ORIGEM E HISTÓRICO DO QUILOMBO NA ÁFRICA

 

Kabengele Munanga

 

 

Nota linguística

Na ortografia das palavras em línguas bantu, dispensamos a representação da tonalidade, fenômeno característico dessas línguas. Essa tonalidade é marcada pelos tons baixo (por exemplo /à/), alto (/á/), montante (/a/), descendente (/â/). Exemplo: kílómbò.
Utilizamos o alfabeto africano para grafar alguns nomes. Por isso as letras como c e w pronunciam-se, respectivamente, tch e u. Exemplo: cokwe pronuncia-se tcho-cu-e.
Os nomes de povos ou grupos culturais são precedidos de prefixos classificadores: mu, indicando o singular e ba indicando o plural. Exemplos: mukongo (mu-kongo), indivíduo que pertence à etnia kongo; plural bakongo (ba-kongo). Mas, na literatura etnográfica,costuma-se dispensar os prefixos classificadores, anotando apenas os radicais dos nomes dos povos. Por exemplo: os lunda; os kongo; os mbundu; os jaga, etc.
Às vezes faz-se confusão entre o nome dos povos e suas respectivas línguas que sempre conservam o mesmo radical com prefixo classificador diferente. Por exemplo: povo bakongo, língua kikongo; povo mbundu, língua kimbundu; povo lunda, língua kalunda; povo ovimbundu, língua umbundu.

