Entrevista publicada no Jornal Opção, de Goiânia, No. 1.545, de 13 a 19 de fevereiro de 2005, p. A-25.

A cópia abaixo provém do Jornal Opção on-line, Goiânia, 15 de fevereiro de 2005, de http://www.jornalopcao.com.br/, seção Entrevistas; as fotos foram eliminadas nesta versão. A entrevista foi feita por meio de gravação telefônica. Foi inserido aqui um adendo no fim da mesma.

Entrevista com Valdemar Setzer:
Computador na escola é obsceno

SICI ADRIANA ROSA

A se crer no que rezam os intelectuais, que vêem no computador a tábua de salvação da precária educação pública no país, a inclusão digital é a mais nova primeira necessidade do brasileiro. Enquanto forjam um processo que pretende “democratizar” a informática, pode estar surgindo daí um novo grupo de excluídos: os brasileiros que, apesar das precárias condições de vida que enfrentam cotidianamente, são colocados agora diante de uma nova necessidade, a de dominar o computador para sobreviver.

Desde que começaram a ser instalados computadores nas escolas públicas de ensino fundamental, em 1997, uma seara de autores referenda a crença do governo, mesclada a teorias construtivistas, de que a informatização da educação é essencial para o desenvolvimento do aprendizado e a integração dos alunos com o mundo.

Várias medidas têm sido adotadas para a implantação da chamada “democratização da informática”, e o governo federal conta, inclusive, com um Programa Brasileiro de Inclusão Digital. Neste programa estão previstos projetos como o PC Conectado, que pretende levar o computador à casa de famílias carentes, e o Casa Brasil, que vai criar centros multimídia para o acesso das classes D e E à informática. É neste cenário que todas as vozes parecem ecoar em uníssono. Menos uma. A de Valdemar W. Setzer.

O bardo anti-revolução das máquinas é, inusitadamente, um engenheiro eletrônico formado no ITA. Já escreveu livros sobre linguagens de programação, teoria e construção de compiladores, bancos de dados, computadores na educação e o uso da Internet, e tem, ainda, um currículo admirável: doutor pela Escola Politécnica da USP e livre-docente do Instituto de Matemática e Estatística, ele foi professor assistente na Universidade do Texas, nos Estados Unidos, e professor visitante da Universidade de Stuttgart, na Alemanha. Aposentou-se como professor titular do Departamento de Ciência da Computação da USP, mas, como ele mesmo gosta de frisar, está “aposentado, mas não encostado”, e continua a dar aulas e orientar teses.

Com a propriedade de quem indubitavelmente conhece o tema do qual está tratando, Setzer condena o uso de computadores por crianças, na escola ou em casa, antes de concluírem o segundo grau. Seu livro mais recente, Meios Eletrônicos e Educação, Uma Visão Alternativa (Editora Escrituras, 288 páginas) é obra rara entre as de tantos teóricos e pensadores que endossam a informatização da educação. Setzer acusa o computador de ser uma máquina de simular pensamentos restritos, que apenas executa instruções ou comando, enquanto o pensamento humano contém infinitamente mais do que o que é utilizado para simular a execução de um programa. Segundo ele, essa relação não pode ser benéfica para uma criança, pois lhe impõe um raciocínio lógico-simbólico para o qual ela ainda não possui maturidade. Nesta entrevista concedida por telefone ao Jornal Opção na quinta-feira, 10, Valdemar Setzer declara que a educação não precisa ser informatizada, mas humanizada, e explica, entre outras coisas, por que o uso do computador por crianças não irá ajudá-las futuramente a se inserirem no mercado de trabalho.

É praticamente consenso entre os educadores que a criança que domina a informática terá maior facilidade de, futuramente, se integrar a um mercado de trabalho cada vez mais informatizado. Como o sr. avalia essa visão pedagógica?

É uma falácia total, isso é conversa de vendedor de hardware, vendedor de software, e de escola que está vendendo vaga ou, então, de uma escola ignorante, que não está sabendo o que está fazendo. Isso é fruto de ignorância, ou fruto de mercenarismo, tanto dos vendedores quanto das escolas. Pegue o seu próprio exemplo. Você provavelmente não usou computador quando era criança. O que não a impede de usá-lo agora. Nenhum dos meus quatro filhos teve acesso a computadores na infância. Hoje, um deles, de 32 anos, é diretor da Oracle, uma das principais fabricantes de software do mundo. Por que começar quando criança, se o computador está cada vez mais fácil de ser usado?

