Os reinos da natureza segundo Allan Kardec e Rudolf Steiner

Valdemar W. Setzer
www.ime.usp.br/~vwsetzer
Original: 2/11/11; última revisão: 4/11/11

Introdução

Marcelo Pheula colocou uma postagem em outubro de 2011 no blog Espirit Book, sobre os reinos da natureza segundo o espiritismo de Allan Kardec (infelizmente Marcelo saiu do blog, e com isso seu texto foi retirado dele). Resolvi então postar naquele blog a visão sobre o mesmo assunto segundo a Antroposofia de Rudolf Steiner. Para isso, construí a tabela abaixo, colocando à esquerda o original do Marcelo, tal qual ele postou, inclusive com suas ênfases, e à direita meu texto sobre os mesmos tópicos, de modo que os leitores possam comparar as abordagens. A minha parte é um resumo de meu texto Uma introdução antroposófica à constituição humana; recomendo um aprofundamento nos livros de Rudolf Steiner "Teosofia" e "A Ciência Oculta" (que deveria chamar-se mais propriamente "A Ciência do Oculto", "oculto" no sentido de não ser perceptível pelos sentidos físicos).

Depois da comparação, mostro como os conceitos da Antroposofia são úteis na compreensão de vários fenômenos humanos.


Segundo Allan Kardec, por M. Pheula
Segundo Rudolf Steiner, por V.W. Setzer

Reino Mineral

Allan Kardec escreve pouco sobre esse reino. Diz-nos que ele é constituído de matéria inerte, e não possui mais do que uma força mecânica. Os minerais não têm vitalidade e nem movimentos próprios, sendo formado apenas pela agregação da matéria. São os chamados seres inorgânicos da natureza. A pedra, por exemplo, não apresenta sinal de vida. Pode-se dizer que o característico básico dessa fase é a atração, presenciado claramente no fenômeno do magnetismo.

Na intermediação com o reino vegetal, que lhe vem a seguir, investigações científicas descobriram a geração espontânea dos vírus nas estruturas cristalinas. Os vírus se situam na encruzilhada dos reinos mineral, vegetal e animal, como uma espécie de ensaio para ordenações futuras.

Reino mineral

Não tenho muito a acrescentar ao que o Marcelo colocou. Apenas que, por seguirem estritamente as leis físicas, aparecem nos cristais formas geométricas, provenientes das forças atômicas. O que ele denominou de "agregação" é o fato de os cristais e minerais em geral crescerem por deposição, isto é, por uma ação puramente externa. O mais importante é que um mineral só tem corpo físico e somente muda por ação externa.

Reino Vegetal

As plantas, compostas de matéria inerte, são dotadas de vitalidade. Elas não pensam, não têm mais do que a vida orgânica. Podem ser afetadas por ações sobre a matéria, mas não têm percepções; por conseguinte, não têm a sensação de dor. Como não pensam, não podem ter vontade, e não têm consciência de si mesma; nada mais possuem que um instinto natural e cego. O próprio instinto de conservação é puramente mecânico.

O característico básico dessa fase é a sensação.

Na intermediação com o reino animal (creio que erraram colocando hominal), que lhe vem a seguir, existe a zona dos vegetais carnívoros.

Reino vegetal

Esse reino é caracterizado pelo que se chama de "vida", sem se saber fisicamente do que se trata. Os fenômenos vitais mais importantes são o crescimento interior (por divisão celular), a regeneração dos tecidos, a reprodução, fluxos de fluidos (seiva), a troca gasosa (nas plantas, em um ritmo lento, alternando com o dia e a noite), e as formas orgânicas. Ao contrário do que colocou Marcelo, não é válido se dizer que os vegetais têm instinto, mesmo com a caracterização que ele deu, de ser "natural e cego". Quando uma planta volta-se para a luz (fototropismo) ou cresce para cima, contra a gravidade (geotropismo), não se trata em absoluto de instintos. São reações químicas ou físicas que produzem esses fenômenos. O mesmo vale para as plantas carnívoras: elas se fecham devido a uma reação físico-química. É também indevido dizer-se que as plantas têm sensações, como está no texto do Marcelo, e como ficará claro no próximo item. Mas o mais importante é o fato de que todos os fenômenos vitais são devidos a um membro não físico que não está presente nos minerais, denominado na Antroposofia de "corpo das forças formadoras", "corpo vital" ou, mais comumente, seguindo uma velha tradição, de "corpo etérico". Esse "etérico" não tem nada a ver com a antiga hipótese do éter, uma substância misteriosa onde se supunha que se propagavam as ondas eletromagnéticas, e que depois caiu em desuso na ciência, quando se constatou que, também misteriosamente até hoje, elas se propagam no vácuo – se são ondas, deve haver um meio físico para que se propaguem, como as moléculas da água ou as partículas de uma corda mantida presa numa extremidade e movendo-se a outra num mesmo plano. É também importante notar-se que a presença de um membro superior modifica os inferiores, por isso o corpo físico dos vegetais é tão distinto do dos minerais.

