Ateu ou materialista?
Comentários sobre duas crônicas de Leandro Karnal

Valdemar W. Setzer
www.ime.usp.br/~vwsetzer
21/10/17

Estes comentários foram escritos inicialmente como e-mail para Leandro Karnal, mas como não consegui o endereço dele, inseri em meu site, com a esperança de poder enviar o endereço desta página para ele.

Leio as crônicas dele com muito interesse, pois não há nenhuma em que eu não aprenda algo. Neste texto, vou comentar duas delas, "A cabeça do ateu" (O Estado de São Paulo de 1/10/17, p. C7, que abreviarei por CDA) e "A bênção, padre Fábio" (11/10/17, p. C8, BPF). Elas estão copiadas depois deste texto; uma busca nesta página com algum trecho das citações pode localizá-lo nas crônicas, onde se econtram os endereços dos originais.

1. Em primeiro lugar, o uso da palavra "ateu". Ela e suas derivadas ocorrem 15 vezes em ACA e 7 vezes em BPF, donde se conclui que ela é importante para o autor.

2. Numa dessas ocorrências, ele se declara ateu: "Aturdido, pergunto se ela sabe que sou ateu" (BPF).

3. A definição dos dicionários para "ateu" é, tipicamente, "aquele que nega a existência de Deus ou deuses", como por exemplo em

www.dicio.com.br/ateu/

No Aurélio, 1ª edição, a definição é "Diz-se daquele que não crê em Deus ou nos deuses."

4. Quero chamar a atenção para o fato de que, ao alguém declarar-se ateu, está dizendo algo que não tem sentido, é vazio. De fato, quando eu digo "eu nego (ou não creio) que amanhã vai chover", essa minha frase é perfeitamente compreensível, pois se entende claramente o que quero dizer, já que "amanhã" e "chover" são compreensíveis. No entanto, Karnal não consegue explicar o que entende por "Deus" ou "deuses". Aliás, não está sozinho nesse problema: hoje em dia essas palavras perderam completamente seu significado. Examine-se meus artigos em meu site: apesar de eu ser espiritualista, jamais uso as palavras "Deus" e "deuses".

5. De fato, ele diz em CDA: "A concepção de Deus responde a quase tudo. As perguntas encontram respostas para o crente: origem das coisas, sentido da vida, moral, (sic) etc." Note que o tal crente não consegue explicar como Deus criou as coisas, qual afinal é o sentido da vida, o que é a moral. (Eu distingo ética, que é corporativa, comunitária, da moral, que é individual.) Muito menos ele mesmo consegue explicar, pois tudo isso não deve lhe fazer sentido, como explico adiante, apesar de reconhecer que "[...] a origem do universo é um argumento forte [...]" De fato, as origens da matéria e da energia no universo não fazem sentido físico. É um dos argumentos que uso em favor do espiritualismo. A propósito, os limites do universo também não fazem sentido físico.

6. Jamais uso a palavra "ateu". Acho muito mais adequada a denominação "materialista" ou "fisicalista", referindo-se a alguém que tem, idealmente como hipótese de trabalho e não como crença, a concepção de mundo de que só há matéria, energia e processos físicos no universo. Assim, parece-me que muito melhor teria sido Karnal denominar-se "materialista" e não "ateu". Curiosamente, como costumo dizer, materialista é uma pessoa que vive e trabalha em um edifício que não tem o andar térreo, pois a física não sabe o que é a matéria. Por exemplo, o elétron não é uma bolinha e não gira em torno do núcleo, como muita gente aprendeu erradamente.

