| Ateu ou materialista?Comentários sobre duas crônicas de Leandro Karnal
Valdemar W. Setzerwww.ime.usp.br/~vwsetzer
 21/10/17
 Estes comentários foram escritos inicialmente como e-mail 
        para Leandro Karnal, mas como não consegui o endereço dele, 
        inseri em meu site, com a esperança de poder enviar o endereço 
        desta página para ele. Leio as crônicas dele com muito interesse, pois não há 
        nenhuma em que eu não aprenda algo. Neste texto, vou comentar duas 
        delas, "A cabeça do ateu" (O Estado de São 
        Paulo de 1/10/17, p. C7, que abreviarei por CDA) e "A bênção, 
        padre Fábio" (11/10/17, p. C8, BPF). Elas estão copiadas 
        depois deste texto; uma busca nesta página com algum trecho das 
        citações pode localizá-lo nas crônicas, onde 
        se econtram os endereços dos originais. 1. Em primeiro lugar, o uso da palavra "ateu". Ela e 
        suas derivadas ocorrem 15 vezes em ACA e 7 vezes em BPF, donde se conclui 
        que ela é importante para o autor.  2. Numa dessas ocorrências, ele se declara ateu: "Aturdido, 
        pergunto se ela sabe que sou ateu" (BPF). 3. A definição dos dicionários para "ateu" 
        é, tipicamente, "aquele que nega a existência de Deus 
        ou deuses", como por exemplo em  www.dicio.com.br/ateu/ No Aurélio, 1ª edição, a definição 
  é "Diz-se daquele que não crê em Deus ou nos deuses." 4. Quero chamar a atenção para o fato de que, ao 
        alguém declarar-se ateu, está dizendo algo que não 
        tem sentido, é vazio. De fato, quando eu digo "eu nego (ou 
        não creio) que amanhã vai chover", essa minha frase 
        é perfeitamente compreensível, pois se entende claramente 
        o que quero dizer, já que "amanhã" e "chover" 
        são compreensíveis. No entanto, Karnal não consegue 
        explicar o que entende por "Deus" ou "deuses". Aliás, 
        não está sozinho nesse problema: hoje em dia essas palavras 
        perderam completamente seu significado. Examine-se meus artigos em meu 
        site: apesar de eu ser espiritualista, jamais uso as palavras "Deus" 
        e "deuses". 5. De fato, ele diz em CDA: "A concepção de 
        Deus responde a quase tudo. As perguntas encontram respostas para o crente: 
        origem das coisas, sentido da vida, moral, (sic) etc." Note que o 
        tal crente não consegue explicar como Deus criou as coisas, qual 
        afinal é o sentido da vida, o que é a moral. (Eu distingo 
        ética, que é corporativa, comunitária, da moral, 
        que é individual.) Muito menos ele mesmo consegue explicar, pois 
        tudo isso não deve lhe fazer sentido, como explico adiante, apesar 
        de reconhecer que "[...] a origem do universo é um argumento 
        forte [...]" De fato, as origens da matéria e da energia no 
        universo não fazem sentido físico. É um dos argumentos 
        que uso em favor do espiritualismo. A propósito, os limites do 
        universo também não fazem sentido físico. 6. Jamais uso a palavra "ateu". Acho muito mais adequada 
        a denominação "materialista" ou "fisicalista", 
        referindo-se a alguém que tem, idealmente como hipótese 
        de trabalho e não como crença, a concepção 
        de mundo de que só há matéria, energia e processos 
        físicos no universo. Assim, parece-me que muito melhor teria sido 
        Karnal denominar-se "materialista" e não "ateu". 
        Curiosamente, como costumo dizer, materialista é uma pessoa que 
        vive e trabalha em um edifício que não tem o andar térreo, 
        pois a física não sabe o que é a matéria. 
        Por exemplo, o elétron não é uma bolinha e não 
        gira em torno do núcleo, como muita gente aprendeu erradamente. 7. No CDA ele se refere duas vezes aos agnósticos. Agnosticismo 
        é a concepção de que o que é metafísico 
        não é acessível, isto é, admite-se apenas 
        o que pode ser percebido com nossos sentidos ou detectado por intermédio 
        de máquinas. Também não gosto dessa denominação. 