No caminho das origens do quilombo

O quilombo é seguramente uma palavra originária dos povos de línguas bantu (kilombo, aportuguesado: quilombo). Sua presença e seu significado no Brasil têm a ver com alguns ramos desses povos bantu cujos membros foram trazidos e escravizados nesta terra. Trata-se dos grupos lunda, ovimbundu, mbundu, kongo, imbangala, etc., cujos territórios se dividem entre Angola e Zaire.
Embora o quilombo (kilombo) seja uma palavra de língua umbundu, de acordo com Joseph C. Miller (1), seu conteúdo enquanto instituição sociopolítica e militar é resultado de uma longa história envolvendo regiões e povos aos quais já me referi. É uma história de conflitos pelo poder, de cisão dos grupos, de migrações em busca de novos territórios e de alianças políticas entre grupos alheios.
Para entender e captar o sentido da formação dos quilombos no Brasil, precisamos conhecer o que aconteceu nessas regiões africanas de áreas bantu nos séculos XVI e XVII. Por isso, a própria palavra bantu mereceria, antes, algumas linhas de explicação. Com efeito, Bantu, que hoje designa uma área geográfica contígua e um complexo cultural específico dentro da África negra, é uma palavra herdada dos estudos lingüísticos ocidentais. Os estudiosos das línguas faladas no continente africano (Guthrie, Greenberg, etc.), ao fazer estudos comparativos dessas línguas, a partir do modelo das línguas indo-européias, chegaram a classificá-las em algumas famílias principais, entre as quais a família das línguas bantu. O estudo de algumas palavras principais revelou a existência das mesmas raízes com o mesmo conteúdo entre esses povos. Todos empregam, entre outras, a palavra -ntu (muntu, singular, e bantu, plural) para designar a pessoa, o ser humano. Por isso, essas línguas foram batizadas de bantu pelos lingüistas ocidentais. A mesma palavra passou a identificar os povos que falam essas línguas enquanto um complexo cultural ou civilizatório, devido à contigüidade territorial e aos múltiplos contatos, mestiçagens e empréstimos facilitados pela proximidade geográfica entre eles. Os mitos de origem nos ensinam que todos esses povos, hoje com identidades diferentes, foram no início grupos criados por irmãos.
Segundo os lingüistas comparatistas especialistas da área bantu (Murdock, Greenberg, Guthrie, etc.), há cerca de dois mil anos, houve uma expansão geral dos bantu partindo do centro da Nigéria para o sul e sudeste da África. O conhecimento da fundição os teria auxiliado em sua deslocação, pois utilizaram ferramentas de ferro para abrir o caminho através da floresta equatorial. Guthrie, após estudos intensivos das raízes de línguas bantu, conclui que povos de língua proto-bantu habitavam a região da floresta equatorial, a meio caminho entre as costas leste e oeste da África. Esses povos teriam uma cultura do trabalho de ferro (2). Por sua vez, Greenberg situa a origem dos bantu na região fronteiriça entre Camarões e Nigéria (3). Nenhuma prova arqueológica veio em apoio às teses lingüísticas.
A história do quilombo como a dos povos bantu é uma história que envolveu povos de regiões diferentes entre Zaire e Angola. A tradição oral - com o que tem de lacunas e de imprecisões - continua sendo até hoje uma das grandes fontes de informação da história da África negra. No âmbito do mito, a história começa no império Luba (centro e sudeste do Zaire), provavelmente no fim do século XVI. Segundo uma das versões do mito, esse império era governado por Kalala Ilunga Mbidi, cuja morte criou conflitos de sucessão entre filhos herdeiros do trono. Um deles, tido como perdedor, o príncipe e caçador Kimbinda Ilunga, partiu com seus seguidores em busca de novo território. Estavam com fome e sem nenhuma provisão quando avistaram ao longe uma aldeia e se aproximaram para pedir bebida e comida. O rei desse grupo acabava de morrer e foi substituído por sua filha, a rainha Rweej. Encantada pela beleza e maneiras nobres do príncipe caçador, Rweej pede Kimbinda Ilunga em casamento. Entre os lunda, como em todos os povos bantu, a tradição proibia a rainha de governar durante seu ciclo menstrual, pois, simbolicamente morta como a lua, ela contaminaria negativamente o país e seu povo. Um dia, aproveitando-se dessa tradição quando entrava em período de menstruação, a rainha Rweej chamou seus notáveis e chefes de linhagens e apresentou-lhes seu marido Luba como novo chefe dos lunda, colocando-lhe o bracelete (rukan), símbolo do poder.
O casamento de Rweej, acompanhado da transferência do poder real ao marido, príncipe estrangeiro, causou descontentamento entre os parentes da rainha e algumas camadas da população, gerando até movimento migratório. Kinguli, irmão da rainha, foi-se com seus simpatizantes para oeste, em direção a Angola (4). J. Vansina situa o episódio da emigração de Kinguli no século XVII. Diz ele que a região para onde se dirigiram Kinguli e seus seguidores lunda já havia sido submetida, no século anterior, às invasões do povo chamado jaga ou imbangala. Vindo da margem direita do rio Kwango antes de 1568, os jaga invadiram o reino do Kongo do qual foram rechaçados em 1568. Alguns deles se estabeleceram ao longo do rio Kwango; misturaram-se ao grupo suku e organizaram numerosas chefias (5). Autores antigos, como Cavazzi e Pigafetta, dizem que os jaga vinham do interior da África, provavelmente do leste do rio Kwango. O marinheiro inglês Battel, que conviveu com eles, disse que vinham das montanhas de Lion em direção à capital do reino do Kongo. Mais tarde se retiraram em direção ao sudeste, nas regiões orientais do Ndongo e dirigiram-se à costa de Angola e Benguele perto do rio Cuvo. Seu verdadeiro nome era imbangala ou imbangola (6). Ninguém sabe onde ficavam exatamente as montanhas de Lion. Muitos etnólogos se preocuparam com o problema da origem dos jaga, propondo diversas respostas. Mas parecem, segundo Vansina, ter vínculos culturais com os povos lunda e luba (7).
Quando os jaga chegaram ao oeste do Kwango, eles viviam permanentemente em pé de guerra nos campos fortificados. Diz-se que matavam seus recém-nascidos para não ser atrapalhados em suas campanhas militares. Em revanche, eles adotavam os jovens de ambos os sexos das regiões por eles vencidas e dominadas e os incorporavam a seus campos. Assim, podia o número de suas tropas crescer rapidamente. Alguns milhares de pessoas equipadas para a guerra e organizadas de modo a assimilar os vencidos podiam derrubar todo o oeste da África central. Isso explica a superioridade militar dos jaga, que imprimiram sua marca à história da costa angolana durante meio século (8).
O que a história dos jaga tem a ver com o quilombo? O príncipe lunda Kinguli ter-se-ia feito aliado dos poderosos bandos jaga que dominavam a região antes de sua chegada. Embora a palavra quilombo seja de língua umbundu, de acordo com J. Miller, como já foi dito, a instituição teria pertencido aos jaga. Kinguli e seu exército formado pelos lunda e aliados jaga adotaram o quilombo e formaram um exército mais poderoso constituído de bandos de guerreiros nômades conhecidos como imbangala. Tiveram a capacidade de espalhar-se por toda a região mbundu depois de 1610 e finalmente se estabeleceram para fundar novos estados mbundu (Kalandula, Kabuku, Matanda, Holo, Kasanje, Mwa Ndonge, etc.) (9). Sociedade guerreira, o quilombo forneceu ao exército de Kinguli original duas coisas que lhe faltavam: uma estrutura firme capaz de reunir grande número de estranhos desvinculados de suas linhagens vencidas e uma disciplina militar capaz de derrotar os grandes reinos que bloqueavam sua progressão ao norte e ao oeste de Kwanza. A palavra quilombo tem a conotação de uma associação de homens, aberta a todos sem distinção de filiação a qualquer linhagem, na qual os membros eram submetidos a dramáticos rituais de iniciação que os retiravam do âmbito protetor de suas linhagens e os integravam como co-guerreiros num regimento de super-homens invulneráveis às armas de inimigos (10). O quilombo amadurecido é uma instituição transcultural que recebeu contribuições de diversas culturas: lunda, imbangala, mbundu, kongo, wovimbundu, etc. Os ovimbundu contribuíram com a estrutura centralizada de seus campos de iniciação, campos esses que ainda se encontram hoje entre os mbundu e cokwe de Angola central e ocidental.
Algumas evidências lingüísticas vêm em apoio para esclarecer a origem dos quilombos. Entre o povo mundombe de língua umbundu, perto de Benguele, a palavra quilombo significava campo de iniciação, no século XIX. No moderno umbundu padrão, tem-se a palavra ocilombo, que se refere ao fluxo de sangue de um pênis recém-circuncidado, e ulombo, que designa um remédio preparado com o sangue e o prepúcio dos iniciados no campo de circuncisão e que é usado em certos ritos não especificados. A raiz -lombo, que constitui a base de todas essas palavras, identifica a palavra quilombo como sendo unicamente ovimbundu, uma vez que contrasta com a palavra cokwe e mbundu para as cerimônias de circuncisão: mukanda (11).
Os imbangala ou jaga tiveram um papel notável na formação do kilombo amadurecido. Os seguidores de Kinguli, de origem lunda, rejeitaram a sua liderança, considerada muito opressiva, e adotaram como novo aliado a sociedade guerreira de iniciação quilombo, trazida pelos imbangala. No entanto, o termo imbangala deriva da raiz umbundu -vangala, que significa "ser bravo" e/ou "vagar extensamente pelo território" (12) .