7. No CDA ele se refere duas vezes aos agnósticos. Agnosticismo é a concepção de que o que é metafísico não é acessível, isto é, admite-se apenas o que pode ser percebido com nossos sentidos ou detectado por intermédio de máquinas. Também não gosto dessa denominação. Afinal, um agnóstico não percebe os seus pensamentos com seus sentidos, e sim com o próprio pensar. A rigor, ele não deveria admitir a existência de seus pensamentos, de seus sentimentos e de sua vontade, pois ele também não os percebe com seus sentidos. Não há explicação física para essas atividades interiores. Não deveria admitir nem mesmo sua memória, pois não se sabe como algo simples como a representação 2 do número dois está armazenada em nós e como se faz acesso a ela. A propósito, tomem-se todas as possíveis representações simbólicas do dois, como 2, II, ii, .., :, dois, due, deux, dos, two, dva, shtaim, duas vacas etc. Agora tome-se o que há de comum entre todas as possíveis representações do dois: trata-se de um conceito puro, que não tem representação simbólica e, portanto, não pode estar armazenado fisicamente dentro de nosso corpo. No entanto, trabalhamos mentalmente com esse conceito, em particular na matemática. Essa é mais uma evidência para eu ser espiritualista: a memória não é física, e podemos trabalhar mentalmente com coisas que não têm representação física. Esse é o caso de todas as figuras geométricas ideais, como uma circunferência – jamais alguém viu uma perfeita. Aliás, muitos neurocientistas estão reconhecendo que a memória é ilimitada: ninguém teve a vivência de querer memorizar um número de telefone ou o nome de alguém e sentir que não há mais "espaço" para isso. Se a memória é ilimitada, ela não pode ser física.

8. Além de ateísmo e agnósticismo, em CDA Karnal menciona o ceticismo (em relação a Protágoras). Ceticismo é uma atitude cientifica e intelectualmente sadia, e deveria ser aplicada a tudo, inclusive às religiões. No entanto, muitos dos que se denominam céticos são na verdade materialistas, como por exemplo Michael Shermer, responsável da coluna mensal "Skeptics" da revista Scientific American. Ele ridiculariza qualquer coisa que tenha a ver com espiritualidade.

9. Além dos ateus, agnósticos e céticos à la Shermer, eu classifico como materialistas os positivistas. Parece-me que todas essas denominações tentam esconder o que os materialistas ou fisicalistas realmente são: pessoas que negam existência de qualquer coisa que não seja a matéria, a energia e processos físicos.

10. Eu respeito os materialistas coerentes. Eles estão muito bem na onda do pensamento moderno, que em minha opinião deveria começar a ser abandonada. A maioria, senão quase todos os cientistas e intelectuais são materialistas e a ciência usa exclusivamente métodos materiais. Sua concepção de mundo coloca os materialistas com o pé bem no chão (material...). Mas aquela coerência leva necessariamente a certas conclusões. Por exemplo, o materialista deveria negar o livre arbítrio, que não tem sentido do ponto de vista material: da matéria não pode advir liberdade, pois ela segue inexoravelmente as "leis" e condições físicas.

11. Eu tenho uma teoria de como algo não físico pode atuar sobre o mundo físico: usando transições não deterministas, isto é, escolhendo qual transição física, entre várias possíveis, deve ser tomada. Essa decisão não requer energia, pois não se passa fisicamente; a transição em si, sim.

12. Em CDA Karnal escreveu "No sentido como o entendemos, o ateísmo é derivado do iluminismo e do materialismo do século 19." Eu acho que o materialismo começou efetivamente em meados do século 18, por exemplo com o livro de La Mettrie, "L'Homme-Machine", de 1748. Mas sua popularização deu-se com Darwin no meio do 19. Antes do séc. 18 todos sentiam que havia algo transcendental à matéria, seja por vivência própria ou por tradição, em geral religiosa.

13. E por falar em materialismo e em tradição religiosa, acho que justamente as religiões foram as grandes impulsionadoras do materialismo. A sua atitude é dogmática, por exemplo, quanto à virgindade da Maria (que claramente é um símbolo para algo mais profundo, como o são as parábolas do Novo Testamento ou os 7 dias da Criação), o celibatarismo, o uso do solidéu pelos judeus religiosos, os horrores perpetrados falsamente em nome do cristianismo e, principalmente, a falta de busca por uma compreensão e o apelo para a crença. Essas atitudes obviamente afastam quem, como ser humano moderno, quer compreender e não acreditar, e não se satisfaz com imagens ou símbolos.

14. Muitos materialistas o são, com muita razão, por medo de caírem na crendice, no dogmatismo e no misticismo, pois é o que encontram por aí, especialmente nas religiões instituídas. Têm medo de ter que abdicar de seu pensamento claro e de sua busca por compreensão.

