"CAPOEIRA - QUAL É A SUA ??
ANGOLA, REGIONAL ou CONTEMPORÂNEA"
Manoel de
Barros
"Melhor para chegar a nada é descobrir a verdade!"
Introdução
Nesta entrada de milênio, o universo da Capoeira se
expandiu apresentando faces muito diferentes das que apresentou nos
últimos séculos. Num primeiro contato se encontram dois ícones e dois
estilos: Mestre Pastinha e a Capoeira Angola e Mestre Bimba com a
Capoeira Regional. Mas, atualmente, no ambiente da Capoeira, rico em
diversidades, há uma confusão semântica na origem, no desenvolvimento e
na complexidade de formas de capoeiragem existentes. Este texto procura
colocar um pouco de 'lenha na fogueira' nas definições. E se propõe a uma
nova forma de ver as capoeiras.
Se há menos de 100 anos a Capoeira estava no código penal
brasileiro,inclusive com presídio em Fernando de Noronha, para onde eram
enviados os capoeiristas presos, hoje em dia possui a fama de único esporte
genuinamente brasileiro, presente em muitos países, buscando se tornar
esporte olímpico. Chegamos à virada do século com um "Curso Superior
Profissional Específico em Capoeira" na Universidade Gama Filho, no Rio,
e temos um número de capoeiristas em atividade como nunca houve na
história. Por outro lado, uma minoria destes capoeiristas fazem Angola ou
Regional enquanto quase a totalidade não faz nenhum destes estilos.
Outros acham que fazem os dois...
Na sociedade capitalista globalizada temos que tomar
muito cuidado com os conceitos. São várias as formas de expressão do
poder e autoritarismo que geram sempre o mesmo resultado: exploração do
homem pelo homem e desigualdade social, enfim, a destruição da vida. A
história humana é escrita pelos vencedores e sempre interpretada buscando
mostrar mudanças através das evoluções técnicas e tecnológicas, que são
utilizadas para escrever as "páginas da desumanidade", onde há pouca
evolução social e política. São várias as formas dessa 'ilusão da
evolução', seja pela estrutura hierarquizada desvendada por Etienne de La
Boétie, no século XVI no "Discurso da Servidão Voluntária", passando por
Wilhelm Reich mostrando como isso é feito na educação e, principalmente,
nas famílias, e em "A Sociedade do Espetáculo" de Guy Debord, onde,
alienados, aceitamos o espetáculo do cotidiano. Mostrada também
atualmente nas denúncias do maior intelectual vivo (*1), Noam Chomsky,
que aponta um 'consenso fabricado' mantido pela mídia e pela sociedade de
consumo.
A Soma, terapia criada por Roberto Freire (*2), por sua
vez, vem há quase quarenta anos desafiando os conceitos. Depois de uma
pesquisa coletiva e individual dentro da Soma, por mais de dez anos
estudando a Capoeira como instrumento científico de libertação, observei
visões práticas diferentes. Para melhor entendimento da minha linha de
pesquisa, este texto aborda um dos vários pontos que pretendo aprofundar
em livro, que estou escrevendo e pretendo publicar ainda este ano. Assim,
me reservo agora somente introduzir e questionar os estilos de Capoeira.
Vários pontos geram confusões na Capoeira, como o
conceito de mestre e a ideologia por trás de conclusões históricas.
Mestre pode ser um título, um certificado em papel ou um reconhecimento
por um outro Mestre. Pode ser também o ato pedagógico de ensinar;
qualquer um, à medida que ensine algo novo a outra pessoa, é mestre. E
ainda há o reconhecimento pela comunidade, por méritos e experiência
vivida (geralmente pessoas mais velhas se tornam mestres assim).
Mestre aparece na roda, no ritmo, no canto, no jogo e na
liderança através dos diálogos da Angola. Mestre expõe seu comportamento
na Roda de Capoeira, alguns também são mestres na roda da vida.