Populações e culturas

As migrações e mestiçagens tanto biológicas como culturais caracterizam todos os povos ao sul da floresta equatorial, de onde se originou o modelo de quilombo. Apesar de uma certa homogeneidade resultante dessa mescla de populações, as culturas dessa imensa região são bastante variadas. Descrevê-las aqui seria uma tarefa difícil, senão impossível. No entanto, podemos, com base nas semelhanças, esboçar alguns elementos gerais.
Todos praticam uma agricultura itinerante sobre queimada a fogo corrente, sem rotatividade bem definida, e utilizam as cinzas como adubo. O terreno é deixado em alqueive durante muito tempo, às vezes até vinte anos. As espécies mais cultivadas pertencem ao complexo americano: o milho e a mandioca. Acrescentem-se a batata-doce e o amendoim, que também têm um papel muito importante na alimentação. Todas essas espécies são provenientes da América do Sul, provavelmente do Brasil. O milho teria sido introduzido na África central entre 1548 e 1583, provavelmente a partir do reino do Kongo. A mandioca foi introduzida mais tarde, por volta de 1600 (13). Ao lado dessas plantas de origem americana, encontram-se em quase todos os lugares as velhas culturas africanas que, segundo Murdock, vêm do complexo sudanês, como o sorgo, o milho miúdo e a palmeira. As culturas de origem asiática (Malásia), como a banana, o inhame e o taro, ocupam uma posição secundária. A bebida alcoolizada mais difundida vem da palmeira, a ráfia (o vinho de palmeira), além da cerveja de milho e de sorgo.
Os animais domésticos em toda a região são galinhas, cabras, carneiros e cachorros. Os porcos e os patos foram introduzidos nos séculos XVIII e XIX (14). O gado é uma raridade, pois o complexo do gado, salvo entre os ovimbundu e os lozi, não pertence a esse povo. Na margem dos grandes lagos e dos rios vivem comunidades de pescadores especializados. A caça é também muito apreciada, embora seja uma atividade secundária à agricultura.