15. Ocorre que existe espiritualismo que procura compreender. Acho que ele começou com Kardec (não sou espírita e não acho que o mediunismo seja uma forma adequada para se obter conhecimento do mundo espiritual, mas reconheço o valor inovador de Kardec), continuou com a Blavatsky e teve seu pináculo com Rudolf Steiner, em minha opinião ainda não ultrapassado. Este último apresenta uma teoria espiritual extremamente abrangente, logicamente coerente, que não contradiz fatos científicos (mas pode contradizer certos julgamentos científicos) e com várias aplicações práticas de sucesso, como a pedagogia Waldorf.

16. Em CDA Karnal fala do mal. De um ponto de vista espiritual ele é perfeitamente compreensível: uma das missões da humanidade é o desenvolvimento da liberdade. Se só houvesse o bem, não poderíamos fazer escolhas e ser livres. Estaríamos todos ainda na magnífica imagem do Paraíso bíblico, como dizia meu sogro Rudolf Lanz, "Todos de bata cor de rosa tocando lira, que chatice!" Para haver o mal, a divindade tinha que se retirar, para deixar de nos guiar como acontecia na antiguidade muito remota, o que é muito bem representado pelas imagens bíblicas, como a da expulsão do Paraíso. Aliás, a ideia agostiniana do Pecado Original bíblico está totalmente errada: é só ler a Gênese com cuidado e verificar-se-á que antes do contato com o mal o ser humano é descrito como não tendo nem consciência nem autoconsciência. O que acontece imediatamente depois de comerem do "fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal" (Gen 2:17)? "Os seus olhos se abriram" (3:7), isto é, a humanidade adquiriu consciência (que os animais também têm, em outro grau), e depois "viram que estavam nus" (3:7), isto é, ela adquiriu autoconsciência. Note-se que uma criança pequena tem autoconsciência em um grau muito incipiente, por isso não sente vergonha, e normalmente só começa a falar "eu" ao redor dos 3 anos de idade.

17. De um ponto de vista materialista, bem e mal não fazem sentido. A matéria não tem moral, simplesmente é. Aliás, a ciência baseada exclusivamente na matéria, como é a ciência moderna, também é amoral, pois moral, por ser individual, tem que necessariamente ser subjetiva, a não ser que se baseie em conhecimento e não em sentimentos, e a objetividade é um dos pilares da ciência. Por exemplo, conhecendo-se que uma das missões do ser humano é o desenvolvimento do livre arbítrio, conclui-se que não se deve interromper esse processo em nenhuma pessoa, e portanto não se deve matar ninguém (mas alguém perigoso para a sociedade pode ser confinado).

18. Expus essas e outras ideias em vários artigos que estão em meu site. Karnal citou Richard Dawkins e seu livro Deus, um delírio (essa tradução do título está errada, o original é God, a delusion, "um engano"). Veja-se a minha resenha desse livro, onde concordo com muitas coisas dele, em especial várias críticas contra as religiões, mas não concordo com muitos de seus pontos de vista. Pudera, Dawkins é materialista e eu não sou!

www.ime.usp.br/~vwsetzer/review-the-god-delusion.html

Nessa resenha encontram-se várias de minhas concepções. Pode ser lido salteado.

19. Outros artigos meus a respeito desses assuntos, copiando de minha home page, seção Espiritualidade:

8.2 Artigo "Por que sou espiritualista". Publicado em sua versão em inglês na revista eletrônica Southern Cross Review, No. 55, Sept./Oct. 2007.

8.4 Artigo "Ciência, religião e espiritualidade". Complementa e detalha alguns tópicos do artigo 8.2, mas é independente do mesmo, devendo ser lido em primeiro lugar.

8.6 Artigo "Consequências do materialismo".

8.10 Artigo "Respostas a 16 questões céticas sobre religião".

Em particular, o "Ciência, religião e espiritualidade" mostra como a atual cisão entre ciência e religião, o que Stephen Jay Gould chamou de NOMA, "Non-overlapping magisteria", pode ser resolvida se ambas mudarem seus métodos.