        Afinal, um agnóstico não percebe os seus pensamentos com 
        seus sentidos, e sim com o próprio pensar. A rigor, ele não 
        deveria admitir a existência de seus pensamentos, de seus sentimentos 
        e de sua vontade, pois ele também não os percebe com seus 
        sentidos. Não há explicação física 
        para essas atividades interiores. Não deveria admitir nem mesmo 
        sua memória, pois não se sabe como algo simples como a representação 
        2 do número dois está armazenada em nós e como se 
        faz acesso a ela. A propósito, tomem-se todas as possíveis 
        representações simbólicas do dois, como 2, II, ii, 
        .., :, dois, due, deux, dos, two, dva, shtaim, duas vacas etc. Agora tome-se 
        o que há de comum entre todas as possíveis representações 
        do dois: trata-se de um conceito puro, que não tem representação 
        simbólica e, portanto, não pode estar armazenado fisicamente 
        dentro de nosso corpo. No entanto, trabalhamos mentalmente com esse conceito, 
        em particular na matemática. Essa é mais uma evidência 
        para eu ser espiritualista: a memória não é física, 
        e podemos trabalhar mentalmente com coisas que não têm representação 
        física. Esse é o caso de todas as figuras geométricas 
        ideais, como uma circunferência  jamais alguém viu 
        uma perfeita. Aliás, muitos neurocientistas estão reconhecendo 
        que a memória é ilimitada: ninguém teve a vivência 
        de querer memorizar um número de telefone ou o nome de alguém 
        e sentir que não há mais "espaço" para 
        isso. Se a memória é ilimitada, ela não pode ser 
        física. 8. Além de ateísmo e agnósticismo, em CDA 
        Karnal menciona o ceticismo (em relação a Protágoras). 
        Ceticismo é uma atitude cientifica e intelectualmente sadia, e 
        deveria ser aplicada a tudo, inclusive às religiões. No 
        entanto, muitos dos que se denominam céticos são na verdade 
        materialistas, como por exemplo Michael Shermer, responsável da 
        coluna mensal "Skeptics" da revista Scientific American. Ele 
        ridiculariza qualquer coisa que tenha a ver com espiritualidade. 9. Além dos ateus, agnósticos e céticos à 
        la Shermer, eu classifico como materialistas os positivistas. Parece-me 
        que todas essas denominações tentam esconder o que os materialistas 
        ou fisicalistas realmente são: pessoas que negam existência 
        de qualquer coisa que não seja a matéria, a energia e processos 
        físicos.  10. Eu respeito os materialistas coerentes. Eles estão muito 
        bem na onda do pensamento moderno, que em minha opinião deveria 
        começar a ser abandonada. A maioria, senão quase todos os 
        cientistas e intelectuais são materialistas e a ciência usa 
        exclusivamente métodos materiais. Sua concepção de 
        mundo coloca os materialistas com o pé bem no chão (material...). 
        Mas aquela coerência leva necessariamente a certas conclusões. 
        Por exemplo, o materialista deveria negar o livre arbítrio, que 
        não tem sentido do ponto de vista material: da matéria não 
        pode advir liberdade, pois ela segue inexoravelmente as "leis" 
        e condições físicas.  11. Eu tenho uma teoria de como algo não físico 
        pode atuar sobre o mundo físico: usando transições 
        não deterministas, isto é, escolhendo qual transição 
        física, entre várias possíveis, deve ser tomada. 