Organização social

A maioria dos povos da África central pratica o sistema de parentesco matrilinear, em relação à descendência, estrato social, sucessão e herança. O casamento com parentes consangüíneos é proibido, salvo entre parceiros obrigatórios ou preferenciais, geralmente primos cruzados. O casamento implica sempre transferência de bens matrimoniais (dote) e prestações de serviços em benefício da família da noiva. A residência do casal é geralmente virilocal, até nas sociedades matrilineares. Embora a descendência e as linhagens constituídas fossem matrilineares, a autoridade ficava sempre nas mãos dos homens e não das mulheres.
A aldeia constitui a menor unidade territorial e, portanto, é a pedra angular da estrutura política. Ela pode ser composta de uma linhagem ou de mais linhagens. O conjunto de aldeias forma a chefia, encabeçada por um rei pertencendo à linhagen chefal, geralmente a mais velha de todas. O rei simboliza a chefia e tem obrigações religiosas. Seu poder não é absoluto, pois contrabalançado pelo conselho composto dos chefes de aldeias, chefes de linhagens e outros notáveis da corte.

A religião

As religiões de todos os povos bantu são semelhantes. Todos acreditam num criador único ou divindade suprema: Zambi, Kalunga, Lessa, Mvidie, etc. É uma divindade longínqua, que criou o mundo e distanciou-se dele, deixando a administração a seus filhos divinizados que são ancestrais fundadores de linhagens. Por isso, essa divindade ou deus único é raramente objeto de culto coletivo, geralmente reservado às divindades secundárias (espíritos ancestrais). São estes que fazem o elo entre os homens e o deus único, criador de tudo que existe no mundo bantu. Por isso, costuma-se reduzir e simplificar as religiões bantu pelo culto dos ancestrais, embora exista um panteão religioso estruturado como mostra o conteúdo do livro La Philosophie Bantoue, de Placide Tempels (15). Segundo essa filosofia, o mundo é um conjunto de forças hierarquizadas por uma relação de energia ou força vital. Essa energia ou força vital, cuja fonte é o próprio deus criador, é distribuída em ordem decrescente aos ancestrais e defuntos que fazem parte do mundo divino; em seguida ao mundo dos vivos, numa relação hierárquica, começando pelos reis, chefes de aldeias, de linhagens, pais e filhos; e finalmente ao mundo animal, vegetal e mineral. Trata-se de uma visão antropocêntrica, na qual o homem constitui o centro e o interesse maior de toda a obra de deus. A força vital explica a existência da vida, da doença e da morte, do sofrimento, da depressão ou fadiga, de qualquer injustiça ou fracasso, da felicidade, da riqueza, da pobreza, da miséria, etc. Tudo que é positivo à vida e à felicidade humana é interpretado como aumento e crescimento da força vital; tudo que é considerado como privação, sofrimento e até a perda da própria vida é interpretado como diminuição da força vital. Os outros seres da natureza criados por deus e colocados ao serviço do homem possuem também, em um grau menor, essa energia ou força vital. Entre os baluba, um dos ramos importantes das civilizações bantu, a palavra "morrer", que é uma privação ao extremo da força vital, é aplicada a tudo que existe na natureza. Se quebrar um copo, um vidro, um carro, uma pedra, se cair uma árvore, etc., eles dizem que "morreu", mesma palavra utilizada para os homens e os animais.