É comum que professores de escolas públicas não tenham computador em casa e, portanto, ainda não saibam usá-lo. Muitos desses professores têm um primeiro contato com o computador nos programas de informatização das escolas e, muitas vezes, são orientados pelos próprios alunos. Isso não pode diminuir a autoridade do professor diante dos alunos?

Eu nunca tinha pensado nesses termos, é uma novidade para mim. Seymour Papert [matemático e informaticista] acha isso uma maravilha, isto é, que os alunos acabem mostrando aos professores uma porção de coisas que eles próprios, os professores, ainda não tinham pensado. Agora, quando o professor não sabe nada, de fato, pode surgir um problema de autoridade. Eu nunca tinha pensado nisso, mas é um fator a mais para se dizer que o computador traz problemas. Os alunos vão sentir-se superiores aos professores: "Nós sabemos e vocês não sabem, o que é que vocês estão fazendo aqui na nossa frente?" Estou de acordo que isso possa trazer problemas educacionais, porque o aluno vai desconsiderar o professor. Agora, não sou contra que se ensine aos professores a usar um computador. A solução para esse problema é ensinar os professores antes que os alunos tenham acesso a esses computadores. Enquanto os professores não souberem bem, os alunos também não devem usar o computador na escola.

Em algumas escolas, enquanto os professores não recebem treinamento de capacitação para usarem o computador como um instrumento pedagógico a mais em suas aulas, os computadores são usados livremente pelos alunos para pesquisas na Internet. Como o sr. avalia isso?

Esse negócio de pesquisa na Internet é um absurdo. Talvez no ensino médio isso até seja possível, mas o que está acontecendo é que o jovem entra na Internet, procura alguma coisa, acha, copia, imprime, põe no trabalho e o professor acha uma maravilha. O aluno nem leu. Está acontecendo isso, já faz tempo. Sabemos que os professores estão aceitando essas coisas e não se sabe se o aluno aproveitou algo ou não.

Por isso o sr. defende que o uso da Internet pela criança deve ser restringido ou controlado pelos pais e pela escola?

O uso da Internet deve ser evitado. Mas quando isso não for possível, deve ser orientado. Toda educação deveria ser orientada, não tem sentido existir uma educação libertária, na qual o aluno decide o que vai achar, o que vai procurar. Quando se propõe uma pesquisa ao aluno, esse trabalho deve ser orientado, o professor deve indicar quais livros ou quais sites devem ser consultados. Deveria ser assim, como era antigamente: os professores recomendavam, indicavam livros etc. Não se pode deixar completamente em aberto. As crianças e jovens não têm discernimento para saber o que é adequado ou não para idade deles. Existe um problema de maturidade, e existe um problema de adequação ao assunto. Como é que uma criança pode saber o que é adequado, se não for orientada? A Internet está favorecendo a introdução de uma educação libertária. Sou totalmente contra a educação libertária. As crianças e os jovens necessitam de orientação, a educação devia ser orientada, e não libertária. Uma criança ter a possibilidade de fazer o que quiser, de usar computador do jeito que quiser, é um absurdo.

O governo federal está lançando o programa PC Conectado, que pretende levar o computador para famílias carentes do país, assim como o programa Casa Brasil, que vai criar centros multimídia para acesso das classes D e E à informática. Como o sr. avalia essas iniciativas?

Em face da fome, da miséria, da prostituição infantil e juvenil, da falência total do ensino público, qualquer programa que envolva gastos com instalação de computadores para crianças e jovens ou mesmo para famílias carentes é obsceno. Além disso, vai acabar prejudicando as pessoas e as famílias.

Em seu livro, o sr. diz, sobre não permitir que a criança assista à TV, que “o importante é que os pais estejam plenamente conscientes dos efeitos negativos da TV” e que, “quando os pais tomam uma posição firme, baseada em conhecimento, os filhos, em geral, admitem a situação sem problemas”. Isso se aplica a famílias de classes populares, levando em conta que a luta pela sobrevivência impede esses pais de acompanharem a formação de seus filhos?

