COMENTÁRIOS SOBRE O ARTIGO DE FERNANDO REINACH
"COMO O CÉREBRO GERA A MENTE"

Valdemar W. Setzer
Depto. de Ciência da Computação, IME-USP
www.ime.usp.br/~vwsetzer
Original de 19/11/17; esta versão: 22/11/17

Fernando Reinach mantém uma coluna no jornal "O Estado de São Paulo" todos os sábados, que leio sempre com grande interesse, pois ele sempre traz algo de novo sobre pesquisas científicas recentes, em geral baseando-se em artigos publicados em revistas científicas de renome. Este meu artigo comenta o seu artigo "Como o cérebro gera a mente", da p. A22 da edição de 18/11/17, cuja cópia anexo depois destes meus comentários.

Meu último comentário em e-mail pessoal a ele foi em 3/12/16 a respeito do sono; eu aleguei que se a ciência não mudar seus paradigmas, jamais teremos uma explicação física completa sobre o sono. Não recebi resposta. Anteriormente eu já havia comentado a ele um artigo sobre o cérebro, e se me lembro bem recebi como resposta algo como "É, essa questão é muito complexa."

Desta vez resolvi escrever uma resenha do artigo mencionado acima, que novamente aborda o cérebro, pois não concordo com várias das afirmações que ele faz. Vou inseri-la em meu site e enviar a ele, com o compromisso de anexar qualquer resposta que ele dê e que queira ver acompanhando este meu artigo. Aproveito para expressar várias de minhas ideias a respeito dos temas abordados. Os itens numerados a seguir correspondem a alguns trechos sequenciais do citado artigo.

1. "[...] seu olho foi apontado para uma criança, a imagem foi captada e enviada para o cérebro, que, após comparar essa imagem com o que existia na memória, concluiu que era uma criança e que sua expressão facial era um sorriso."

Isso requer vários reparos. Em primeiro lugar, não se tem a mínima ideia de como uma percepção visual, feita por nossos sentidos ópticos, é enviada ao cérebro. Tentou-se descobrir a imagem (invertida, formada na retina) sendo enviada pelos nervos ópticos para o cérebro: o que se detectou foi ruído. De fato, as imagens são divididas em quadrantes em cada olho, depois os nervos que saem das retinas cruzam misturando tudo. Por outro lado, se não me falha a memória, existem 7 áreas distintas no cérebro que são envolvidas na visão, por exemplo detectando movimentos no campo visual, memória visual etc. Como dessas 7 áreas vemos uma só imagem? Não se sabe. Isso quanto à "imagem ... foi enviada para o cérebro".

2. "[...] após comparar essa imagem com o que existia na memória, [o cérebro] concluiu que era uma criança e que sua expressão facial era um sorriso."

Sinto muito, Reinach, mas não se pode dizer que o cérebro comparou com o que existia na memória, simplesmente por que não se sabe como seria esse processo de comparação e como a memória funciona. Não se sabe nem algo extremamente simples como a seguinte representação gráfica do dois: 2. Não se sabe onde ela está no cérebro e como é consultada.

Agora vou permitir-me uma digressão filosófica. Tomemos todas as possíveis representações simbólicas do 2, como por exemplo 2, II, ii, .., :, !!, ??, dois, two, dos, due, deux, zwei, дBa ("dva", em russo), שתיים (chtaim, em hebraico), duas pessoas, animais ou objetos etc. Agora, pensemos no que há de comum entre todas essas representações: é o conceito puro do dois, que não tem representação simbólica, e com o qual podemos trabalhar mentalmente e na matemática, e ao qual associamos toda representação que encontramos do dois. Ora, se esse conceito puro não tem representação simbólica, ele não pode estar gravado fisicamente no cérebro, isto é, conceitos não estão gravados no cérebro e nem em outra parte física do organismo.

Portanto, se associamos uma representação simbólica ou auditiva do dois ao conceito puro do dois, também associamos as percepções da criança e do seu sorriso aos conceitos correspondentes, que podem não estar (e na minha concepção não estão) na memória.

Há uma evidência aceita hoje por muitos neurocientistas: aparentemente, nossa memória é ilimitada. Nunca alguém quis memorizar um número de telefone ou o nome de uma pessoa, ou uma poesia, e teve a sensação de que "não havia mais lugar para isso." Ora, se a memória é ilimitada, infinita, ela não pode ser física. Por exemplo, mesmo contando dispositivos externos de armazenamento, qualquer computador tem uma capacidade finita de armazenar dados.

Falando de memória, é muito curioso que pessoas bem idosas começam a lembrar de fatos de sua infância que haviam esquecido, ao passo que não conseguem lembrar, por exemplo, o que vieram buscar no recinto no qual acabaram de entrar. Aliás, simplesmente o fato de se esquecer algo, não se conseguir lembrar e de repente ter essa lembrança, indica que a memória não pode ser física. Obviamente, um dispositivo de armazenamento de dados pode ser mais lento ou rápido do que outro, mas não é essa a questão aqui: aparentemente algo estava totalmente ausente da memória e reapareceu.

Também não estou de acordo com a expressão "[o cérebro] concluiu". Não se pode afirmar isso cientificamente. Se for detectada alguma atividade cerebral justamente nessa conclusão, o máximo que se pode afirmar cientificamente é que o cérebro participou dessa atividade. Enquanto não se conhecer todo o processo cerebral dessa "conclusão", não se pode dizer que é o cérebro que a executa.

Usei a expressão "participou" pois se há uma lesão cerebral perdem-se eventualmente algumas funções mentais, por exemplo certas memórias, certas sensações, certos sentimentos etc. Novamente, aqui o correto cientificamente é dizer que o cérebro participa desses processos, e uma lesão pode interrompê-los – ou pelo menos impedir que tenhamos consciência desses mesmos processos. É devida a Rudolf Steiner a ideia de que o cérebro físico reflete as atividades mentais para a consciência, como um espelho. Sem ele simplesmente não as percebemos – o que não significa que algumas delas não existam sem o cérebro, do mesmo modo que ao se quebrar um espelho não podemos mais ver nosso rosto, que não deixa de continuar existindo. É interessante notar que "refletir" é um sinônimo de "pensar", talvez indicando uma profunda sabedoria da linguagem natural. Voltarei à consciência quando ela aparecer no artigo do Reinach, no próximo item (3).

