PEDAGOGIA WALDORF: 100 ANOS DE SUCESSO

Valdemar W. Setzer
www.ime.usp.br/~vwsetzer
(Original: 26/4/20; esta versão: 3/5/20)

(Este artigo foi enviado em 2019 sucessivamente para os jornais O Estado de São Paulo, Folha de São Paulo e O Globo, tendo sido ou recusado ou simplesmente ignorado. Ele foi originalmente escrito mantendo os limites de palavras usual da seção Opinião Aberta do jornal O Estado de São Paulo. Nesta versão os itens e assuntos foram completados sem preocupação com o tamanho total.)

Nos dias 4/10 e 14/11/19 as Câmaras Municipal de São Paulo e dos Deputados homenagearam, em sessões solenes, a Pedagogia Waldorf (PW) pelo 100° aniversário de sua criação, que se deu em setembro de 1919 na cidade de Stuttgart, Alemanha, pelo seu fundador, Rudolf Steiner. Ultimamente, essa pedagogia teve uma enorme expansão no mundo, contando em 2019 com 278 escolas no Brasil, incluindo jardins de infância, sendo 91 certificadas pela Federação das Escolas Waldorf no Brasil. Todas essas escolas, quando não são mantidas por governos, pertencem a associações sem fins lucrativos. No Brasil há algumas escolas Waldorf públicas em São Paulo, em Camanducaia, MG, Aracaju, SE, Serra Grande, BA, Nova Friburgo, RJ etc. Mas o que distingue essencialmente uma tal escola de outras que seguem alguma outra pedagogia? Vejamos algumas dessas características.

1. A distinção mais importante, em minha opinião, é o fato de a PW ser baseada em uma concepção profunda do desenvolvimento sadio ideal da criança e do adolescente conforme a idade. Esse desenvolvimento leva em conta os aspectos corporal, de sensações e sentimentos, do intelecto, da memória e da consciência.

Por exemplo, num jardim de infância (assim denominado nas escolas Waldorf, e não "educação infantil") leva-se em consideração que a criança, entre 4 e 6 anos de idade inclusive, está adaptando-se ao mundo exterior, está desenvolvendo sua fantasia e sua motricidade grossa e fina, e aprende por imitação e pelo brincar. Não se encontra em um jardim Waldorf algum ensino intelectual, como de letras e números ou uso de blocos lógicos. As classes procuram imitar os lares; assim, as próprias crianças ajudam a preparar seus lanches (idealmente, cada classe tem uma pequena cozinha). Além disso, como em suas famílias, em cada sala de aula há crianças de várias idades, e as mais velhas aprendem a ajudar a mais novas. A sala é dividida em temas, com brinquedos rústicos para incentivar a imaginação, feitos com materiais naturais, de modo que na hora de brincar as crianças podem escolher livremente o que fazer. Reconhecendo que o ritmo é fundamental para o desenvolvimento sadio de crianças pequenas, o dia é dividido em atividades que se repetem mais ou menos no mesmo horário. Essas atividades são em geral alternadas; assim, na hora do lanche é a hora de prepará-lo ou comê-lo, na hora de brincar fora da classe todas as crianças vão para lá, na hora de cantar ou de ouvir uma história, o que ocorre todos os dias, todas as crianças ficam concentradas cantando ou ouvindo etc.

No ensino fundamental, que se inicia com 6½ a 7 anos, a criança encanta-se com o mundo, quer conhecê-lo; todo o ensino, adequado para cada idade, é artístico, em todas as matérias. Além disso, durante toda a escolaridade há matérias artísticas e artesanais específicas, bem como música, crescendo gradativamente de complexidade. Em particular, todos os alunos Waldorf aprendem a cantar afinado e a tocar flauta doce, sendo também incentivados a aprender um outro instrumento musical. Todos aprendem a se expressar por meio de desenhos e pinturas. Como as letras tornaram-se símbolos abstratos, exigindo esforço intelectual, o ensino completo de ler e escrever, até as letras cursivas, é lento, levando três anos. Nas matérias científicas dos anos mais avançados, o ensino é fenomenológico, isto é, os alunos aprendem a observar detalhadamente os fenômenos apresentados, e a descrevê-los objetivamente, sem explicações dos mesmos por meio de teorias abstratas. Assim, os ex-alunos Waldorf não desenvolveram apenas suas capacidades intelectuais mas também, intensamente, as sociais e artísticas, de modo a posteriormente poderem ser criativos e ter pensamentos flexíveis e livres.

No ensino médio passa a haver um intenso desenvolvimento do intelecto abstrato, por meio da abordagem intelectual nas matérias que se prestam a isso, sem abandonar as matérias artísticas, artesanais e a música.