É interessante notar que, na Teosofia fala-se do "duplo etérico", mas para ela ele é físico, de uma substância física mais sutil [1]; enfatizo que para a Antroposofia o corpo etérico não tem absolutamente nada de físico, e só pode ser percebido por alguém que desenvolveu seus órgãos de percepção suprassensoriais (chacras, na terminologia hindu).

Reino Animal

Os animais, constituídos de matéria inerte e dotados de vitalidade, têm uma espécie de inteligência instintiva, limitada, com a consciência de sua existência e de sua individualidade. Eles não agem só por instinto. Além do instinto, não poderia negar a certos animais a prática de certos atos combinados, que denotam a vontade de agir num sentido determinado e de acordo com as circunstâncias. Há neles, portanto, uma espécie de inteligência, mas cujo exercício é mais precisamente concentrado sobre os meios de satisfazer às suas necessidades físicas e prover à conservação. Não há entre eles nenhuma criação, nenhum melhoramento; qualquer que seja a arte que admiremos em seus trabalhos, aquilo que faziam antigamente é o mesmo que fazem hoje. O João de Barro, por exemplo, constrói o seu ninho sempre da mesma maneira.

Pergunta 595 de O Livro dos Espíritos - Os animais têm livre arbítrio?

- Não são simples máquinas, mas sua liberdade de ação é limitada pelas suas necessidades, e não pode ser comparada à do homem. Sendo muito inferiores a este, não têm os mesmos deveres. Sua liberdade é restrita aos atos da vida material. A sua escolha é mecânica, por instinto. Na comparação do homem ao animal, Allan Kardec na pergunta 597 A de O Livro dos Espíritos diz: "há, entre a alma dos animais e a do homem tanta distância quanto entre a alma do homem e Deus". A característica principal dessa fase é a elaboração do instinto. Na zona de intermediação entre o reino animal e o reino hominal estão situados os antropóides.

Reino animal

Os animais têm as características citadas das plantas, mas ainda outras que elas não têm, como por exemplo movimento, órgãos ocos, troca gasosa rápida, percepção sensorial, sensações e sentimentos, vontade (que leva a ações), instintos, consciência, memória instintiva (isto é, não consultável por decisão própria). Tudo isso que as plantas não têm é devido a um membro não físico adicional, além do corpo etérico (que dá aos animais as funções vitais) chamado na Antroposofia e em várias correntes esotéricas de Corpo Astral (explico o porquê dessa nomenclatura mais adiante). O corpo astral também só pode ser percebido suprassensorialmente; trata-se da velha conhecida "aura".

A presença do corpo astral modifica o corpo etérico e portanto o corpo físico; por isso os animais têm forma distinta das plantas. Atenção: quando se examinam os vários reinos da natureza do ponto de vista espiritual, é muito importante partir-se dos casos superiores, e não de casos de transição. Assim, deve-se examinar árvores com o ciclo completo (com flores e frutos) e animais superiores para se ter uma ideia clara das diferenças essenciais entre os vários reinos.

Acho bom caracterizar o que se deveria chamar de sensação e de sentimento, para que esses conceitos fiquem claros; para isso vou dar um exemplo trivial. Quando se come uma banana, sente-se o gosto próprio dessa fruta: essa é uma sensação. Em seguida, ao se sentir esse gosto, tem-se um prazer (se se aprecia banana, e se ela estiver madura) ou um desprazer (se não se aprecia banana ou se ela estiver verde): esse é um sentimento. Pode-se dizer que se teve os sentimentos de simpatia ou de antipatia pela banana ou, ainda mais basicamente, o de atração ou repulsa pela banana. Por outro lado, percepção sensorial é um fenômeno físico, de se perceber algo transmitido por um objeto exterior por meio de um órgão dos sentidos. Quando um animal vê um objeto, a luz irradiada (ou refletida) pelo objeto penetra em seus olhos e provoca fenômenos físicos no sistema óptico, até a chegada no cérebro. Tudo isso é percepção. A sensação é um fenômeno puramente astral, não é físico e, por ser astral, não pode ser associado a vegetais. Usei o gosto para simplificar uma sensação, mas há muitas outras sensações, não tão simples, como a de uma cor, a de um som etc. Tudo isso provoca uma reação do corpo astral.