Portanto, já aqui posso expor por que discordo mesmo do título do artigo de Reinach: não se pode afirmar cientificamente que o "cérebro gera a mente." O máximo que se pode dizer é que ele participa das atividades mentais, como por exemplo pensar, sentir (ter sensações e ter sentimentos – vou caracterizá-los posteriormente, no item 8), querer ou vontade (desde instintos até decisões conscientes), memória, consciência e autoconsciência.

3. "Você teve consciência de que viu uma criança sorrindo e ficou feliz."

Aqui há a primeira citação de "consciência." Acontece que não há a mínima noção científica de como temos consciência. Esse é considerado um "problema difícil" ("hard") da ciência. Inclusive, é muito difícil caracterizar o que é a consciência, apesar de a vivenciarmos claramente.

É interessante notar que os animais têm consciência. Por exemplo, se cutucamos um cachorro com uma agulha, claramente ele sente dor pois reage, isto é, teve consciência da dor. Mas só o ser humano tem autoconsciência. Existem experiências mostrando que certos animais se reconhecem em um espelho. Mas para mim isso não é autoconsciência; posso imaginar que é uma reação automática associando, por exemplo, um movimento próprio com o movimento da imagem (não sei se as experiências envolveram animais parados). Claramente, o ser humano pode ter consciência do que está pensando; acho que esse é o suprassumo da autoconsciência. Ou decidir fazer um movimento, por exemplo com um braço, e verificar que realmente o está fazendo. Ou sentir uma saudade de algo ou alguém e vivenciar essa sensação.

Uma observação cuidadosa pode mostrar que os animais não têm memória consciente, consultável conscientemente, como os seres humanos. Por exemplo, um cachorro pode sentir falta do dono, mas isso só ocorre se ele é incentivado por algo que o faz sentir essa falta. Por exemplo, cheirar algo do dono que não está presente e sentir falta do carinho que ele faz, ou sentir fome e então sentir a falta do dono que lhe dá comida.

4. "A primeira descrição é nossa percepção consciente do que ocorre em nossa mente e a segunda descrição reflete nosso conhecimento científico sobre como funciona o sistema visual e o processamento de informação no nosso cérebro."

De início, há dois pontos aqui. (1) Podemos sorrir ao ver uma criança sorrir sem termos consciência disso; pode ser muito bem uma reação involuntária nossa. (2) A "nossa percepção consciente" é na verdade a autoconsciência que citei acima.

De qualquer modo, é interessantíssimo que aqui Reinach faz uma clara distinção entre mente e cérebro. Em nenhum lugar do artigo ele identifica esses dois. Como foi colocado no título, para ele os processos mentais – pelo menos os que ele aborda – são gerados pelo cérebro, isto é, a mente não é algo existente por si, mas é produzida pelo cérebro, é um resultado da atividade cerebral. Portanto, a mente deve necessariamente constituir-se de processos físicos. Analogamente ao fato de o fígado secretar bile, o cérebro deve secretar os pensamentos e as outras atividades mentais.

Voltando ao trecho, não temos conhecimento científico suficiente sobre como funciona o sistema visual. Como citei acima, não se tem a mínima ideia de como se forma uma imagem interior, a representação mental de algo que vemos, nem mesmo como ela é novamente invertida a partir da imagem invertida que se forma na retina, para vermos tudo de cabeça para cima. Não estou seguro, mas acho que não se conhece a formação de uma imagem fisicamente no cérebro a partir de algo percebido visualmente.

Uma palavra sobre "processamento de informação". Eu jamais uso a expressão de que o cérebro "processa" algo, simplesmente porque isso remete ao processamento de dados feito pelos computadores. Aliás, computadores não processam informações, processam dados. Um dado deve necessariamente ter representação simbólica quantificada ou poder gerar uma tal representação sem perda, como é o caso de uma foto que é varrida por um scanner, portanto quantificada, e depois, a partir dessa representação quantificada, gerar-se outra foto idêntica em precisão à primeira. Já uma informação requer uma compreensão. Por exemplo, uma tabela de cidades e temperaturas máximas e mínimas como são publicadas pelo jornais pode estar numa língua desconhecida; nesse caso é um simples amontoado de dados: pode-se não saber que se trata de tabela de cidades e temperaturas, no entanto podem-se processar esses dados mudando as colunas, mudando as fontes dos caracteres, achando-se valores médios sem saber o que significam etc. Mas se alguém traduzir o significado da tabela, os nomes das cidades e as unidades de temperatura (podem estar em Fahrenheit, por exemplo), aí a tabela vira informação. Para mais detalhes, veja-se meu artigo "Dado, informação, conhecimento e competência" em meu site.

É muito importante reconhecer-se que se o modelo que se tem do cérebro é computacional (e talvez Reinach o tenha), então o cérebro é puramente físico e só pode processar dados, e não informações. Um computador não entende absolutamente nada do que está processando. A compreensão por meio do pensamento, transformando dados em informações, é uma atividade interior puramente humana. De fato, caracterizo "compreender" como a associação, feita por meio do pensamento, de algo percebido sensorialmente com o conceito imanente ao objeto, ou associar dois ou mais conceitos corretos.

Quando trato do pensar em minhas palestras, sempre pergunto o que os ouvintes estão percebendo visualmente na entrada da sala onde estão. Todos dizem invariavelmente "Uma porta." Chamo a atenção para o fato de que ninguém disse "Uma fralda" ou qualquer outra coisa. Aí eu mostro que estão todos errados: o que se percebe visualmente são impulsos luminosos; não se percebe uma "porta", pois "porta" é um conceito, e conceitos não se percebem visualmente. O que ocorreu é que o pensamento fez uma ponte entre a representação mental do objeto percebido visualmente e o conceito que é subjacente a ele, no caso "porta". Quando se disse "porta", estava se reconhecendo que aquela representação mental tinha algo em comum com todas as portas já vistas ou com a ideia que se fazia de uma porta. Chegou-se à conclusão que o objeto percebido pertence à categoria das portas. É importante reconhecer nesse exemplo que os conceitos são objetivos e universais – ninguém deixou de dizer que o que estão percebendo é uma porta.