        Essa decisão não requer energia, pois não se passa 
        fisicamente; a transição em si, sim. 12. Em CDA Karnal escreveu "No sentido como o entendemos, 
        o ateísmo é derivado do iluminismo e do materialismo do 
        século 19." Eu acho que o materialismo começou efetivamente 
        em meados do século 18, por exemplo com o livro de La Mettrie, 
        "L'Homme-Machine", de 1748. Mas sua popularização 
        deu-se com Darwin no meio do 19. Antes do séc. 18 todos sentiam 
        que havia algo transcendental à matéria, seja por vivência 
        própria ou por tradição, em geral religiosa. 13. E por falar em materialismo e em tradição religiosa, 
        acho que justamente as religiões foram as grandes impulsionadoras 
        do materialismo. A sua atitude é dogmática, por exemplo, 
        quanto à virgindade da Maria (que claramente é um símbolo 
        para algo mais profundo, como o são as parábolas do Novo 
        Testamento ou os 7 dias da Criação), o celibatarismo, o 
        uso do solidéu pelos judeus religiosos, os horrores perpetrados 
        falsamente em nome do cristianismo e, principalmente, a falta de busca 
        por uma compreensão e o apelo para a crença. Essas atitudes 
        obviamente afastam quem, como ser humano moderno, quer compreender e não 
        acreditar, e não se satisfaz com imagens ou símbolos. 14. Muitos materialistas o são, com muita razão, 
        por medo de caírem na crendice, no dogmatismo e no misticismo, 
        pois é o que encontram por aí, especialmente nas religiões 
        instituídas. Têm medo de ter que abdicar de seu pensamento 
        claro e de sua busca por compreensão.  15. Ocorre que existe espiritualismo que procura compreender. 
        Acho que ele começou com Kardec (não sou espírita 
        e não acho que o mediunismo seja uma forma adequada para se obter 
        conhecimento do mundo espiritual, mas reconheço o valor inovador 
        de Kardec), continuou com a Blavatsky e teve seu pináculo com Rudolf 
        Steiner, em minha opinião ainda não ultrapassado. Este último 
        apresenta uma teoria espiritual extremamente abrangente, logicamente coerente, 
        que não contradiz fatos científicos (mas pode contradizer 
        certos julgamentos científicos) e com várias aplicações 
        práticas de sucesso, como a pedagogia Waldorf. 16. Em CDA Karnal fala do mal. De um ponto de vista espiritual 
        ele é perfeitamente compreensível: uma das missões 
        da humanidade é o desenvolvimento da liberdade. Se só houvesse 
        o bem, não poderíamos fazer escolhas e ser livres. Estaríamos 
        todos ainda na magnífica imagem do Paraíso bíblico, 
        como dizia meu sogro Rudolf Lanz, "Todos de bata cor de rosa tocando 
        lira, que chatice!" Para haver o mal, a divindade tinha que se retirar, 
        para deixar de nos guiar como acontecia na antiguidade muito remota, o 
        que é muito bem representado pelas imagens bíblicas, como 
        a da expulsão do Paraíso. Aliás, a ideia agostiniana 
        do Pecado Original bíblico está totalmente errada: é 
        só ler a Gênese com cuidado e verificar-se-á que antes 
        do contato com o mal o ser humano é descrito como não tendo 
        nem consciência nem autoconsciência. O que acontece imediatamente 
        depois de comerem do "fruto da árvore do conhecimento do bem 
        e do mal" (Gen 2:17)? "Os seus olhos se abriram" (3:7), 
        isto é, a humanidade adquiriu consciência (que os animais 
        também têm, em outro grau), e depois "viram que estavam 
        nus" (3:7), isto é, ela adquiriu autoconsciência. Note-se 
        que uma criança pequena tem autoconsciência em um grau muito 
        incipiente, por isso não sente vergonha, e normalmente só 
        começa a falar "eu" ao redor dos 3 anos de idade. 17. De um ponto de vista materialista, bem e mal não fazem 
        sentido. A matéria não tem moral, simplesmente é. 
        Aliás, a ciência baseada exclusivamente na matéria, 
        como é a ciência moderna, também é amoral, 
        pois moral, por ser individual, tem que necessariamente ser subjetiva, 
        a não ser que se baseie em conhecimento e não em sentimentos, 
        e a objetividade é um dos pilares da ciência. Por exemplo, 
        conhecendo-se que uma das missões do ser humano é o desenvolvimento 
        do livre arbítrio, conclui-se que não se deve interromper 
        esse processo em nenhuma pessoa, e portanto não se deve matar ninguém 
        (mas alguém perigoso para a sociedade pode ser confinado). 18. Expus essas e outras ideias em vários artigos que estão 
        em meu site. Karnal citou Richard Dawkins e seu livro Deus, um delírio 
        (essa tradução do título está errada, o original 
        é God, a delusion, "um engano"). Veja-se a minha 
        resenha desse livro, onde concordo com muitas coisas dele, em especial 
        várias críticas contra as religiões, mas não 
        concordo com muitos de seus pontos de vista. Pudera, Dawkins é 
        materialista e eu não sou! www.ime.usp.br/~vwsetzer/review-the-god-delusion.html Nessa resenha encontram-se várias de minhas concepções. 