2. Não há notas e repetições de ano. Se um aluno não é bom em alguma matéria, se ele tirar notas baixas por causa disso ou, pior, repetir de ano, isso pode criar um bloqueio para aquela área. Mas se ele não for punido por essa deficiência, não sofrendo por causa disso, pode ocorrer um despertar de um interesse por essa matéria. Além disso, ele pode ser excelente em outras matérias ou áreas, de modo que a pedagogia procura estimular os dons e ajudar nas dificuldades. Com isso, os alunos não têm medo e, portanto, não sofrem tensões internas relacionadas com a escola. A PW é uma pedagogia da alegria de aprender, e não do medo de não aprender. Ocorre com frequência alunos Waldorf lamentarem a chegada das férias, de tanto que gostam do ambiente escolar. A ausência de repetição de ano faz com que os alunos de uma classe permaneçam juntos do 1° ano até o fim da escolaridade, no 12° ano, o que redunda em uma forte coesão social, além de se desenvolverem conjuntamente de maneira harmônica. Por exemplo, formados de muitas classes continuam mantendo contato, apesar de eventualmente não haver amizades pessoais (os interesses mudam).

Notas são dadas, mas ficam na escola, por exigência das Secretarias de Educação. A partir dos últimos anos do ensino fundamental, são eventualmente dadas provas para que os alunos se conscientizem do que aprenderam.

3. E por falar em Secretarias de Educação, estas exigem a existência de um diretor em cada escola. A escola, porém, é efetivamente dirigida por um colegiado de professores, do qual fazem parte todos os professores com experiência na pedagogia e permanência na escola. As escolas têm uma Associação de Pais, que participa ativamente na organização da escola, mas não interfere diretamente no aspecto pedagógico. Além disso, quando não são escolas públicas, as escolas Waldorf têm uma associação mantenedora, que cuida da parte financeira e legal.

4. Há um cuidado muito grande com o ambiente físico, que deve ser o mais belo e artístico possível. Tudo deve ser estético e agradável; nada de caricaturas, ou figuras grotescas ou monstruosas, começando pelos ambientes nas classes. Todo o ambiente escolar segue os princípios pedagógicos. Nas salas encontram-se plantas, cristais e, nas paredes, lindas pinturas feitas pelos alunos, além de quadros de artistas famosos.

5. É usado um ritmo de aula alternando períodos em que os alunos absorvem um conteúdo exposto pelo professor, com períodos em que eles executam algo relacionado com o que aprenderam. Imagine-se uma criança ou adolescente sentado durante horas somente absorvendo matérias intelectualmente - no fim do período escolar eles saem mentalmente exaustos a agitados.

6. No ensino fundamental há um professor principal para cada classe, denominado "professor de classe", que preferencialmente a segue desde o 1° ao 8° anos, dando todas as matérias principais, fora as duas línguas estrangeiras do currículo, educação física, matérias artísticas e artesanais, música e jardinagem. Assim, o professor de classe deve ser um generalista, e acaba conhecendo profundamente cada aluno, além de estabelecer um contato intenso com os pais, para juntos ajudarem o desenvolvimento dos jovens.

No ensino médio, do 9° ao 12° ano, entra a figura do professor tutor, um só pelos quatro anos, que faz reuniões semanais com os alunos para discutir seus problemas e tentar ajudá-los. Isso vai de encontro à independência cada vez maior dos alunos quando entram no ensino médio. Os professores de matéria devem ser especialistas, isto é, a matemática deve ser dada por um formado em matemática, história por um formado em história etc.

Os professores devem seguir o currículo Waldorf, mas têm total liberdade para darem as aulas da maneira que acharem melhor para cada classe, agindo de acordo com as necessidades momentâneas dos alunos e apresentando a matéria de modo a entusiasmá-los por ela. Na PW, o professor é considerado antes de tudo um artista, e não um técnico, se bem que por detrás de qualquer arte existe uma técnica.

7. Na PW não se tratam os alunos como recipientes de dados e informações, e sim como pessoas jovens que devem se desenvolver amplamente, em todos os sentidos, isto é, no social, no artístico e no intelectual (em minha opinião, nessa ordem de importância). Dá-se igualmente muita ênfase ao fazer, o que significa o desenvolvimento da força de vontade. R. Steiner, citado no início, chamou a atenção de que o professor não ensina, ele dá os meios para o aluno se autoeducar. Uma característica fundamental da PW é que esses meios variam conforme a idade, como citado no item 1 acima. Especialmente, no ensino fundamental é tomado um cuidado muito grande para que o ensino não seja intelectualizante, para não prejudicar o desenvolvimento global dos jovens.