Resta fazer uma hipótese fundamental: os conceitos são ideias, não são entes físicos. Eles estão no mundo platônico das ideias, que não é físico. Não estão armazenados de maneira física misteriosa no cérebro, como supõem muitos, incluindo cientistas.

Para maiores detalhes desse processo e profundas considerações sobre o pensar, sentir e o querer, recomendo a obra seminal de Rudolf Steiner, A Filosofia da Liberdade, disponível na Internet no original alemão (Philosophie der Freiheit) ou em inglês (Philosophy of Spiritual Activity ou Philosophy of Freedom, dependendo da tradução).

O mais importante até aqui é que o modelo computacional do cérebro, usado por muitos neurocientistas e claramente empregado por Reinach no artigo, é absolutamente indevido. Para se ter um modelo computacional do cérebro, é necessário conhecer o código usado e interpretado por ele. A propósito, um computador não executa um programa em linguagem de máquina, a linguagem mais básica; ele o interpreta. Cada instrução do programa é decodificada, interpretada, ativando a execução de ações por parte dos circuitos da máquina ou por outros trechos do programa. Pois bem, o código usado pelo cérebro não é conhecido. Tenho uma conjectura muito forte: ele jamais será conhecido, pois não existe.

5. "No futuro vai existir uma terceira versão que descreverá o que aconteceu em termos da atividade dos milhões de neurônios envolvidos."

Em primeiro lugar, fico admirado com as expressões usadas por Reinach, como "No futuro vai existir ... que descreverá ..." Essa é uma afirmação extremamente categórica, indicando não uma possibilidade, mas uma certeza. Nada, absolutamente nada no conhecimento científico indica que vai se conhecer o que acontece em termos da atividade neuronal.

O que se conhece dessa atividade é que certas áreas do cérebro são mais, ou menos, ativas durante os processos mentais. Gostaria de fazer aqui mais uma observação. Segundo as últimas pesquisas, por sinal realizadas na Universidade Federal do Espírito Santo, temos cerca de 86 bilhões de neurônios, com pelo menos um trilhão de sinapses, isto é, ligações entre eles (sinapses são elementos de ligação entre os axônios que saem dos neurônios e se ligam com as dendrites que entram nos neurônios). Ocorre que a atividade fundamental dessa rede é elétrica, e que células, em particular os neurônios, são eletricamente muito imprecisas. Além disso, o funcionamento dos neurônios é aparentemente não determinístico, isto é, com as mesmas entradas um neurônio às vezes dispara, outras vezes não dispara. Com isso, uma rede desse tamanho devia gerar ruído, isto é, não ter um comportamento coerente – a menos que um fator externo a ela controle seu funcionamento, ou que esse funcionamento não tenha uma ligação direta com as atividades mentais que, em geral, são bem coerentes.

6. "Descreveremos o que aconteceu nos neurônios que captam a luz na sua retina, ..."

Reinach não devia ter tanta certeza como suas palavras expressam. Como já escrevi acima, a formação da representação mental interior a partir de uma percepção visual é totalmente desconhecida. Minha conjectura é que jamais será conhecida se não houver mudanças radicais no paradigma científico.

É interessante notar que o exemplo usado por ele parte de um estímulo externo, isto é, uma percepção visual. Vamos considerar um outro caso, um estímulo puramente interno. Por exemplo, o leitor poderia fazer o seguinte exercício. Mova um dos braços. Por que o braço moveu-se? Digamos que houve impulsos elétricos vindos de algum lugar, fazendo com que certas fibras musculares do braço contraíssem-se e outras se relaxassem. Suponhamos que esse lugar tenha sido uma área A do cérebro. Ótimo. Mas por que essa área A emitiu esses impulsos? Digamos que uma outra área B emitiu alguns impulsos para a área A, ativando-a. E como a área B emitiu seus impulsos? Será necessário imaginar que houve outra área C etc. etc. Isso me leva a uma conjectura bastante forte: Se seguirmos uma sequência de causas e efeitos físicos em qualquer ação puramente interior de um ser vivo, sempre se chega a um beco sem saída, ou a uma sequência circular. Isso vale, por exemplo, para o crescimento dos seres vivos, que se dá por divisão celular. Por que uma determinada célula não permaneceu como estava, mas subdividiu-se (meiose ou mitose) ou começou a morrer (apoptose)? Que a causa tem que ser externa fica muito claro ao se observar o crescimento simétrico, por exemplo das mãos. Como elas, partindo de mãozinhas pequeninas de um bebê, gorduchinhas, com dedinhos meio cônicos, com buraquinhos nas junções para os dedos, foram crescendo, mudando bastante a forma mas mantendo uma extraordinária simetria? (Basta comparar uma mão de qualquer pessoa com a oposta de outra pessoa, para ver como são muito diferentes.) Obviamente, não existe uma troca de informações dos tecidos de uma mão à outra para que células que se subdividiram parem de se subdividir, esperando que as correspondentes da outra mão se subdividam também, senão a simetria seria quebrada. É como se houvesse um modelo dinâmico controlando em cada momento que células vão permanecer como estão, quais vão começar a se subdividir e quais vão começar a morrer. Mas o que é um modelo de forma? Um pensamento – e é por isso que reconhecemos as formas, por exemplo das folhas de uma planta, a partir das quais distinguimos a espécie da planta. Observando as fantásticas simetrias nos seres vivos, como as dos desenhos das asas de borboletas, ou as formas com regularidades matemáticas, como várias flores (margarida, girassol etc.) que formam espirais em números da sequência de Fibonacci (1, 2, 3, 5, 8, 13, 21 etc.), formulo a hipótese de que um modelo controla o crescimento dos seres vivos. Esse modelo, que não é físico, é da natureza do nosso pensamento – por isso reconhecemos as formas com nosso próprio pensamento! Note-se que houve tentativas de explicar aquelas formas espiraladas que ocorrem também, por exemplo, em pinhas e abacaxis, buscando-se a otimização do uso do espaço, mas não se chegou a uma prova nesse sentido.