Esse é um problema muito sério. Tudo isso é uma questão que envolve educação escolar, para aqueles que têm alguma escolaridade, porque temos no Brasil um problema sério de educação. Se as escolas discutissem os problemas, as pessoas seriam pelo menos advertidas de que existem falhas na educação, e elas talvez pudessem tomar uma atitude, mas infelizmente não existe nada e, principalmente, não existe nenhuma intenção de se chamar a atenção para a questão dos meios eletrônicos, principalmente da televisão. As críticas feitas à televisão, em geral, se referem aos programas. As pessoas ficam pedindo programas melhores, mais educativos. Eu sou o único que digo que o aparelho é que é o problema, a televisão não é um veículo adequado de comunicação, ela tira a liberdade do indivíduo e o condiciona, ao invés de informar e educar. Há um problema intrínseco, o que acontece é que a televisão virou parte do sistema capitalista, e é quase impossível que se consiga alguma coisa, no sentido de evitá-la, por isso acho que essa análise deve ser uma questão individual. Se pelo menos dez pessoas reagissem contra a televisão, já seria ótimo. Eu me dirijo aos indivíduos, não me dirijo às massas. Ainda mais porque para me dirigir às massas eu teria que fazer propaganda do meu trabalho, e sou contra propaganda, isso feriria a liberdade das pessoas.

Então, nesse caso não haveria como alertar as classes populares para as armadilhas dos meios eletrônicos na educação.

Uma maneira de alertar as pessoas seria colocar à disponibilidade do público a informação sobre as questões que envolvem os meios eletrônicos na educação, e isso não está sendo feito. Agora, não sei se essa disposição irá, fato, atingir as pessoas das classes C e D. Talvez não atinja. Então, o que poderia ser feito? A solução possível seria a educação escolar, só que as escolas também não estão interessadas.

Nem mesmo as escolas particulares?

As escolas particulares não estão interessadas, elas estão interessadas em vender vagas, qualquer coisa que venda vaga, para elas, é ótimo. São raríssimas as escolas que não têm essa intenção, existem escolas sem fins lucrativos, claro. Mas no Brasil, de maneira geral, escola é um grande negócio, o que é um absurdo, educação não devia ter fim lucrativo. Não sou contra escolas particulares, sou contra a exploração da escola com fins lucrativos.

O parágrafo 1º do artigo 13 da Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança declara: “A criança terá o direito à liberdade de expressão; este direito incluirá liberdade para procurar, receber e partilhar informações e idéias de todos os tipos, independentemente de fronteiras, oralmente, por escrito ou na forma impressa ou de arte, ou através de qualquer outro meio de escolha da criança”. O sr. concorda?

Isso é um absurdo. Absurdo completo. A criança não tem capacidade de discernir o que é bom e o que é ruim para ela. Não tem sentido que as crianças façam essa escolha, são os pais e a escola que devem fazer a escolha. Só quando o jovem passar da puberdade, depois dos 14 anos, é que se deveria deixar para ele a possibilidade de escolha e, ainda assim, com certos limites, senão os jovens vão virar todos uns drogados. Esse item deveria conter uma ressalva de que a partir de uma certa idade, a idade adequada, a criança poderia ter possibilidade de escolha. Não a criança, mas o jovem. A criança que tem capacidade para esse tipo de discernimento já perdeu a infância, e isso é uma tragédia. Uma das coisas que estão acontecendo de trágico no mundo é que as crianças estão perdendo a infância.

Um dos argumentos dos defensores do uso do computador na educação infantil rebatidos pelo sr. é que o aluno aprende no seu próprio ritmo, sem medo de repreensão ou nota baixa. O sr. acha saudável a criança ser repreendida?

Claro, na hora correta e na medida certa, com amor. A criança deve e quer ser guiada. Isso envolve o que ela deve aprender; uma criança ou mesmo jovem não tem capacidade para determinar o que deve aprender e em que ritmo.

Seymour Papert afirma que está “absolutamente ciente do atual poder do computador interativo e de como seu uso pode influenciar a maneira como pensamos sobre nós mesmos”, aliando ao uso da informática o conceito de construtivismo, o que justificaria, inclusive, o uso do computador pelo aluno antes que o professor seja capaz de orientá-lo. Trata-se, segundo ele, do conhecimento em construção. Qual a sua opinião sobre isso?