8. A menos de casos especiais, como no ensino das duas línguas estrangeiras dadas desde o 1° ano (no Brasil, uma delas é sempre o inglês), não são adotados livros-texto. Os alunos fazem cadernos de matéria, evitando-se a rigidez de um livro-texto. Esses cadernos são sempre lindamente decorados, de modo que os alunos sentem prazer em fazê-los e estudar por eles. Muitas vezes os ex-alunos guardam seus cadernos por toda a vida.

9. Uma característica interessante da PW são as peças teatrais curriculares, levadas por cada classe no 8° e 12° anos. Na primeira, o professor de classe escolhe a peça, distribui os papeis do ponto de vista pedagógico, e chama alguém com bons conhecimentos de direção teatral para dirigir a peça. Na segunda, os próprios alunos escolhem a peça, com aprovação do conselho dos professores, e distribuem os papeis. Em ambos os casos, o cenário é todo feito pelos alunos sob orientação dos professores de artes e artesanato. O acompanhamento musical é feito pelos próprios alunos e, nas 3 ou 4 apresentações da peça para a comunidade da escola e interessados, os papeis são distribuídos de modo que cada aluno representa outro papel em cada apresentação. Não é difícil imaginar-se o excepcional resultado educativo dessa atividade, com os alunos aprendendo dicção e a enfrentar o público, e desenvolvendo sensibilidade social ao prestarem atenção na fala e na movimentação dos outros atores, bem como à reação do público (por exemplo, não falar se há risadas). Na verdade, os alunos Waldorf já se acostumam a se apresentar em público desde o 1° ano, em pequenas apresentações durante as festas semestrais abertas à comunidade, onde cada classe se apresenta com um coro, com pequenas peças ou declamações, ou com euritmia (uma arte de movimento corporal introduzida por R. Steiner que ajuda muito a desenvolver coordenação motora e sensibilidade para a palavra ou sons musicais).

10. Uma verdadeira escola Waldorf não usa meios eletrônicos no ensino, e seu uso pelos alunos não é incentivado. Essa posição, que sempre foi assim, está corroborada pelo conhecimento que já se tem de que crianças e adolescentes simplesmente não têm maturidade para usar bem esses aparelhos e pela comprovação científica dos males que eles produzem nos jovens. Por exemplo, eles/as não têm discernimento suficiente para distinguirem o que é bom ou ruim, e não conseguem se controlar no uso dos aparelhos, que acabam tendo influências nefastas no seu desenvolvimento. Pesquisa de 2019 da Univ. Fed. do Espírito Santo mostrou que no Brasil 25% dos jovens entre 15 e 19 anos são viciados na Internet, portanto qualquer incentivo ao seu uso, como fazer nela buscas por certos assuntos, coloca os alunos em perigo, inclusive dos assim chamados predadores. No entanto, levando-se em conta que praticamente todos os adolescentes já usam a Internet, ela pode ser empregada, com restrições, no ensino médio. É fundamental que se chame a atenção dos alunos para os males que o uso indiscriminado da Internet causa, por exemplo na capacidade de pensar, na criatividade e na sensibilidade social.

 

O futuro do ensino e da aprendizagem não é serem mais tecnológicos, e sim mais humanos, conforme o título do excelente livro sobre PW do Dr. Rudolf Lanz: "A Pedagogia Waldorf: caminho para um ensino mais humano", que contém um apêndice meu sobre meios eletrônicos e educação.

Convido os leitores a visitarem sites de escolas Waldorf e a virem apreciar as exposições pedagógicas nos Bazares Natalinos das diversas escolas, e ver os resultados dessa pedagogia pelos trabalhos e cadernos dos alunos feitos durante o ano. É mais interessante do que visitar um museu, pois nessas exposições pode-se seguir o desenvolvimento das crianças e jovens classe a classe. Em uma escola com ensino médio, ao ver os trabalhos expostos, não se pode deixar de pensar que todos os alunos são verdadeiros artistas e artesãos, de tanto que se desenvolveram em sua capacidade de expressão artística e artesanal. Examinando-se os trabalhos de conclusão de curso, fica-se admirado com a profundidade intelectual. Em particular, não há pessoa que visite um jardim de infância Waldorf e não sinta vontade de ser criança novamente...

Quem não conhece a PW não sabe o que podem ser um ensino e uma aprendizagem profundamente humanos e de sucesso.

++++

Agradecimento. Agradeço à minha esposa Sonia A.L. Setzer por várias sugestões.