A justificativa padrão é que quem regula o crescimento levando a simetrias e a formas que seguem padrões matemáticos é o DNA. Em primeiro lugar, o que é mais importante para os processos fisiológicos não é o DNA, e sim as proteínas geradas a partir do DNA. Em segundo lugar, quais sequências de nucleotídeos de um DNA vão participar da geração de aminoácidos em um dado instante? Provavelmente há também aqui um não determinismo físico. Em terceiro, como as células vivas são muito imprecisas, um crescimento a partir exclusivamente do DNA não conservaria o grau de simetria que é observado em muitos seres vivos, começando pelo ser humano: além das mãos, por exemplo, tamanho e forma de braços, pernas, orelhas (estas não param de crescer...), lobos do nariz etc.

7. "[...] ativaram os neurônios que são sua consciência."

Isto é, para Reinach a consciência é um produto das atividades neuronais. Gostaria de ter uma conversa com ele para que me definisse o que é a consciência. Tenho certeza de que ele não vai conseguir. Ora, se não é possível definir um certo processo, e sua origem é desconhecida, como se pode achar que ele pode advir de processos físicos? Existem processos físicos conhecidos mas de origem desconhecida, como por exemplo os relâmpagos – a diferença de potencial elétrico e a distância entre as nuvens ou destas para a terra não é suficiente para romper a barreira do ar, que funciona como um isolante elétrico. Depois que o raio começa a fluir, aí a ionização do ar justifica a passagem da corrente elétrica do relâmpago, mas o seu início ainda é desconhecido – a teoria mais aceita é que raios cósmicos de alta energia ionizam o ar e daí o raio começa a fluir. No caso da consciência, tanto o processo físico quanto a sua origem são totalmente desconhecidos. Qualquer especulação sobre o futuro desses conhecimentos é indevida.

8. "[...] coloco uma máquina na sua cabeça que monitora a atividade dos neurônios. Feito isso, viro para você e digo: pelas atividades neuronais que observei, posso afirmar que você viu uma criança sorridente e ficou feliz, é isso mesmo? E você vai dizer, é isso, você foi capaz de 'ler' minha mente."

Tenho dúvidas quanto a se conseguir detectar que objeto (a criança) está se vendo. Por outro lado, é possível que se possam detectar certas atividades cerebrais e dizer o que se passa mais ou menos na mente de uma pessoa. Por exemplo, suponhamos que ao sentir-se alegria uma certa área do cérebro é ativada mais do que outras. Uma tomografia ou Pet Scan detecta hoje áreas mais, ou menos, ativadas. Fazendo-se uma certa pessoa ter sensações de alegria e monitorando-se as áreas mais ativadas, pode-se talvez dizer posteriormente: "Você está alegre." Ou triste, ou com medo, ou depressivo etc. Mas o que não se pode de modo algum é sentir a alegria ou medo que o outro está sentindo! Isso por que sensações (por exemplo, o gosto que se sente ao comer uma banana) e sentimentos (se se gosta ou não do gosto da banana ou, mais fundamental, se há simpatia ou antipatia por esse gosto ou, mais fundamental ainda, se há atração ou repulsa pelo gosto da banana) são totalmente individuais e subjetivos. Experimente-se descrever o gosto de uma banana a uma pessoa que jamais comeu uma; isso é impossível – ela jamais sentirá como é o gosto de uma banana somente a partir de alguma descrição.

Uma pessoa ou máquina pode reconhecer o que a outra está sentindo, pelas suas expressões, por exemplo faciais, como a reação ao sorriso da criança mencionado por Reinach. Mas o que é totalmente impossível é sentir o que o outro está sentindo. Essa individualidade e subjetividade do sentir levou-me a conjecturar que máquinas jamais vão ter sensações e sentimentos, pois elas são universais e objetivas. Em particular, toda máquina digital suficientemente geral é universal pois pode simular qualquer outra máquina digital; o projeto e construção de um dado tipo de máquina analógica, como por exemplo uma geladeira, é o mesmo para todas as máquinas daquela produção, isto é, não há individualidade no sentido humano, que é muito mais ampla do que qualquer individualidade animal. Obviamenete, todas as máquinas são objetivas. Nesse sentido, os robôs que têm sentimentos nos filmes Artificial Intelligence de Spielberg ou The Bicentennial Man" de Columbus são verdadeiras idiotices. Eles transmitem a ideia de que todas as capacidades humanas poderão ser transferidas a máquinas. Com isso induz-se a ideia de que o ser humano é uma máquina, o que o degrada, em vez de o elevar.

Quanto a "ler" a mente, não se trata nada disso! Trata-se de detectar e reconhecer atividades neuronais. (A propósito, como muitas outras usadas na computação, essa expressão "ler" está errada, pois computadores não leem, quem lê é o ser humano – o que eles fazem é reconhecer caracteres, imagens, sons ou impulsos.) Além disso, duvido que se consiga um reconhecimento perfeito de uma atividade mental por meio do cérebro pois, como já citei no item 5, células vivas são muito imprecisas.

Há ainda outro fator importante: a plasticidade do cérebro, descoberta na década de 1970 por M. Merzenich. Devido a ela o cérebro está em permanente mudança, especialmente nas sinapses, os pontos de contato entre as fibras que saem dos neurônios (os axônios) e as fibras que levam às entradas de outros neurônios (as dendrites). Tanto as vivências da pessoa como seus sentimentos, pensamentos e ações mudam as sinapses e portanto a topologia, a forma do cérebro – isso deveria dar uma responsabilidade muito grande ao que uma pessoa pensa; afinal, o pensamento pode ser dominado, o que não acontece com o sentir e o querer. Um exemplo de plasticidade: em uma pessoa que ficou cega, áreas do cérebro destinadas à percepção visual passam a se dedicar a percepções táteis.

9. "Nesse momento poderemos dizer que o mistério de como funciona a relação mente-cérebro foi resolvido. Estamos muito longe, mas temos um plano para chegar lá."

Minha conjectura é que com o atual paradigma da ciência jamais vai se conhecer o mistério da relação mente-cérebro. Vão se conhecer certos efeitos mentais sobre o cérebro, mas não vai se saber como as atividades mentais causam processos no cérebro.

Estranho muito a afirmação de que temos um "plano para chegar lá." Como isso é possível, se não conhecemos o tal de "lá"? Por exemplo, o que é a consciência, o que são sensações, como formamos representações mentais etc. Provavelmente Reinach considera que as experiências neuronais que ele descreve mais para o fim do artigo constituam esse "plano".