  Pode ser lido salteado. 19. Outros artigos meus a respeito desses assuntos, copiando de 
        minha home page, seção Espiritualidade: 8.2 Artigo "Por 
        que sou espiritualista". Publicado em sua versão em inglês 
        na revista eletrônica Southern Cross Review, No. 55, Sept./Oct. 
        2007.  8.4 Artigo "Ciência, 
        religião e espiritualidade". Complementa e detalha alguns 
        tópicos do artigo 8.2, mas é independente do mesmo, devendo 
        ser lido em primeiro lugar. 8.6 Artigo "Consequências 
        do materialismo". 8.10 Artigo "Respostas 
        a 16 questões céticas sobre religião". Em particular, o "Ciência, religião e espiritualidade" 
  mostra como a atual cisão entre ciência e religião, o que 
  Stephen Jay Gould chamou de NOMA, "Non-overlapping magisteria", pode 
  ser resolvida se ambas mudarem seus métodos. 20. Uma palavra sobre o que Karnal chamou em BPF de "anseio 
        ancestral de proteção". Essa visão de que os 
        seres humanos criaram as divindades por medo da natureza é uma 
        típica elucubração materialista. Curiosamente, segundo 
        essa interpretação toda a humanidade era medrosa, pois na 
        antiguidade toda ela era espiritualista. Uma outra interpretação 
        de um ponto de vista espiritualista, é que naqueles tempos a humanidade 
        ainda tinha uma percepção do mundo espiritual, pois originou-se 
        nele. Mais uma bela imagem da bíblia: "E criou Deus [no original, 
        os Elohim] o homem à sua semelhança", Gen. 2:27; como 
        a divindade não é física, essa criação 
        foi de um ser humano ainda não físico. Porém, na 
        antiguidade remota não havia o intelecto capaz de compreender as 
        vivências e expressá-las conceitualmente, de modo que as 
        expressões eram feitas em forma de imagens, de símbolos. 
        Aos poucos a humanidade foi perdendo o contato com o mundo espiritual, 
        passando a ter dele meras recordações e tradições. 
        Em compensação, foi desenvolvendo um pensar claro e conceitual. 
        Por isso a partir de um certo ponto nessa queda na matéria, começou-se 
        a criar imagens do seres divinos com todas as características humanas, 
        como na mitologia grega. Qualquer interpretação do mundo 
        espiritual com as características físicas está errada, 
        como no trágico livro do Chico Xavier Nosso lar, onde no 
        mundo espiritual ocorrem ministérios, veículos de transporte, 
        hospitais, transmissões radiofônicas, bônus por horas 
        extras de trabalho etc. ad nauseam. Hoje em dia é possível 
        observar conscientemente o mundo espiritual e transmitir essas vivências 
        conceitualmente, como o fez Rudolf Steiner. Para isso é preciso 
        desenvolver adequadamente órgãos de percepção 
        suprassensível que estão latentes em todos os seres humanos, 
        e um intelecto sadio capaz de conceituar. 21. Finalmente, nada do que escrevi exige crença, fé 
        ou religião. + + + + + + + + AS DUAS CRÔNICASA cabeça do ateu [CDA]http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,a-cabeca-do-ateu,70002021758 O complicado, ultimamente, não é crer ou não 
        crer em Deus. O difícil é crer no homem. Leandro Karnal, O Estado de S. Paulo 01 Outubro 2017 | 03h00 Acho estranha a palavra ateu. Ela deriva do grego e significa a negação 
  de Deus ("a" significa negação e "theos" deus). 