20. Uma palavra sobre o que Karnal chamou em BPF de "anseio ancestral de proteção". Essa visão de que os seres humanos criaram as divindades por medo da natureza é uma típica elucubração materialista. Curiosamente, segundo essa interpretação toda a humanidade era medrosa, pois na antiguidade toda ela era espiritualista. Uma outra interpretação de um ponto de vista espiritualista, é que naqueles tempos a humanidade ainda tinha uma percepção do mundo espiritual, pois originou-se nele. Mais uma bela imagem da bíblia: "E criou Deus [no original, os Elohim] o homem à sua semelhança", Gen. 2:27; como a divindade não é física, essa criação foi de um ser humano ainda não físico. Porém, na antiguidade remota não havia o intelecto capaz de compreender as vivências e expressá-las conceitualmente, de modo que as expressões eram feitas em forma de imagens, de símbolos. Aos poucos a humanidade foi perdendo o contato com o mundo espiritual, passando a ter dele meras recordações e tradições. Em compensação, foi desenvolvendo um pensar claro e conceitual. Por isso a partir de um certo ponto nessa queda na matéria, começou-se a criar imagens do seres divinos com todas as características humanas, como na mitologia grega. Qualquer interpretação do mundo espiritual com as características físicas está errada, como no trágico livro do Chico Xavier Nosso lar, onde no mundo espiritual ocorrem ministérios, veículos de transporte, hospitais, transmissões radiofônicas, bônus por horas extras de trabalho etc. ad nauseam. Hoje em dia é possível observar conscientemente o mundo espiritual e transmitir essas vivências conceitualmente, como o fez Rudolf Steiner. Para isso é preciso desenvolver adequadamente órgãos de percepção suprassensível que estão latentes em todos os seres humanos, e um intelecto sadio capaz de conceituar.

21. Finalmente, nada do que escrevi exige crença, fé ou religião.

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AS DUAS CRÔNICAS

A cabeça do ateu [CDA]

http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,a-cabeca-do-ateu,70002021758

O complicado, ultimamente, não é crer ou não crer em Deus. O difícil é crer no homem.

Leandro Karnal, O Estado de S. Paulo

01 Outubro 2017 | 03h00

Acho estranha a palavra ateu. Ela deriva do grego e significa a negação de Deus ("a" significa negação e "theos" deus). Como toda definição, ela fala mais dos valores da pessoa que a utiliza do que sobre o alvo do termo. Seria como definir a mim, Leandro, como não asiático ou não peixe. Conhecer pela negação é problemático.

A concepção de Deus responde a quase tudo. As perguntas encontram resposta para o crente: origem das coisas, sentido da vida, moral, etc. Deus é a hipertrofia da racionalidade, porque tudo se torna lógico com Ele. Mesmo não construindo um campo empírico irrefutável, o religioso pode responder a quaisquer desafios. O crente sabe sobre a origem das coisas (teogonia) e questões do bem e do mal (teodiceia). No campo religioso, há resposta para uma inocente criança natimorta e para um vilão nonagenário atuante. Uma mulher extraordinária como dona Zilda Arns morre em um terremoto? Há explicação. Um político corrupto recupera-se de um câncer? Também encontramos na fé a elucidação do enigma ou o reconhecimento de caminhos insondáveis para mim e acessíveis ao Ser Supremo.

Um ateu tem menos respostas do que um religioso. Porém, ao eliminar a hipótese Deus, ele comete mais do que uma restrição metodológica. A voz que nega a existência de divindade(s) é lida como negadora de todo o fundamento moral e social. O edifício social cimenta-se com crenças e Deus é o fiador do sistema.

Protágoras de Abdera, famoso filósofo grego clássico, sofreu um processo em plena guerra do Peloponeso. Seu tratado Sobre os Deuses afirma que "não posso saber se existem ou não". A dúvida de Protágoras nasce de duas posições. A primeira é sofista: relativização das verdades absolutas. A segunda é seu antropocentrismo radical: o homem é a medida de todas as coisas. O ceticismo de Protágoras é muito mais agnóstico do que ateu. Ele duvida se podemos saber algo sobre os deuses, não exatamente a negação da existência deles.

As ideias de Protágoras não eram uma novidade na Atenas do quinto século antes da era cristã. A novidade é a perseguição: seus livros foram queimados e ele foi expulso da cidade. O Estado começava a alcançar quem duvidava dos deuses oficiais. Similar e contemporâneo foi o processo contra Anaxágoras de Clazômena (foi professor de Péricles) que buscava causas naturais para os fenômenos como terremotos e raios. Não sabemos ao certo se ele foi morto, preso ou exilado. A democrática cidade-Estado se abalava com ideias de agnosticismo ou ateísmo. O grande Sócrates viveria também a acusação de impiedade.