10. "Para descrever o que ocorre a nível neuronal precisamos de dois tipos de informação. O primeiro é um mapa dos pontos de contato entre todos os neurônios (as sinapses). Em seguida, precisamos mapear como cada um desses neurônios se comporta quando uma criança sorridente aparece na frente dos nossos olhos."

Já citei a plasticidade do cérebro. Com ela, qualquer mapa, se fosse possível ser construído num tempo muito breve, valeria apenas para aqueles momentos. Qualquer atividade física ou mental da pessoa mudaria o mapa.

Como se construiria esse mapa, já que ele é individual? Até hoje não se fazem pesquisas invasivas no cérebro, pois isso é antiético. No máximo foram usados macacos, como os de Miguel Nicolelis (por exemplo, as experiências descritas no livro Muito além de nosso Eu). A propósito, a pesquisa dele é meramente empírica; ele implanta uma matriz de sensores no cérebro de macacos e deriva matematicamente, usando provavelmente o que se denomina na estatística e na matemática de "regressão linear múltipla", que certos impulsos detectados pela matriz correspondem a certos movimentos dos membros dos macacos, e calcula funções que transformam os impulsos cerebrais em movimentos das pernas de um robô ou o movimento de um cursor numa tela. Em suas pesquisas, parece-me que não há compreensão do porquê e como os impulsos cerebrais detectados são gerados pelo cérebro. Aliás, é provável que hoje Nicolelis esteja usando as técnicas de "deep learning" (mais uma expressão errada; computadores não aprendem, gravam dados e calculam parâmetros; não se sabe como o ser humano aprende, senão nossos cursos de medicina durariam talvez 2 anos e não 6). Essas técnicas permitem que se deem dados de entrada e se calculem parâmetros que produzam dados de saída correspondentes ao que se deseja, por exemplo, distinguir um gato de um cachorro. Dando-se várias fotos como entrada, e especificando-se as saídas correspondentes (um ou o outro animal), o sistema calcula parâmetros para depois deduzir com razoável precisão se uma nova foto ainda não usada é de um gato ou de um cachorro.

11. "[...] teremos a descrição completa do fenômeno. Relacionando as duas informações durante o funcionamento do cérebro saberemos como ele funciona."

Repetindo, com os paradigmas atuais da ciência, conjecturo que jamais teremos uma descrição completa dos fenômenos cerebrais e saberemos como o cérebro funciona, e muito menos ainda saberemos como "funcionam" os fenômenos mentais.

Reinach parece usar um dos dogmas centrais da ciência atual: se não conhecemos hoje, conheceremos amanhã. A física quântica mostra que existem fenômenos incompreensíveis, como as transições energéticas instantâneas em um átomo, a não localidade, a existência de elementos sem limite clássico nos modelos matemáticos (portanto, incompreensíveis) etc. Por exemplo, o elétron não é uma bolinha e não gira em torno do núcleo, como se aprende erradamente como verdade nas escolas, com o modelo planetário de Rutherford-Bohr de 1911. (Modelos planetários seguem a mecânica clássica, que não se aplica ao nível atômico.) Então o que é um elétron? Ninguém sabe.

12. "É claro que tudo isso assume que não existe nada imaterial ou sobrenatural, como alma ou espírito, interferindo no processo."

Como deve ser entendida essa frase? Interpretando a palavra "assume" como especificando uma hipótese de trabalho, aqui se revela a concepção de mundo que Reinach emprega em seu artigo: sua hipótese é que não existe nada de transcendental à matéria, nada sobrenatural. Tudo no ser humano e certamente no universo resume-se a matéria, energia e processos puramente físicos; tudo pode ser explicado usando-se apenas esses fatores. Essa é a concepção de mundo (ou cosmovisão, Weltanschauung) materialista ou fisicalista. No artigo, tudo é expresso em termos físicos, materiais. No entanto, levando em conta todos os artigos de Reinach que eu já li, posso extrapolar dizendo que sua concepção geral de mundo, e não só para esse artigo, é materialista.

Note-se que usei a expressão "hipótese de trabalho". A outra possibilidade seria de se ter a crença de que só existem processos físicos no ser humano e no universo. Quando estou supondo que essa concepção de mundo de Reinach seja uma hipótese, estou assumindo que ele tem a atitude que considero correta hoje em dia: ter hipóteses e não crenças. Hipóteses devem: (1) não contradizer o que pode ser observado exteriormente e interiormente (isto é, o que o observador pode constatar fora de si e em si próprio); (2) estar sempre sujeitas a constatação por evidências; (3) estar sempre sujeitas a revisão; (4) servir de base para uma teoria que deve ser coerente, isto é, não conter contradições; (5) ser expressas por meio de conceitos claros levando à compreensão, o que deve se aplicar também às teorias nelas baseadas; (6) servir de base para a busca de compreensão do ser humano, da natureza e do mundo, isto é, servir de base para a pesquisa; (7) levar a pessoa a estar aberta a quaisquer ideias, sem preconceitos. Já a crença e a fé não estão sujeitas a nada disso, baseiam-se fundamentalmente em sentimentos, não levam à pesquisa e remontam a um passado já ultrapassado. Assim, nesse sentido estou classificando Reinach como pertencendo à categoria das pessoas que estão de acordo com a mentalidade que considero adequada ao mundo de hoje, a que procura compreensão e não crença, o que exclui, por exemplo, fundamentalismos religiosos, claramente dogmáticos e preconceituosos.

Reinach está bem de acordo com a tendência materialista que vem aumentando desde meados do séc. XVIII; nesse sentido, ele é bem um ser humano da atualidade. Mas estamos na época de suplantar essa tendência, pois não considero que ela esteja de acordo com o que a humanidade deveria estar desenvolvendo caminhando para o futuro: admitir como hipótese de trabalho que existem processos transcendentes à matéria, sobrenaturais, isto é, uma hipótese e uma concepção de mundo espiritualistas, porém sem cair em crenças, fé e dogmas. Já abordei no item anterior algo que já é uma evidência de uma tal concepção: não sabemos o que é a matéria, e aparentemente jamais saberemos. Os materialistas têm uma característica extremamente curiosa: acham que só existe matéria física no universo, e somente processos físicos mas não sabem o que é a matéria. Tudo se passa como se eles, e quase todos os cientistas atuais, claramente materialistas, morassem e trabalhassem num prédio onde falta o andar térreo!