  Como toda definição, ela fala mais dos valores da pessoa que a 
  utiliza do que sobre o alvo do termo. Seria como definir a mim, Leandro, como 
  não asiático ou não peixe. Conhecer pela negação 
  é problemático.  A concepção de Deus responde a quase tudo. As perguntas encontram 
  resposta para o crente: origem das coisas, sentido da vida, moral, etc. Deus 
  é a hipertrofia da racionalidade, porque tudo se torna lógico 
  com Ele. Mesmo não construindo um campo empírico irrefutável, 
  o religioso pode responder a quaisquer desafios. O crente sabe sobre a origem 
  das coisas (teogonia) e questões do bem e do mal (teodiceia). No campo 
  religioso, há resposta para uma inocente criança natimorta e para 
  um vilão nonagenário atuante. Uma mulher extraordinária 
  como dona Zilda Arns morre em um terremoto? Há explicação. 
  Um político corrupto recupera-se de um câncer? Também encontramos 
  na fé a elucidação do enigma ou o reconhecimento de caminhos 
  insondáveis para mim e acessíveis ao Ser Supremo.  Um ateu tem menos respostas do que um religioso. Porém, ao eliminar 
  a hipótese Deus, ele comete mais do que uma restrição metodológica. 
  A voz que nega a existência de divindade(s) é lida como negadora 
  de todo o fundamento moral e social. O edifício social cimenta-se com 
  crenças e Deus é o fiador do sistema.  Protágoras de Abdera, famoso filósofo grego clássico, 
  sofreu um processo em plena guerra do Peloponeso. Seu tratado Sobre os Deuses 
  afirma que "não posso saber se existem ou não". A dúvida 
  de Protágoras nasce de duas posições. A primeira é 
  sofista: relativização das verdades absolutas. A segunda é 
  seu antropocentrismo radical: o homem é a medida de todas as coisas. 
  O ceticismo de Protágoras é muito mais agnóstico do que 
  ateu. Ele duvida se podemos saber algo sobre os deuses, não exatamente 
  a negação da existência deles.  As ideias de Protágoras não eram uma novidade na Atenas do quinto 
  século antes da era cristã. A novidade é a perseguição: 
  seus livros foram queimados e ele foi expulso da cidade. O Estado começava 
  a alcançar quem duvidava dos deuses oficiais. Similar e contemporâneo 
  foi o processo contra Anaxágoras de Clazômena (foi professor de 
  Péricles) que buscava causas naturais para os fenômenos como terremotos 
  e raios. Não sabemos ao certo se ele foi morto, preso ou exilado. A democrática 
  cidade-Estado se abalava com ideias de agnosticismo ou ateísmo. O grande 
  Sócrates viveria também a acusação de impiedade. 
 A vitória do Cristianismo na Europa Ocidental fez um refluxo do ateísmo 
  ou do seu registro. Multiplicam-se anticlericais ao longo do milênio seguinte, 
  escasseiam ateus e agnósticos. Muita gente não gosta de padres, 
  freiras ou da instituição Igreja. Poucos, quase ninguém, 
  duvidam da existência de Deus. Na verdade a acusação de 
  hereges é sempre que a instituição da Igreja Católica 
  não corresponde ao verdadeiro propósito divino. A heresia, como 
  a dos cátaros ou valdenses, quase sempre, é um reforço 
  da crença em Deus e acusação contra o abandono do divino 
  pelo papado ou seus representantes.  Lucien Febvre, em uma obra clássica sobre a descrença e a obra 
  de Rabelais, afirmava que era quase impossível existir um ateu até 
  o Renascimento, porque não havia nem palavras ou estruturas mentais para 
  comportar a negação de Deus. Anos depois, essa tese caiu por terra, 
  mas ainda é certo dizer que o ateísmo rareou muito até 
  o século 16.  Com o avançar da modernidade, emergem pensamentos claramente ateus, 
  como o Barão D'Holbach e, posteriormente, o filósofo Ludwig Feuerbach. 