O computador influencia, sim, na maneira de pensarmos sobre nós mesmos, mas negativamente. O construtivismo virtual do computador não se compara ao de uma criança brincando com brinquedos rústicos, por exemplo, como uma boneca de pano, um carrinho de madeira, etc.

Quais podem ser as conseqüências do uso da informática e, sobretudo, da Internet na educação básica do país?
 
"O ensino deve deixar de ser tão abstrato, e passar a ser mais humano. Não deveria haver ensino formal antes dos 6 ou 7 anos"

A educação básica vai piorar do ponto de vista humano, como está acontecendo. Os resultados são negativos. Tenho resultados de pesquisas mostrando que, quando se introduz computador na educação, as crianças começam a ter problemas de aprendizado em várias disciplinas, ou então não existe nenhuma melhora. E não é um problema só do Brasil.

Antes de introduzir o computador nas escolas e disseminá-lo na sociedade, não seria necessário cuidar de outras questões muito mais básicas, inclusive no campo educacional, como a criação de bibliotecas nas escolas e, também, bibliotecas públicas?

Isso mesmo. Mas penso que, nem mesmo depois disso, deve haver lugar para os computadores no jardim da infância ou no ensino fundamental. No ensino médio, sim, para ensinar o que se pode fazer com um computador e criticar os seus efeitos negativos.

O pensador italiano Giovanni Sartori escreveu um opúsculo, Homo Videns, em que condena o culto da imagem vivido pela contemporaneidade. Segundo ele, o jovem está deixando de ser homo sapiens para tornar-se homo videns. Ele sustenta que o pensamento ditado pelo mundo da imagem é efêmero, com pouca profundidade. O sr. concorda?

É muito pior do que isso: é condicionante, e não informativo ou educativo. Veja qualquer programa de TV e verifique se há qualquer profundidade; um programa com profundidade será considerado “chato” pelos telespectadores, pois o aparelho não é adequado a esse tipo de transmissão. Tudo tem que virar “show”.

Que avaliação o sr. faz do sistema Logo, criado por Seymour Papert e aplicado pela esmagadora maioria das escolas brasileiras?

O Logo é um absurdo completo, porque, para uma criança aprender usar o Logo, ela tem que aprender programação, já que Logo é uma linguagem de programação. E isso é um absurdo, porque força ao máximo que a criança tenha um raciocínio lógico-simbólico. Quando usam o Logo, o que as crianças estão fazendo é aprendendo a programar. Isso é um absurdo que não tem tamanho, a criança senta e digita: “direita 90”, mas ela não sabe o que é aquele 90, porque nessa linguagem não está escrito “90 graus”. Está escrito, por exemplo, “para frente 10”, não está escrito 10 centímetros ou o que for. São apenas comandos e isso vai contra a noção de que existe uma unidade na física, a criança nem sabe do que se trata, ela sabe apenas que 90 resulta um ângulo reto, mas ela não sabe o que significa aquilo. Isso já foi comprovado. E o Logo tem ainda um outro problema muito mais profundo: ele faz uma indução finita, sem base em termos matemáticos, em procedimentos recursivos. Mas o mais grave é que está se forçando a criança a aprender uma linguagem de programação e a pensar, ao máximo, de uma maneira lógica, o que não é próprio de uma criança. Isso é próprio de adultos, seria ótimo se todos os adultos pudessem pensar dessa maneira de vez em quando.

Muitas escolas criam projetos educativos em que as crianças desenham e pintam seus nomes em programas de desenho do computador, como forma de desenvolver a auto-estima. O sr. acha interessante esse projeto?