Além de não se saber o que é a matéria e talvez nunca se chegar a saber de um ponto de vista meramente material, há várias outras evidências para se adotar a hipótese espiritualista. Por exemplo, a origem da matéria e energias no universo, bem como os limites do mesmo, não fazem sentido físico. É também interessante notar que, pelas teorias atuais, não sabemos o que constitui 95% da matéria e energia do universo: a matéria escura (que faria com que as galáxias não se dissolvessem pela sua alta rotação) e a energia escura (que produziria a expansão acelerada do universo).

Observemos o ser humano. Qualquer um pode ter a vivência de poder determinar seu próximo pensamento, em uma concentração mental. Se não fosse assim, seria impossível, por exemplo, fazer à mão uma conta de soma armada, com parcelas de vários algarismos: o pensamento iria pipocar em vários assuntos e a conta talvez nem chegasse a ser completada, além de provavelmente dar um resultado errado. Obviamente, isso ocorreria se o pensamento fosse gerado pelo cérebro; não adianta imaginar um processo de autorregulação ou realimentação, pois seria necessário mostrar esse processo e seus detalhes, que são desconhecidos. Se eu não me concentrasse e determinasse meu próximo pensamento, seria incapaz de escrever estes comentários, e Reinach não teria podido escrever o seu artigo.

Vou dar um exemplo de concentração mental que qualquer um pode fazer; garanto que não dói. Fechem-se os olhos, produza-se uma calma interior (uma sensação muito especial, em que não se é agitado por pensamentos espúrios ou sentimentos) e escolham-se mentalmente dois números quaisquer que não tenham nenhum significado pessoal tais como datas significativas, idades, telefones ou suas partes etc. Agora imaginem-se alternadamente os dois números em um mostrador, desses de senhas, com algarismos vermelhos. Em seguida, escolha-se um dos dois para "visualizar" interiormente no mostrador, mantendo-se essa imagem interior o quanto der, sem se imaginar mais nada e nem "ouvir" interiormente qualquer som, inclusive a própria "voz". Assim, vivenciamos que, sem que haja absolutamente nenhuma necessidade interior ou exterior para isso, podemos determinar nosso próximo pensamento por alguns momentos. Sem treino de concentração, depois de algum tempo o pensamento vai divagar; pode-se aproveitar a chance de observar (com o próprio pensamento!) que houve essa divagação e qual ela foi, em um processo de autoconsciência.

Ora, determinar conscientemente o próximo pensamento significa que somos livres para pensar o que quisermos, pelo menos por alguns instantes. Esse livre arbítrio no pensar deve ser vivenciado por cada pessoa, é impossível provar que ele existe. Há pessoas e cientistas que acham que o livre arbítrio é uma ilusão. No entanto, qualquer pessoa pode vivenciá-lo como no exercício que acabei de relatar. É uma ilusão achar que o livre arbítrio é uma ilusão...

Admitindo-se pela própria experiência que podemos ter livre arbítrio no pensar, deve-se chegar necessariamente à conclusão de que há algo dentro de nós, ou associado a nós, que não é físico, pois se fôssemos seres puramente físicos estaríamos exclusivamente sujeitos às leis e condições físicas, que são inexoráveis. Se não o fossem, as máquinas não funcionariam e os prédios cairiam, pois são projetados levando em conta que as leis físicas vão funcionar. Se fôssemos seres puramente físicos os pensamentos seriam gerados aleatoriamente pelo cérebro e não seria possível determinar o próximo pensamento. É um fato que da matéria não pode advir livre arbítrio, por isso os materialistas coerentes o negam.

Note-se que não foi necessário eu falar de alma ou espírito. Será que Reinach tem uma boa conceituação do que eles são e de sua diferença? Parece-me que não, pois como constatei acima, seu pensamento é puramente materialista, fisicalista, portanto qualquer coisa que seja transcendente ao mundo físico deve ser incompreensível para ele.

Note-se que na experiência dos dois números, o livre arbítrio não está no pensamento, e sim na decisão do que pensar, por exemplo na escolha de um dos dois números, e também a decisão de não pensar em mais nada além da imagem do número escolhido. Ora, uma decisão é um ato de vontade, portanto é nela, no querer, que temos livre arbítrio, como a própria palavra "arbítrio" indica.

Um materialista não só deve negar a existência do livre arbítrio como, por exemplo, D. Dennet em seu Freedom Evolves (isto é, para ele o livre arbítrio é um processo físico que evoluiu darwinisticamente): um materialista não pode associar responsabilidade e dignidade ao ser humano, pois esses dois não fazem sentido sem livre arbítrio. Um desses era Einstein, que como bom spinozista era determinista e, portanto, em meu entender ele era materialista, apesar de seus escritos humanistas e sua "religião cósmica". Nela, ele não admitia uma divindade pessoal que premiasse e punisse as ações humanas. Ele disse algo como "Eu posso muito bem entender que uma pessoa cometa um crime. Não foi sua responsabilidade, foi sua condição física e as condições do meio ambiente que o levaram a cometer o crime. Mas não é por isso que eu preciso tomar chá com um criminoso." Curiosamente, quando ele soube dos campos de concentração e extermínio nazistas, atribuiu responsabilidade por isso a todo o povo alemão (ver Einstein: Sua vida e seu universo, de Walter Isaacson).

É interessante constatar que muitos, senão todos os cientistas materialistas prezam enormemente sua liberdade de pesquisa e de ensino. Será que eles querem que seu corpo físico tenha as liberdades de escolha correspondentes, apesar de estar totalmente sujeito às leis e condições físicas? Ainda bem que muitos materialistas são incoerentes...

Se, ao contrário, supor-se a existência de algo transcendental ao corpo físico atuando em cada ser humano, e próprio de cada indivíduo, muita coisa fica clara, como o pensamento e o livre arbítrio. Se essa hipótese de trabalho fosse assumida, haveria uma grande expansão na pesquisa, o que me faz lembrar da história contada por Joseph Weizenbaum em seu excelente livro Computer power and human reason. Um bêbado estava à noite procurando algo embaixo de um poste de luz. Passa um guarda e pergunta o que ele estava procurando. "Minhas chaves", disse o bêbado. O guarda logo percebe que ali não havia chave nenhuma, e pergunta: "O senhor tem certeza que as perdeu aqui?" O bêbado: "Não, foi mais lá adiante!". O guarda: "Mas então por que está procurando as chaves aqui?" O bêbado: "Pois aqui há luz!"