  No sentido como o entendemos, o ateísmo é derivado do Iluminismo 
  e do materialismo do século 19.  Já abordei outras vezes o que pode levar alguém ao ateísmo, 
  caso tenha crescido crente. Existem muitos tipos de ateus. Um abunda entre jovens: 
  o negador de Deus que faz da ideia uma cruzada contra pais (religiosos) e instituições. 
  O ataque é uma plataforma contra a autoridade. Há o ateu em relação 
  que questiona o mal. Assim como a origem do universo é um argumento forte 
  para religiosos, a presença do mal em um mundo no qual tudo foi criado 
  por Deus e nada existe sem seu consentimento é um bom ponto para céticos 
  da já citada Teodiceia. Partem do argumento do filósofo Epicuro: 
  "Quer impedir o mal, mas não é capaz? Então ele é 
  impotente. Ele é capaz, mas não está disposto? Então, 
  ele é malévolo. Ele é capaz e disposto? Donde vem então 
  o mal?". Há ateus da revolta. São os que pediram com intensidade pela 
  cura de um filho, pelo fim de um problema grave e não alcançaram 
  a graça. É uma revolta vingativa: Deus não me atendeu e 
  eu me vingo dizendo que ele não existe.  O tipo mais complicado de ateu é o catequista, aquele que herdou o pior 
  das religiões e fica agressivo pregando sua fé negativa.  Escasseiam religiosos e ateus tranquilos. Tanto a fé como a negação 
  dela são um guarda-chuva poderoso para dores variadas. Cresce, hoje, um pensamento chamado apateísmo, a indiferença 
  em relação à religião. Não se trata de um 
  ataque ou defesa de Deus, porém um afastamento da experiência religiosa. 
  Funciona com o indivíduo pensando no sagrado como se pensa na política 
  da Mongólia: existe, todavia tenho pouco interesse.  Nunca associei ética à fé ou a sua ausência. Temos 
        ateus e religiosos éticos, bem como violências ligadas aos 
        dois campos. O complicado, ultimamente, não é crer ou não 
        crer em Deus. O difícil é crer no homem. É árduo 
        acreditar em si. Bom domingo a todos vocês.  + + + + + + + + A bênção, padre Fábio [BPF]http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,a-bencao-padre-fabio,70002037734 Fé é uma gramática de percepção 
        do universo, uma resposta a um anseio ancestral de proteção. Leandro Karnal, O Estado de S.Paulo 11 Outubro 2017 | 02h00 Lancei o livro Crer ou Não Crer (Editora Planeta) no dia 3 de 
        outubro, em São Paulo. A obra é um debate com o padre Fábio 
        de Melo sobre fé e ateísmo. Logo após a hora inicial de nossas falas, começaram os 
        autógrafos e as indefectíveis fotos para as 600 pessoas 
        presentes no teatro. Já lancei muitos livros com outros autores 
        e tenho prática em congelar o sorriso por algumas horas, à 
        custa de fundos sulcos bilaterais. Sinto que morrerei como a personagem 
        Coringa do Batman, com um sorriso congelado.  Observo muito o mundo e as pessoas, mesmo quando pareço blasé. 
        O padre Fábio estava ao lado mais próximo das pessoas que 
        vinham até a mesa. Ao se aproximarem, muitos (a maioria) pediam 
        bênção para ele. Alguns beijavam a mão ou solicitavam 
        uma oração mais específica. Eu não ouvia, 
        desde minha infância interiorana, pessoas pedindo a bênção 
        a um sacerdote. Supunha hábito escasso e antigo, pouco presente 
        em uma metrópole como São Paulo. Ledo engano: passei quase 
        toda a noite ao lado de um repetido e carinhoso mantra: "A bênção, 
        padre", seguido de um benevolente "Deus te abençoe, meu 
        filho/minha filha".  Sou estudioso de religião e de religiosidades e achei o fato curioso. 