Não acredito no uso do computador como instrumento artístico. Tudo que se passa no computador tem de ser matematicamente bem definido. Então quando a criança faz um desenho, ou mesmo um nome, é preciso usar os pixels, ou então ela pega o mouse e faz o movimento, que nunca fica muito bom, porque esse movimento exige mais coordenação motora do que quando se usa um giz de cera ou um pincel, por exemplo. Mas nesses dois casos, existe uma nuance das cores, da intensidade, que não é calculada. No computador é tudo calculado, cada pontinho daqueles tem três cores básicas, o red, green e blue (RGB), ou vermelho, verde e azul, e cada cor é feita pela combinação da intensidade dessas três cores, de 0 a 255 tonalidades. Ou seja, é tudo matemático, ao passo que usando um pincel não existe nada matemático. Na hora em que a tinta secar, a cor vai ficar diferente. O próprio Seymour Papert, em seu livro Mindstorms, compara uma flor feita com giz de cera com uma flor feita usando o programa Logo. A flor do Logo é uma caricatura de flor, é tudo igualzinho, todas as pétalas vão se sucedendo com o mesmo ângulo. Se ao lado, na mesma página, há uma flor feita com giz de cera, essa flor terá uma infinidade de nuances diferentes, pois a criança, quando desenha, não faz tudo da mesma maneira. O que se percebe é que um desenho é artístico e o outro é absolutamente morto, não tem vida. A arte tem sempre que ter um elemento inconsciente; se a arte se torna totalmente consciente, ela vira ciência. E quando se faz um desenho no computador, tudo fica internamente calculado, é transformado em matemática, além disso, não há nuances ou elementos inconscientes como quando se faz arte de verdade. Na arte há variação, flexibilidade, há vida. No computador tudo fica igual, da mesma cor.

E se tolhe a criatividade da criança?

Sem dúvida. E qual é a utilidade disso? Se é para a criança aprender a escrever o nome e reforçar sua auto-estima, por que não aprender com giz de cera, num desenho bonito que ela mesma faz, num processo que, inclusive, ela pode compreender? A criança não pode entender o que está se passando no computador. Isso não significa que ela não é capaz. Nada disso. O computador é um grande mistério também para muitos adultos, para aqueles não são da área da computação. O usuário comum não sabe como é que o computador funciona, por que o cursor se move na tela quando se movimenta o mouse. Isso é mistério para a maioria. Uma criança deve ter contato com a realidade, que ela pode compreender também pela intuição. Quando uma criança joga uma bola e a outra pega, nenhuma delas calculou a trajetória, mas elas compreendem, intuitivamente, que a bola faz uma certa curva no ar, prevêem onde ela cairá. Já o computador coloca a criança em contato com algo que não é real e, sim, virtual. Por que a criança precisa aprender uma coisa virtual? Não há nenhuma necessidade de a criança aprender a usar o computador, isso acontecerá sem nenhuma dificuldade quando ela for adulta. Insisto nesse ponto, que considero muito importante: não há nenhuma necessidade de a criança aprender a usar o computador, não há nenhuma necessidade de a criança ver televisão, não há nenhuma necessidade de a criança jogar videogame.

O sr. defende uma mudança radical e necessária no ensino. Que mudança é essa?

O ensino deve deixar de ser tão abstrato, e passar a ser mais humano. Além disso, a ênfase deve deixar de ser o desenvolvimento intelectual, principalmente matemático e lingüístico (mal e mal!) para dar-se uma ênfase maior nas artes e no artesanato, principalmente no ensino fundamental. Além disso, não deve haver nenhum ensino formal antes dos 6 anos e meio ou dos 7 anos, como, por exemplo, a alfabetização precoce.

Como a comunidade pedagógica da USP recebe suas idéias?

Ignora. Eu jamais fui convidado para dar uma palestra. Eles não querem ouvir por quê? Professor universitário, principalmente na USP, só sobrevive fazendo pesquisa. Hoje, nas universidades, não se dá importância ao aspecto didático, o que é importante é a pesquisa. A carreira da universidade é feita baseada na pesquisa, nos trabalhos, nos livros que o sujeito publicou. É assim que é feita a promoção na Universidade de São Paulo e nas outras universidades estaduais ou federais. Acontece que a moda é a tecnologia, então o sujeito quer fazer uma pesquisa, ele precisa de verba para pagar os seus estudantes, até talvez para receber ele mesmo alguma coisa. Então, ele vai fazer uma proposta na área tecnológica, e aí vai receber mundos e fundos, porque a mania no mundo inteiro é de que a tecnologia vai salvar o mundo. É exatamente o contrário. É lógico que existem exceções como, por exemplo, a medicina, que se casou com a oficina mecânica e o casamento foi perfeito. Tenho, ao invés de cristalino natural, duas lentes de plástico nos olhos que me permitem enxergar muito bem. Fantástico! Não estou dizendo que é tudo ruim, o que estou dizendo é que precisa haver critério. Existe uma mentalidade de que quanto mais alta a tecnologia melhor. Então, os pesquisadores que fizerem um projeto de pesquisa com o computador na educação recebem quanto dinheiro quiserem. Agora, vai fazer um projeto sobre ensino humanista — não vai receber um tostão. Por isso acabam embarcando nessas coisas, para sobrevivência deles.

