer que o mistério de como
funciona a relação mente-cérebro foi resolvido. Estamos
muito longe, mas temos um plano para chegar lá.
Para descrever o que ocorre a nível neuronal precisamos de dois
tipos de informação. O primeiro é um mapa dos pontos
de contato entre todos os neurônios (as sinapses). Em seguida, precisamos
mapear como cada um desses neurônios se comporta quando uma criança
sorridente aparece na frente dos nossos olhos. Se soubermos essas duas
coisas, o mapa de interações entre os neurônios, e
como cada um deles é estimulado ou reprimido quando a criança
aparece, teremos a descrição completa do fenômeno.
Relacionando as duas informações durante o funcionamento
do cérebro saberemos como ele funciona. É claro que tudo
isso assume que não existe nada imaterial ou sobrenatural, como
alma ou espírito, interferindo no processo.
Parece fácil, mas não é. Nosso cérebro é
do tamanho de um abacate, mas a quantidade de neurônios é
enorme. Em cada milímetro cúbico existem 100 mil neurônios
e cada neurônio interage com dezenas de outros neurônios.
Esses dois mapas serão inimaginavelmente grandes. O estágio
atual da tecnologia permite construir mapas da interação
de até 100 neurônios. E nossa capacidade de medir a atividade
de neurônios individuais é ainda pior: os melhores experimentos
conseguem medir a atividade simultânea de 10. Se em um milímetro
cúbico tem 100 mil, imagine quão longe estamos de fazer
criar esses mapas, ao vivo e em tempo real, para todo o abacate.
Um grande passo nessa direção foi dado com o desenvolvimento
de um novo tipo de eletrodo. É um fio de 0,07 milímetro
de diâmetro e 1 centímetro de comprimento que pode ser inserido
no cérebro sem causar grandes danos. Na superfície desse
fio existem 960 sensores que, se estiverem próximos de um neurônio,
podem medir sua atividade em tempo real. Quando inserido no cérebro
de camundongos, na prática somente 200 desses sensores acabam suficientemente
próximos de neurônios, o que permite medir simultaneamente
a atividade de 200 neurônios, um número 10 vezes maior que
a melhor das tecnologias anteriores. Se com 20 neurônios você
pode analisar 190 pares de neurônios, agora você pode analisar
19.900 pares, o que aumenta em 100 vezes a chance de monitorar neurônios
que estejam conectados entre si.
Mas não se anime. Ainda estamos a anos-luz de entender como o
cérebro gera a mente.
*
MAIS INFORMAÇÕES: FULLY INTEGRATED SILICONE PROBES FOR
HIGH-DENSITY RECORDING OF NEURAL ACTIVITY. NATURE, VOL. 551, PÁG.
232 (2017)
(*) FERNANDO REINACH É BIÓLOGO
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