Nessa visão de mundo, as noções de "Ser" e de "Força" são inseparáveis e interligadas. Um ser é por definição uma força, daí o caráter dinâmico do ser e da pessoa humana. Toda força pode crescer ou decrescer, tornar-se mais forte ou mais fraca. O crescimento e a diminuição da força vital explicam-se pela lei da interação das forças. Um ser influencia outro, ou seja, uma força reforça ou enfraquece outra força. Existe uma causalidade metafísica entre o criador e a criatura. Em outras palavras, a relação entre o criador e a criatura é uma constante, porque o primeiro é por sua natureza dependente do segundo quanto a sua existência e sua substância. Uma criança, mesmo tornada adulta, permanece sempre em uma dependência causal, em uma subordinação ontológica às forças do pai e da mãe. A força primogênita domina sempre a força ultimogênita e continua a exercer sua influência vital sobre ela. O mundo das forças mantém-se como uma teia de aranha, da qual não se pode fazer vibrar um único fio sem sacudir todas as malhas.
Qualquer ser humano é colocado numa relação de forças vitais, algumas mais desenvolvidas do que a sua própria força. Essas forças mais desenvolvidas são o próprio deus, os antepassados, os defuntos da linhagem, da família; são os pais, feiticeiros, bruxos, etc. Elas podem influenciar a sua vida no bom sentido (saúde, riqueza, poder, promoção na profissão, etc.), aumentando a sua força vital, ou no mau sentido (doença, morte, pobreza, insucesso na profissão, etc.), diminuindo a sua força vital. Por isso, o culto aos ancestrais, num mundo criado por um deus que dele se distanciou, constitui o aspecto mais observável da cosmovisão bantu sem se reduzir a ele. O que está por trás do culto aos ancestrais, senão a busca da conservação e do crescimento constantes da força vital, fonte inesgotável da vida e de todas as felicidades?

Concluindo

Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, foi morto em 1695, quase no fim do século XVII. Coincidentemente, a formação da instituição kilombo no continente africano, especificamente na área cultural bantu, aconteceu também nos séculos XVI e XVII. O quilombo africano, no seu processo de amadurecimento, tornou-se uma instituição política e militar transétnica, centralizada, formada por sujeitos masculinos submetidos a um ritual de iniciação. A iniciação, além de conferir-lhes forças específicas e qualidades de grandes guerreiros, tinha a função de unificá-los e integrá-los ritualmente, tendo em vista que foram recrutados das linhagens estrangeiras ao grupo de origem. Como instituição centralizada, o quilombo era liderado por um guerreiro entre guerreiros, um chefe intransigente dentro da rigidez da disciplina militar.
Pelo conteúdo, o quilombo brasileiro é, sem dúvida, uma cópia do quilombo africano reconstruído pelos escravizados para se opor a uma estrutura escravocrata, pela implantação de uma outra estrutura política na qual se encontraram todos os oprimidos. Escravizados, revoltados, organizaram-se para fugir das senzalas e das plantações e ocuparam partes de territórios brasileiros não-povoados, geralmente de acesso difícil. Imitando o modelo africano, eles transformaram esses territórios em espécie de campos de iniciação à resistência, campos esses abertos a todos os oprimidos da sociedade (negros, índios e brancos), prefigurando um modelo de democracia plurirracial que o Brasil ainda está a buscar. Não há como negar a presença, na liderança desses movimentos de fuga organizados, de indivíduos escravizados oriundos da região bantu, em especial de Angola, onde foi desenvolvido o quilombo. Apesar de o quilombo ser um modelo bantu, creio eu que, ao unir africanos de outras áreas culturais e outros descontentes não-africanos, ele teria recebido influências diversas, daí seu caráter transcultural. Com efeito, a transculturação parece-me um dado fundamental da cultura afro-brasileira. A "pureza" das culturas nagô e bantu é uma preocupação de alguns pesquisadores e nada tem a ver com as práticas e estratégias dos que nos legaram a chamada cultura negra no Brasil. Com efeito, os escravizados africanos e seus descendentes nunca ficaram presos aos modelos ideológicos excludentes. Suas práticas e estratégias desenvolveram-se dentro do modelo transcultural, com o objetivo de formar identidades pessoais ricas e estáveis que não podiam estruturar-se unicamente dentro dos limites de sua cultura. Tiveram uma abertura externa em duplo sentido para dar e receber influências culturais de outras comunidades, sem abrir mão de sua existência enquanto cultura distinta e sem desrespeitar o que havia de comum entre seres humanos. Visavam a formação de identidades abertas, produzidas pela comunicação incessante com o outro, e não de identidades fechadas, geradas por barricadas culturais que excluem o outro (16). Precisamos desse exemplo de união legado pela República de Palmares para superar e radicar o racismo e seus duplos.

KABENGELE MUNANGA é professor do Departamento de Antropologia da FFLCH-USP.