A vitória do Cristianismo na Europa Ocidental fez um refluxo do ateísmo ou do seu registro. Multiplicam-se anticlericais ao longo do milênio seguinte, escasseiam ateus e agnósticos. Muita gente não gosta de padres, freiras ou da instituição Igreja. Poucos, quase ninguém, duvidam da existência de Deus. Na verdade a acusação de hereges é sempre que a instituição da Igreja Católica não corresponde ao verdadeiro propósito divino. A heresia, como a dos cátaros ou valdenses, quase sempre, é um reforço da crença em Deus e acusação contra o abandono do divino pelo papado ou seus representantes.

Lucien Febvre, em uma obra clássica sobre a descrença e a obra de Rabelais, afirmava que era quase impossível existir um ateu até o Renascimento, porque não havia nem palavras ou estruturas mentais para comportar a negação de Deus. Anos depois, essa tese caiu por terra, mas ainda é certo dizer que o ateísmo rareou muito até o século 16.

Com o avançar da modernidade, emergem pensamentos claramente ateus, como o Barão D'Holbach e, posteriormente, o filósofo Ludwig Feuerbach. No sentido como o entendemos, o ateísmo é derivado do Iluminismo e do materialismo do século 19.

Já abordei outras vezes o que pode levar alguém ao ateísmo, caso tenha crescido crente. Existem muitos tipos de ateus. Um abunda entre jovens: o negador de Deus que faz da ideia uma cruzada contra pais (religiosos) e instituições. O ataque é uma plataforma contra a autoridade. Há o ateu em relação que questiona o mal. Assim como a origem do universo é um argumento forte para religiosos, a presença do mal em um mundo no qual tudo foi criado por Deus e nada existe sem seu consentimento é um bom ponto para céticos da já citada Teodiceia. Partem do argumento do filósofo Epicuro: "Quer impedir o mal, mas não é capaz? Então ele é impotente. Ele é capaz, mas não está disposto? Então, ele é malévolo. Ele é capaz e disposto? Donde vem então o mal?".

Há ateus da revolta. São os que pediram com intensidade pela cura de um filho, pelo fim de um problema grave e não alcançaram a graça. É uma revolta vingativa: Deus não me atendeu e eu me vingo dizendo que ele não existe.

O tipo mais complicado de ateu é o catequista, aquele que herdou o pior das religiões e fica agressivo pregando sua fé negativa.

Escasseiam religiosos e ateus tranquilos. Tanto a fé como a negação dela são um guarda-chuva poderoso para dores variadas.

Cresce, hoje, um pensamento chamado apateísmo, a indiferença em relação à religião. Não se trata de um ataque ou defesa de Deus, porém um afastamento da experiência religiosa. Funciona com o indivíduo pensando no sagrado como se pensa na política da Mongólia: existe, todavia tenho pouco interesse.

Nunca associei ética à fé ou a sua ausência. Temos ateus e religiosos éticos, bem como violências ligadas aos dois campos. O complicado, ultimamente, não é crer ou não crer em Deus. O difícil é crer no homem. É árduo acreditar em si. Bom domingo a todos vocês.

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A bênção, padre Fábio [BPF]

http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,a-bencao-padre-fabio,70002037734

Fé é uma gramática de percepção do universo, uma resposta a um anseio ancestral de proteção.

Leandro Karnal, O Estado de S.Paulo

11 Outubro 2017 | 02h00

Lancei o livro Crer ou Não Crer (Editora Planeta) no dia 3 de outubro, em São Paulo. A obra é um debate com o padre Fábio de Melo sobre fé e ateísmo.

Logo após a hora inicial de nossas falas, começaram os autógrafos e as indefectíveis fotos para as 600 pessoas presentes no teatro. Já lancei muitos livros com outros autores e tenho prática em congelar o sorriso por algumas horas, à custa de fundos sulcos bilaterais. Sinto que morrerei como a personagem Coringa do Batman, com um sorriso congelado.

Observo muito o mundo e as pessoas, mesmo quando pareço blasé. O padre Fábio estava ao lado mais próximo das pessoas que vinham até a mesa. Ao se aproximarem, muitos (a maioria) pediam bênção para ele. Alguns beijavam a mão ou solicitavam uma oração mais específica. Eu não ouvia, desde minha infância interiorana, pessoas pedindo a bênção a um sacerdote. Supunha hábito escasso e antigo, pouco presente em uma metrópole como São Paulo. Ledo engano: passei quase toda a noite ao lado de um repetido e carinhoso mantra: "A bênção, padre", seguido de um benevolente "Deus te abençoe, meu filho/minha filha".