Em pesquisa de 1997 (*3), escolhi o termo ARTE (os termos
'folclore' e 'esporte' são mais rígidos, pois sofrem menos mudanças no
decorrer do tempo) para conceituar a Capoeira. Coletei os termos Angola,
Regional, 'Contemporânea', Atual e de Rua, mas não aprofundei suas
diferenças. Os três estilos que atualmente vejo vivos e distintos entre
si, são:
- Capoeira Angola,
- Capoeira Regional,
- Capoeira 'Contemporânea' (para evitar confusões
escolhi 'Contemporânea' para substituir o termo 'angola-e-regional',
quando o capoeira se diz praticante dos dois estilos anteriores).
Mas fica o alerta: Com a arte da Capoeira Angola em movimento, este
texto, em poucos anos (ou décadas), ficará ultrapassado.
Sendo Arte, a Capoeira se modifica e preserva em sua própria estrutura o
conceito mais arcaico e Bantu de movimento: "Para os Bantu, especialmente
os Congo, viver é um processo emocional, de movimento. Viver é
movimentar, e movimento é aprender"(*4). O movimento básico no jogo da
Capoeira, a ginga ("um andar sem sair do lugar..."), é uma homenagem à
guerreira e rainha africana N'Zinga N'Bandi (1582-1663/1680, ou D. Ana de
Sousa, nome de batismo na religião católica), que lutou por mais de
quarenta anos contra a colonização e a escravidão no Congo e em Angola. A
Capoeira adotou o local de sua luta para nomear-se (*3) e homenageou seu
movimento corporal básico inspirado na mulher que movimentou sua
sociedade, politicamente, de baixo para cima.
O termo Angola vem de N'Gola N'Bandi que foi um rei que resistiu por
várias vezes a expedições dos colonizadores portugueses, contra-atacando
os vitoriosamente. Quando em 1558, os povos nômades invadiram e
destruíram o sul do reino de Congo, os reinos de N'Dongo e Matamba; um
dos chefes, N'Gola N'Zinga doou a seu filho N'Gola N'Bandi o reino de
N'Dongo, passando este a designar o nome do reino conquistado (N'Gola:
Angola) (*5). Somos em grande parte descendentes dos angolanos, e a vinda
de escravos que eram reis e conhecedores profundos da cultura negra, se
por um lado enriqueceu a cultura brasileira, favoreceu a atual miséria do
povo africano. Somos assim responsáveis pela destruição da África, foi o
início da globalização econômica, iniciada neste período do tráfico
colonial com apoio da igreja católica, e que continua sua destruição até
hoje.
Os locais de manifestação da Capoeira são sempre variados. Vão de
recintos fechados às ruas, assim a categorização proposta por mim se
baseará não no local e sim em como é realizada a RODA de Capoeira, seu
ritual, ritmo, relação de movimentos de ataque e defesa, cantos e
energia. Não querendo fechar conceitos, e sim questioná-los e abri-los ao
diálogo, trago apenas alguns aspectos históricos e outros atuais, nos
quais se poderão perceber estilos que se respeitam, mas que ocupam
espaços distintos. Assim torna-se necessário desvendar aspectos mínimos
de distinção entre capoeiras, já separadas numa realidade múltipla. A
história da Capoeira Angola é a história da marginalidade brasileira, com
conflitos étnicos, econômicos e sexuais que se preservam ainda hoje em
uma sociedade das mais paradoxais: riqueza de bens de produção e consumo,
riqueza ambiental e a riqueza da miscigenação étnica e cultural em
contraste com uma pobreza social, absurdamente aceita.