Reino Hominal

O homem, tendo tudo o que existe nas plantas e nos animais, domina todas as outras classes por uma inteligência especial, ilimitada, que lhe dá a consciência do seu futuro, a percepção das coisas extramateriais e o conhecimento de Deus.

André Luiz em Evolução em Dois Mundos cita que o princípio inteligente estagiando na ameba adquire os primeiros automatismos do tato; nos animais aquáticos, o olfato; nas plantas, o gosto; nos animais, a linguagem. Hoje somos o resultado de todos os automatismos adquiridos nos vários reinos da natureza. Assim, no reino mineral adquirimos a atração; no reino vegetal, a sensação; no reino animal, o instinto; no reino hominal, o livre-arbítrio, o pensamento contínuo e a razão. (Xavier, 1977, cap. 4) Diz ainda que "nas linhas da civilização o reflexo precede o instinto, este à atividade refletida, esta à inteligência, esta, por sua vez, à razão e, finalmente, esta à responsabilidade".

A característica principal deste reino, como uma síntese de todos os anteriores, é o aparecimento do Pensamento Contínuo, do Livre-Arbítrio e da Responsabilidade Moral.

O homem é um ser a parte. O Espírito, encarnando-se no homem, transmite-lhe o princípio intelectual e moral, que o torna superior aos animais. O Espírito ao purificar-se liberta-se pouco a pouco da influência da matéria.

Reino humano

Os seres humanos têm em si todas as características básicas dos vegetais e dos animais, e muitas mais, como posição ereta (devido à coluna vertebral em forma de duplo S, que nenhum animal tem), falta de couro, pelo, escamas ou penas, autoconsciência (que é diferente da consciência), memória consultável, aparelho fonador característico (por exemplo, com abóboda palatina, não existente nos macacos), a fala, o pensar, o livre arbítrio e a moral. Tudo isso é devido a mais um membro suprassensível, denominado na Antroposofia de Eu, que vou chamar de Eu Superior, para distinguir do Eu inferior que se manifesta devido à atuação do primeiro nos corpos etérico (onde, por sinal, está nossa memória, que não é física) e astral (onde estão nossos gostos etc.) e mesmo na configuração individual do corpo físico.

O nosso Eu Superior é o que temos de realmente espiritual dentro de nós. É por meio dele que podemos, usando o pensamento, chegar ao mundo espiritual e captar tudo o que é verdadeiro e eterno, como os entes matemáticos (nunca ninguém viu uma circunferência perfeita, mas podemos todos chegar com nosso Eu Superior ao seu conceito, que está no mundo espiritual, ou o mundo platônico das ideias), bem como os conceitos que estão por detrás dos objetos que percebemos sensorialmente. De fato, não se "vê" uma porta, o que se vê são impulsos luminosos; "porta" é o conceito do objeto visto, existente no mundo espiritual, a que nosso pensamento chega por ação do Eu. O desenvolvimento do pensamento por meio da meditação, capacitando-o a ser independente do mundo físico, é, segundo a Antroposofia, o caminho correto para se chegar ao mundo espiritual, pois aí se conserva a consciência e a autoconsciência, absolutamente necessárias para se poder investigar cientifica e corretamente aquele mundo, como fez Rudolf Steiner.

Note-se que a "presença" do Eu no ser humano provoca uma mudança nos membros inferiores. Por isso o corpo etérico passa a ser o veículo da memória, que agora pode ser consultada por ação do Eu.

O Eu é a centelha divina, puramente espiritual, dentro de cada ser humano. É com ele que participamos do mundo espiritual, e por isso pode ser denominado de "espírito". O desenvolvimento do Eu é a grande missão da humanidade. Esse desenvolvimento é o da liberdade e do amor altruísta.


Aplicações

Vou dar aqui cinco aplicações desses conceitos.

1) Quando dormimos profundamente, perdemos a consciência, a autoconsciência e a capacidade de consultar a memória, não temos sensações e sentimentos, mas continuamos com nossas funções vitais. Portanto, na pessoa adormecida está o corpo físico impregnado pelo corpo etérico, mas separaram-se o corpo astral e o Eu. O corpo astral expande-se durante o sono até as constelações do zodíaco, daí o nome que ele tem. Só que as vivências do corpo astral nos mundos astral e espiritual não são lembradas porque o corpo etérico, o veículo da memória, permaneceu junto ao corpo físico. Mas na transição, como ao acordar, podem existir momentos em que aquelas vivências são gravadas na memória; sem um preparo para observar o mundo espiritual, a pessoa associa essas lembranças com suas memórias provindas do mundo físico, daí os sonhos (que são, portanto, criados nesse caso no momento do despertar). Rudolf Steiner diz que o mais importante neles são a atmosfera que revelam, e não as imagens, que são retiradas da memória proveniente do mundo físico e, portanto, caóticas, pois a sua origem não é física. As mesmas vivências durante o despertar podem ser interpretadas por meio de imagens diferentes.