Sou estudioso de religião e de religiosidades e achei o fato curioso. Amanhã lembraremos os 300 anos do encontro da imagem de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil. Tendo com a religião uma relação intelectual, percebi que eu poderia estar perdendo uma ligação com o imenso rio subterrâneo da prática da fé que aflora no pedido de uma bênção. É um verdadeiro aquífero guarani teológico sob o solo que piso.

Os acadêmicos que trabalham com expressões institucionais ou antropológicas da fé observam muitas coisas, mas vivenciam pouco o cotidiano das crenças. A bênção é um desejo, um anseio, um talismã e uma postura de vida.

Lembrei-me da conhecida experiência soviética de reprimir o Cristianismo ortodoxo por 70 anos. Igrejas foram demolidas, seminários fechados, publicações confiscadas. Na Polônia socialista, até o controle do papel era uma arma contra a Igreja Católica. Fidel Castro suspendeu o feriado do Natal. Passada a interdição ou a proibição, a religiosidade e as instituições religiosas voltam com força enorme. O aquífero irrompe em gêiseres, como em vasos comunicantes.

Um exame de datação científica do Santo Sudário revelou confecção no século 14. Logo, o pano de Turim era uma fraude. Debates posteriores lembraram da possibilidade de contaminação por materiais mais recentes, como velas, algo que pode ter alterado por completo o rigor da prova. Suspeito que, se um exame revelasse a etiqueta made in China no sacro pano, em nada abalaria a devoção.

A fé não funciona na chave da prova empírica, pelo menos para a maioria das pessoas. Não é uma prática forense investigativa que anima o romeiro, porém a busca de uma resposta que nenhuma ciência pode lhe fornecer.

A fé é uma gramática de percepção do universo, uma prática, uma resposta a um anseio ancestral de proteção, uma sociabilidade, uma identidade e um hábito. As instituições podem ajudar ou atrapalhar, mas não são as formadoras principais da crença. Tanto intelectuais ateus como teólogos religiosos entendem pouco de povo e de fé. A massa está absolutamente distante das vias de Tomás de Aquino para provar que Deus existe de forma lógica, ou das contestações de Richard Dawkins para provar que qualquer deus é um delírio. Teólogos e intelectuais ateus falam para si, em redomas afastadas do mundo, fazendo estardalhaço pelos seus narcisos.

Ali, nas pessoas que vinham buscar uma foto e um autógrafo, existia também uma demanda que encontrava um presbítero famoso. Talvez o maior debate entre ateu e crente não estivesse no texto ou nas palavras, mas nos homens e mulheres com adereços votivos, escapulários, terços ao pescoço e até uma efígie do padre Reus (jesuíta que morreu com fama de santo em São Leopoldo). Há uma gestualidade e uma vivência corporal da crença, há vetores antigos e fortes que acompanham o público religioso.

Lembrei-me de um episódio ocorrido em Campinas. Fila imensa de autógrafos que se arrastava como uma cáfila no Saara. Uma simpática senhora se aproxima com seu bebê. Fico de pé, pergunto quem vai tirar a foto. A mãe pede apenas que eu coloque a mão sobre a cabeça do filho. Aturdido, pergunto se ela sabe que sou ateu. Ela sorri: "Não importa". Dei a bênção apostólica ateia para a criança que sorriu. A senhora se retirou agradecida. Fé é tão forte que pode ser obtida de um professor ateu. As coisas são assim.

Chegamos ao terceiro centenário de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, a morena, atacada e despedaçada como quase todos os cidadãos da pátria amada, idolatrada e estilhaçada! Brasileira, Aparecida nunca desiste. Amanhã é o dia dela e, também, o Dia da Criança, o dia do descobrimento da América, o dia de Colombo, dia "de la raza", o aniversário de d. Pedro I e, acima de tudo, é feriado nacional. Folga em uma quinta é uma graça randômica que o calendário concede. Emendar agrada a ateus e a piedosos trabalhadores. Escolha um motivo e descanse. Bom feriado e boa semana para todos!