        Amanhã lembraremos os 300 anos do encontro da imagem de Nossa Senhora 
        Aparecida, padroeira do Brasil. Tendo com a religião uma relação 
        intelectual, percebi que eu poderia estar perdendo uma ligação 
        com o imenso rio subterrâneo da prática da fé que 
        aflora no pedido de uma bênção. É um verdadeiro 
        aquífero guarani teológico sob o solo que piso. Os acadêmicos que trabalham com expressões institucionais 
        ou antropológicas da fé observam muitas coisas, mas vivenciam 
        pouco o cotidiano das crenças. A bênção é 
        um desejo, um anseio, um talismã e uma postura de vida.  Lembrei-me da conhecida experiência soviética de reprimir 
        o Cristianismo ortodoxo por 70 anos. Igrejas foram demolidas, seminários 
        fechados, publicações confiscadas. Na Polônia socialista, 
        até o controle do papel era uma arma contra a Igreja Católica. 
        Fidel Castro suspendeu o feriado do Natal. Passada a interdição 
        ou a proibição, a religiosidade e as instituições 
        religiosas voltam com força enorme. O aquífero irrompe em 
        gêiseres, como em vasos comunicantes. Um exame de datação científica do Santo Sudário 
        revelou confecção no século 14. Logo, o pano de Turim 
        era uma fraude. Debates posteriores lembraram da possibilidade de contaminação 
        por materiais mais recentes, como velas, algo que pode ter alterado por 
        completo o rigor da prova. Suspeito que, se um exame revelasse a etiqueta 
        made in China no sacro pano, em nada abalaria a devoção. A fé não funciona na chave da prova empírica, pelo 
        menos para a maioria das pessoas. Não é uma prática 
        forense investigativa que anima o romeiro, porém a busca de uma 
        resposta que nenhuma ciência pode lhe fornecer.  A fé é uma gramática de percepção 
        do universo, uma prática, uma resposta a um anseio ancestral de 
        proteção, uma sociabilidade, uma identidade e um hábito. 
        As instituições podem ajudar ou atrapalhar, mas não 
        são as formadoras principais da crença. Tanto intelectuais 
        ateus como teólogos religiosos entendem pouco de povo e de fé. 
        A massa está absolutamente distante das vias de Tomás de 
        Aquino para provar que Deus existe de forma lógica, ou das contestações 
        de Richard Dawkins para provar que qualquer deus é um delírio. 
        Teólogos e intelectuais ateus falam para si, em redomas afastadas 
        do mundo, fazendo estardalhaço pelos seus narcisos.  Ali, nas pessoas que vinham buscar uma foto e um autógrafo, existia 
        também uma demanda que encontrava um presbítero famoso. 
        Talvez o maior debate entre ateu e crente não estivesse no texto 
        ou nas palavras, mas nos homens e mulheres com adereços votivos, 
        escapulários, terços ao pescoço e até uma 
        efígie do padre Reus (jesuíta que morreu com fama de santo 
        em São Leopoldo). Há uma gestualidade e uma vivência 
        corporal da crença, há vetores antigos e fortes que acompanham 
        o público religioso.  Lembrei-me de um episódio ocorrido em Campinas. Fila imensa de 
        autógrafos que se arrastava como uma cáfila no Saara. Uma 
        simpática senhora se aproxima com seu bebê. Fico de pé, 
        pergunto quem vai tirar a foto. A mãe pede apenas que eu coloque 
        a mão sobre a cabeça do filho. Aturdido, pergunto se ela 
        sabe que sou ateu. Ela sorri: "Não importa". Dei a bênção 
        apostólica ateia para a criança que sorriu. A senhora se 
        retirou agradecida. Fé é tão forte que pode ser obtida 
        de um professor ateu. As coisas são assim.  Chegamos ao terceiro centenário de Nossa Senhora da Conceição 
        Aparecida, a morena, atacada e despedaçada como quase todos os 
        cidadãos da pátria amada, idolatrada e estilhaçada! 
        Brasileira, Aparecida nunca desiste. Amanhã é o dia dela 
        e, também, o Dia da Criança, o dia do descobrimento da América, 
        o dia de Colombo, dia "de la raza", o aniversário de 
        d. Pedro I e, acima de tudo, é feriado nacional. Folga em uma quinta 
        é uma graça randômica que o calendário concede. 
        Emendar agrada a ateus e a piedosos trabalhadores. Escolha um motivo e 
        descanse. Bom feriado e boa semana para todos!   |