É assim que os cientistas em geral fazem hoje em dia: pesquisam algo com sua visão materialista estreita, em áreas iluminadas pelos instrumentos de que dispõem. É importante reconhecer que qualquer aparelho é projetado dentro de uma certa teoria e jamais vai revelar algo fora dela. Simplesmente admitir-se que o pensamento e as funções mentais não são gerados pelo cérebro iria abrir um enorme campo de pesquisa, deixando-se de procurar apenas onde os aparelhos detectam algo, e verificando-se como algo que não é físico manifesta-se fisicamente. Aliás, eu tenho uma teoria de como isso é possível sem violar as leis e condições físicas: algo que não é físico e que está associado individualmente a cada ser vivo faz a escolha de uma dentre várias transições fisicamente não deterministas; essa escolha não requer energia. Por exemplo, no crescimento de um ser vivo, a escolha de quais células de um tecido vão mudar ou se vão permanecer como está, e se na mudança vão começar a morrer ou a se dividir, como vimos no item 6 acima. O mesmo se passa na regeneração dos tecidos. Um caso pessoal: numa lixadeira de fita ralei totalmente a pele de meu indicador direito, ficando em carne viva. Depois de algum tempo, a pele regenerou-se e o detector digital de meu banco voltou a reconhecer a impressão digital que estava gravada antes do acidente. Somente um modelo da impressão digital, impondo o desenvolvimento das células, poderia tê-la reconstituído praticamente como era antes.

Posso perfeitamente compreender o fato de muitas pessoas com cultura e quase todos os cientistas serem materialistas: com razão, rejeitam os espiritualismos que encontram na esquina e em muitos livros, especialmente os místicos, mediunísticos e os religiosos, pois não podem admitir dogmatismos, explicações que não são coerentes e baseadas não na compreensão mas em sentimentos, e cultos dos quais nem os ministrantes compreendem o significado, se é que o há. Infelizmente, desconhecem que há espiritualismos que não são dessa natureza.

Finalmente, é importante salientar que um espiritualismo com enfoque científico não pode negar qualquer fato científico. Pode, sim, contrariar julgamentos científicos, como o de o cérebro gerar as atividades da mente.

Para mais detalhes, chamo a atenção para meus artigos, encontrados a partir de minha home page: Ciência, religião e espiritualidade, Por que sou espiritualista e Consequências do materialismo.

13. "Quando inserido no cérebro de camundongos, na prática somente 200 desses sensores acabam suficientemente próximos de neurônios, o que permite medir simultaneamente a atividade de 200 neurônios, um número 10 vezes maior que a melhor das tecnologias anteriores. Se com 20 neurônios você pode analisar 190 pares de neurônios, agora você pode analisar 19.900 pares, o que aumenta em 100 vezes a chance de monitorar neurônios que estejam conectados entre si."

Ele não explica como chegou a esses números, de modo que vou explicar. Dados 20 neurônios, ele se refere a conexões de cada um dos 20 aos outros 19 detectados pelo sensor; imaginem-se fios ligando cada neurônio a cada um de todos os outros. Essas ligações são chamadas "arestas" de um "grafo", em que cada neurônio é um "nó" do grafo. Para calcular quantas arestas existem, temos uma combinação de 20 dois a dois, o que é expresso pela fórmula 20*(20-1)/2=190 arestas, o número que Reinach dá. Por exemplo, se houver um grafo triangular com 3 nós, temos 3*2/2=3 arestas (os lados do triângulo). Se os nós formam um retângulo, temos 4*3/2=6 arestas (os quatro lados e as duas diagonais), se for um pentágono, temos 5*4/2=10 arestas (os 5 lados do pentágono e os 5 braços das diagonais, que formam um pentagrama), e assim por diante. A combinação de n elementos m a m é o número n!/((n-m)!*m!). Para m=2, tem-se n*(n-1)/2. Uma outra maneira simples de se chegar a isso é considerar que os n nós são os vértices de um polígono, desenhando-se seus lados e também todas as suas diagonais, isto é, deve-se ligar cada vértice a todos os n-1 restantes, obtendo-se n*(n-1) conexões. No entanto, cada conexão foi incluída duas vezes, por exemplo do vértice i para o vértice j e depois do j para o i; com isso devemos dividir o resultado por dois, descontando assim as repetições, obtendo-se n*(n-1)/2.

Com 200 neurônios temos um grafo com 200 nós, portanto o número de arestas ligando cada par de nós seria 200*199/2=19.900, o número citado no artigo.

Em primeiro lugar, esse tipo de experiência foi feito com camundongos, como o artigo relata. Seria antiético fazê-lo com seres humanos, pois o resultado poderia ser desastroso.

Em segundo lugar, a presença dos sensores pode muito bem influenciar a atividade dos neurônios e das sinapses, perfurando ou destruindo alguns deles. Além disso, esses sensores certamente detectam minúsculas correntes elétricas, que passam pelos ditos sensores. Mas nesse caso os próprios sensores poderiam induzir correntes elétricas nas ligações entre os neurônios e nestes mesmos, alterando seu funcionamento. Todo experimento físico muda as condições da experiência, por pouco que seja.

Em terceiro lugar, cada neurônio pode estar conectado com muitos outros neurônios e não só com os dos sensores. Fazendo uma conta bem grosseira de engenheiro, chego a uma média, para cada neurônio, de 10.000 ligações para outros neurônios. Talvez por isso Reinach escreve:

14. "Mas não se anime. Ainda estamos a anos-luz de entender como o cérebro gera a mente."