Origens da Capoeira Angola
Tudo começa na mãe África, continente originário dos
primeiros homens que se espalharam pelo mundo, gerando todos os povos. O
tráfico de escravos através do Atlântico foi um dos grandes
empreendimentos comerciais e culturais que marcaram a formação do mundo
moderno e a criação de um sistema econômico mundial (início da
globalização). A participação brasileira nesta trágica aventura é
estimada em 40% dos 15 milhões ou mais de homens e mulheres arrancados de
suas terras (*6). Pesquisas variam quanto à interpretação da
ancestralidade africana da Capoeira. Sem querer definir uma verdade, mas
tentando levantar possibilidades, trago três versões da origem da
Capoeira:
- Nas pesquisas do Grupo de Capoeira Angola Pelourinho (GCAP),
Mestre Moraes acredita "ser a Capoeira de origem africana, mais
precisamente da Ilha de Lubango, na aldeia dos MUCOPES, localizada no sul
de Angola. (...) Na época do acasalamento das zebras, os machos, a fim de
ganharem a atenção das fêmeas, travavam violento combate. Daí os jovens
guerreiros mucopes passarem a imitar alguns passos desse ritual, que
denominaram de N'GOLO. Os habitantes dessa aldeia realizavam uma vez por
ano uma grande festa com o nome de EFUNDULA, ocasião em que as meninas
que já tinham atingido a puberdade e, estando assim prontas para o
casamento, teriam como marido aquele guerreiro que tivesse a melhor
performance na prática do N'GOLO" (*7). Para a maior parte dos
angoleiros, como os Mestres João Pequeno e João Grande, deste ritual
deriva a Capoeira;
- Nas pesquisas de Mestre Camisa do "ABADA-Capoeira", "a Capoeira
é fruto dessa fusão de culturas, lutas e rituais africanos, no Brasil".
Como o N'GOLO, a "BAÇULA", ritual da Ilha do Cabo "(...) onde um derruba
o outro através de agarramento, balões, pegar as pernas para derrubar,
pescoço, cintura, o objetivo é derrubar o adversário (...) Eu acredito
que os golpes de derrubar, de desequilibrar na Capoeira, tenham vindo da
Baçula. Tem também a 'kabangula', que é uma luta de mão, que é um tipo de
boxe com as mãos abertas. (...) Tem também o 'Umundiu', que é um ritual,
um jogo, que usa as mãos e os pés, e tem também as danças acrobáticas"
(*8);
- Para Mestre Cobrinha Verde (herdeiro de um dos maiores
capoeiristas de todos os tempos, Besouro Mangangá), "a Capoeira nasceu no
Recôncavo, em Santo Amaro, criada pelos africanos que viveram
acorrentados para trabalharem nos engenhos. Na África, eles usavam uma
dança denominada de batuque. (...) Dessa dança é que foi construída a
capoeira." (*9);
Termino esta etapa das origens, com Mestre Pastinha (Vicente Ferreira
Pastinha - 5/04/1889-13/11/1981): "...entre os mais antigos mestres de
Capoeira figura o nome de um português, José Alves, discípulo dos
africanos e que teria chefiado um grupo de capoeiristas na guerra dos
Palmares. A história da Capoeira se inicia com a vinda dos primeiros
escravos africanos para o Brasil" (*10) (grifo meu).
Onde a confusão aumenta...
Existe uma névoa sobre a História da Capoeira, principalmente
pela sua tradição oral e marginal. Os aspectos históricos, quando sem
contextualização e aprofundamento, servem mais à confusão que ao
esclarecimento. Uma informação 'clássica' sobre a desinformação da
capoeiragem é a queima dos registros da escravidão no Brasil, por Ruy
Barbosa, quando Ministro da Fazenda, em 15/12/1890. Esta informação,
publicada em livro e revistas, é acrescentada do que se diz que ele fez
isso para "apagar da memória brasileira essa lamentável instituição".
Agora, quando contextualizamos essa informação e a criticamos, ela passa
a ter outras interpretações: seria queimando os registros que se apagaria
da memória a 'lamentável' escravidão? Penso que somente aprenderemos com
o passado, e não o repetiremos, se pudermos ter mais informações.