2) Na morte, também o corpo etérico se separa do corpo físico, por isso cessam as funções vitais.

3) Após a morte, depois de algum tempo o corpo etérico se desfaz, sobrando um resto dele no mundo etérico (esse resto é em geral o que é captado pelos médiuns, daí as lembranças e até habilidades de uma pessoa morta), e depois de muito mais tempo o corpo astral se desfaz, sobrando também um resto dele no mundo astral. Depois de, normalmente, muitas centenas de anos, o Eu volta a incorporar um novo corpo astral, depois um novo corpo etérico e, finalmente, tudo isso impregna um novo corpo físico, em geral do sexo oposto ao anterior (para ter vivências complementares), no embrião gerado por um casal longamente escolhido – e se este permitiu a concepção –, preparando para um novo nascimento. Portanto, o que se reencarna é o Eu Superior, por isso não temos memória das vidas passadas, não conservamos temperamento, gostos, desejos etc. No entanto, as vidas passadas ficaram gravadas na "memória universal" ("crônica do acacha"), que pode ser consultada conscientemente com o devido desenvolvimento dos órgãos suprassensíveis, o que deve ser acompanhado de uma grande purificação do corpo astral (ver meu texto sobre o desenvolvimento das disposições anímicas).

4) É devido à existência do Eu, e da autoconsciência que ele nos dá, que podemos ter livre arbítrio, como qualquer pessoa pode constatar ao fazer um exercício de concentração mental ou de meditação, isto é, determinar seu próximo pensamento. Se nosso cérebro gerasse os pensamentos, essa ação seria impossível; aliás, os pensamentos seriam caóticos, e não poderíamos ter liberdade, pois da matéria não pode advir liberdade.

5) O Eu não tem sexo, nem nacionalidade, nem religião e nem raça ou etnia. É por causa disso e do desenvolvimento recente do Eu que os direitos humanos universais e o universalismo tornaram-se o que são hoje; respeita-se o Eu da pessoa alheia, não os seus aspectos exteriores. A propósito, qualquer associação de algo escrito ou dito por Steiner com racismo é, portanto, fruto de pura incompreensão.

Como se vê, a ciência materialista jamais vai compreender o que é o sono, sonho, morte, e nem mesmo o pensar, o sentir e o querer, pois são fenômenos que não são físicos, apesar de serem acompanhados por manifestações físicas.

Alguém poderia perguntar: 1) Mas se o cérebro não gera as funções mentais, então para que ele serve? 2) Como é que o espírito age pode agir sobre a matéria, se ele não tem consistência física? A primeira é respondida pela Antroposofia. Para a segunda, uma questão milenar, tenho minha própria teoria. Mas tudo isso ficará para um outro artigo, dependendo do interesse dos leitores.

Espero com esse texto ter esclarecido bem sucintamente a constituição suprassensível do ser humano e dos outros reinos, e exemplificado um pouquinho a compreensão que a Antroposofia dá dos fenômenos suprassensíveis. Mas isso tudo é para pessoas espiritualistas que buscam compreensão.

[1] No livro de Annie Besant, O Homem e seus Corpos (trad. M. de Alemquer, São Paulo: Ed. Pensamento, 1963, pp. 14-16) a característica física do "duplo etérico" da Teosofia é bem clara: "Segundo os materiais de que são compostos [os dois ‘princípios’ do corpo físico], subdividem-se em: corpo grosseiro e duplo etérico, dos quais o último é a reprodução exata, partícula por partícula, do corpo visível; ... a expressão duplo etérico define exatamente a natureza e a constituição da parte mais sutil do corpo físico ... As subdivisões [da ‘matéria física’] são: o sólido, o líquido, o gasoso, e o etérico." É interessante também notar que no capítulo seguinte ela introduz o próximo membro da constituição humana, conforme o próprio título, "Corpo astral ou corpo de desejos" (p. 47). Assim, contrariamente à Antroposofia, não há um intermediário não físico – o corpo etérico desta última – entre o corpo físico e o corpo astral. [Voltar para o local da referência a esta nota]