O sr. admite que é difícil manter a criança afastada dos meios eletrônicos. É possível amenizar os efeitos desse contato?

Se um pai acha que é essencial que a criança use a Internet, deve ficar ao lado dela, porque a criança não tem discernimento para saber o que é adequado ou não para a maturidade dela. Por exemplo, a criança ouviu falar do buraco na camada de ozônio, foi lá no Google [site de busca na Internet] e digitou “buraco na camada de ozônio”, então vem o resultado, um artigo sobre o problema. Ela lê aquele artigo, fica apavorada e não sai mais de casa. Porque ela não tem maturidade para julgar o que leu. Os pais têm de estar ao lado, o professor tem de acompanhar. Não se pode permitir que a criança, em casa ou na escola, use sozinha a Internet. Se é para se usar, então é preciso haver orientação e acompanhamento. Senão, o que acontece? As crianças acabam sempre entrando em sites pornográficos. É isso que a escola deveria fazer? É isso que o lar deveria fazer com a criança? Deturpar completamente sua mentalidade? Permitir esse avanço nocivo? Os meios eletrônicos aceleram o desenvolvimento, e isso é muito ruim. As escolas que estão usando o computador na educação e as pessoas que estão fazendo propaganda disso, promovendo o uso do computador, não têm dados que mostram que isso é útil. No fundo, não conhecem o computador, não sabem o que ele é capaz de fazer com o usuário e, sobretudo, quais os seus efeitos sobre o desenvolvimento da criança. Por isso, nem lhes passa pela cabeça que o computador possa ser ruim. Mas as pesquisas que estão sendo feitas no mundo inteiro estão mostrando que o computador acaba prejudicando o rendimento escolar.

[Adendo. Infelizmente, durante e entrevsita, não respondi completamente essa última pergunta. Existe, sim, um meio extremamente eficaz para se "amenizar os efeitos desse contato": são as atividades artísticas e artesanais. Quando se faz arte (sem o computador!) ou artesanato, deve-se exercer um pensamento que não é formal e bem definido, precisamente o contrário do que o computador força. Deve-se usar fantasia, que é o contrário do que o computador faz, já que ele prejudica a fantasia a e a criatividade, que devem ser exercidas em ambientes informais e reais, e não formais e virtuais como os dos computadores. Por exemplo, a tinta e o pincel, a madeira que deve ser trabalhada, a interação com outras pessoas no teatro, são todos elementos não-formais impregnados de realidade. Crianças e jovens que usam o computador, jogam joguinhos eletrônicos ou assistem TV (atanção: nada disso é necessário!) deveriam fazer intensamente atividades artísiticas para compensar os estados mentais que esses aparelhos impõem. Para mais detalhes, leiam-se em meu site http://www.ime.usp.br/~vwsetzer os artigos sobre a arte como atídoto ao pensamento computacional (em inglês) e sobre o computador como instrumento de anti-arte (em inglês ou português). Infelizmente, a mentalidade imperante hoje no ensino acabou com as antigas disciplinas Trabalhos Manuais e Canto Orfeônico (esta última, introduzida por Villa Lobos), que ainda na década de 1950 eram obrigatórias nas séries correpondentes às 5a. a 8a. de hoje. Naquela época ainda havia a intuição e a tradição de que artes e artesanato eram essenciais para uma formação completa do jovem. A mentalidade cientificista imperante hoje em dia infelizmente acabou com essa visão. Quanto mais tecnologia no ensino, melhor acha-se que ele é. Mas o resultado disso tem sido desatroso em todos os países. É urgente tornar o ensino mais humano. VS]

 


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