Minha hipótese, baseada nas várias evidências que citei, e muitas mais, é que a mente gera a atividade cerebral, pelo menos em boa parte. Pensar, sentir, querer, memória, consciência, autoconsciência estão na mente, e não no cérebro, que é essencial para que tenhamos consciência desses processos, como foi visto no item 2 acima. A mente, em minha concepção, não é física, e não pode ser confundida com o cérebro, como quis António Damásio em seu livro Descartes Error, querendo desmistificar o dualismo corpo e alma de Descartes. Para isso, logo no começo do livro ele usa o famoso caso do rapaz Phineas Gage no séc. XIX que, num acidente com dinamite teve parte de sua cabeça arrancada por uma barra de ferro. Com isso ele perdeu capacidades sociais. Daí Damásio, anticientificamente, deduz que aquelas capacidades eram geradas pelo cérebro. Cientificamente, como expus no item 2 acima, ele devia no máximo dizer que o cérebro participava das capacidades. Mas Damásio, como bom materialista, deve assumir provavelmente como um dogma preconceituoso típico de muitos materialistas, que a mente deve ser física e, portanto, idêntica ao cérebro. Admitindo-se a existência de uma mente não física que necessita do cérebro e interage com ele, acaba o dualismo sem reduzir tudo a algo material. Fora ainda a hipótese de que a matéria é a condensação de algo não físico – por isso não se consegue compreender o que é um átomo. O dualismo acaba quando a origem de tudo é algo que transcende o mundo puramente físico.

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Finalmente, note-se algo fundamental em minhas considerações: não há nelas absolutamente nada de crença, de fé, de místico, ou baseado em alguma religião. O mundo espiritual pode ser compreendido, ao contrário do que fazem essas tendências, todas baseadas essencialmente em sentimentos e não na compreensão. A apresentação de uma teoria coerente sobre o espírito no ser humano e no universo e suficientemente abrangente levaria, infelizmente, a um texto muito grande.

Agradecimentos

Agradeço a Sonia A.L. Setzer por uma cuidadosa revisão e várias sugestões, e a Rogério Y. Santos por apontar alguns erros de redação.

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O ARTIGO
(Ver o original, acesso a assinantes do jornal.)

Como o cérebro gera a mente

'Parece fácil, mas não é. Nosso cérebro é do tamanho de um abacate, mas a quantidade de neurônios é enorme'

Fernando Reinach(*), colunista – freinach@gmail.com

18 Novembro 2017 | 03h00

Você olha para uma criança sorrindo e fica feliz. Outra maneira de descrever essa atividade: seu olho foi apontado para uma criança, a imagem foi captada e enviada para o cérebro, que, após comparar essa imagem com o que existia na memória, concluiu que era uma criança e que sua expressão facial era um sorriso. Seu cérebro então associou a criança sorrindo com felicidade, mudou seu humor e enviou essa informação para sua consciência. Você teve consciência de que viu uma criança sorrindo e ficou feliz. A primeira descrição é nossa percepção consciente do que ocorre em nossa mente e a segunda descrição reflete nosso conhecimento científico sobre como funciona o sistema visual e o processamento de informação no nosso cérebro.

No futuro vai existir uma terceira versão que descreverá o que aconteceu em termos da atividade dos milhões de neurônios envolvidos. Descreveremos o que aconteceu nos neurônios que captam a luz na sua retina, como esses neurônios estimularam outros neurônios que construíram a imagem e estimulam outro grupo que, interagindo com outros neurônios, identificaram a criança sorrindo e ativaram os neurônios que são sua consciência.

Quando os neurocientistas forem capazes de descrever todos os detalhes em termos de atividades de neurônios vai ser possível a seguinte proeza: coloco uma máquina na sua cabeça que monitora a atividade dos neurônios. Feito isso, viro para você e digo: pelas atividades neuronais que observei, posso afirmar que você viu uma criança sorridente e ficou feliz, é isso mesmo? E você vai dizer, é isso, você foi capaz de "ler" minha mente. Nesse momento poderemos dizer que o mistério de como funciona a relação mente-cérebro foi resolvido. Estamos muito longe, mas temos um plano para chegar lá.

Para descrever o que ocorre a nível neuronal precisamos de dois tipos de informação. O primeiro é um mapa dos pontos de contato entre todos os neurônios (as sinapses). Em seguida, precisamos mapear como cada um desses neurônios se comporta quando uma criança sorridente aparece na frente dos nossos olhos. Se soubermos essas duas coisas, o mapa de interações entre os neurônios, e como cada um deles é estimulado ou reprimido quando a criança aparece, teremos a descrição completa do fenômeno. Relacionando as duas informações durante o funcionamento do cérebro saberemos como ele funciona. É claro que tudo isso assume que não existe nada imaterial ou sobrenatural, como alma ou espírito, interferindo no processo.

Parece fácil, mas não é. Nosso cérebro é do tamanho de um abacate, mas a quantidade de neurônios é enorme. Em cada milímetro cúbico existem 100 mil neurônios e cada neurônio interage com dezenas de outros neurônios. Esses dois mapas serão inimaginavelmente grandes. O estágio atual da tecnologia permite construir mapas da interação de até 100 neurônios. E nossa capacidade de medir a atividade de neurônios individuais é ainda pior: os melhores experimentos conseguem medir a atividade simultânea de 10. Se em um milímetro cúbico tem 100 mil, imagine quão longe estamos de fazer criar esses mapas, ao vivo e em tempo real, para todo o abacate.

Um grande passo nessa direção foi dado com o desenvolvimento de um novo tipo de eletrodo. É um fio de 0,07 milímetro de diâmetro e 1 centímetro de comprimento que pode ser inserido no cérebro sem causar grandes danos. Na superfície desse fio existem 960 sensores que, se estiverem próximos de um neurônio, podem medir sua atividade em tempo real. Quando inserido no cérebro de camundongos, na prática somente 200 desses sensores acabam suficientemente próximos de neurônios, o que permite medir simultaneamente a atividade de 200 neurônios, um número 10 vezes maior que a melhor das tecnologias anteriores. Se com 20 neurônios você pode analisar 190 pares de neurônios, agora você pode analisar 19.900 pares, o que aumenta em 100 vezes a chance de monitorar neurônios que estejam conectados entre si.

Mas não se anime. Ainda estamos a anos-luz de entender como o cérebro gera a mente.

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MAIS INFORMAÇÕES: FULLY INTEGRATED SILICONE PROBES FOR HIGH-DENSITY RECORDING OF NEURAL ACTIVITY. NATURE, VOL. 551, PÁG. 232 (2017)

(*) FERNANDO REINACH É BIÓLOGO