Esquecer os erros do passado é a melhor forma de repeti-los. Além do
mais, a simples queima dos arquivos não faria esquecer a escravidão. Na
realidade, foi uma estratégia do governo para evitar que ex-proprietários
de escravos buscassem uma compensação dos prejuízos que tiveram com a
abolição da escravatura, dois anos antes.
Em 1998, com a publicação da primeira revista de distribuição nacional
dedicada somente à Capoeira, houve um crescimento de informações
disponíveis ao grande público. Logo em seguida, um 'boom' editorial com
várias revistas ao mesmo tempo, mas a maioria não durou muito. Nessas
revistas, com erros de revisão e de impressão, repetiam-se muito as
informações, que se destinavam mais a divulgar grupos e egos. Por outro
lado, houve a possibilidade de se encontrar muitas pesquisas sérias e
aprofundadas.
A importância da Capoeira na sociedade brasileira está
sendo descoberta aos poucos, mas nunca teremos uma visão real do que se
passou na marginalidade. A partir da década de 80 são inúmeras as peças
de um quebra-cabeça que surgem em estudos acadêmicos e de grupos
independentes, que investigaram seriamente o passado da Capoeira. Como já
coloquei, o tema deste artigo é outro, mas para quem queira pesquisar, é
curioso como os capoeiristas famosos da nossa história, como Plácido de
Abreu, Duque Estrada, Barão do Rio Branco, entre tantos, são omitidos no
ensino brasileiro. E ainda há a importância dos capoeiristas brasileiros
na Guerra do Paraguai, inclusive sendo o capoeira Chico Diabo (Cabo
Francisco Lacerda) quem matou o presidente paraguaio Francisco Solano
López em 1870, causando o fim da guerra (*11).
Há uma separação entre o que foi a Capoeira desde as suas
origens até o momento em que houve a cooptação pelo sistema dominante.
Ela nasceu como uma arte de libertação, ajudando o negro, e depois os
marginais a manterem um elo com seu passado. Uma arte negra que no Brasil
foi se fortalecendo com contribuições variadas, inclusive dos indígenas,
que apoiavam os negros em suas fugas no mato. Pois é sabido que os
quilombos foram sociedades livres variadas: 70% da população dos oito
principais quilombos eram negros, sendo 25% de índios e 5% de brancos,
todos refugiados (*12). Houve também contribuições dos portugueses
Fadistas (cantores de Fado). Ágeis na luta corporal e no manejo da
navalha, os Fadistas viviam nas ruas de Lisboa e do Porto no séc. XIX
(*13).
O momento político de 1888-1889, ano da Abolição seguido pelo da
Proclamação da República, mostra como o Estado Brasileiro conseguiu mudar
para se manter igual na essência. A 'revolução social e política',
chamada por Deodoro em sua Proclamação de 'revolução nacional', não
alterava a relação dominador versus dominado (em cima x embaixo). "Eles
administraram de tal maneira as mudanças no modo de produção que os
ex-escravos - assim como os contandini e os bracianti, imigrados
italianos que engrossaram então a classe subalterna - não tiveram, por
força da lei, naquele transe, garantias de acesso à posse ou à
propriedade da terra, ao trabalho e, muito menos, ao salário" (*14)
(*32). Sabemos que os primeiros decretos proibindo a Capoeira datam de
1814, seis anos após a chegada da Família Imperial ao Brasil. Nesse
período, a população brasileira era de 3,6 milhões de habitantes, sendo
1,9 milhões (mais da metade) de escravos. A partir de 1890, na República,
a Capoeira entra no Código Penal. Assim, depois de séculos de
marginalidade, ela foi proibida oficialmente por mais de 120 anos. Temos
menos de 70 anos de experiência de capoeiragem liberada.
Com origem provável no século XVI e desenvolvimento múltiplo
nos séculos XVII, XVIII e XIX, a Capoeira sobreviveu a muitas mudanças.
Não se constituindo de uma unidade de forma e ritos, foi capaz de
dialogar "com novos contextos, adaptando-se no detalhe para conservar o
essencial daquilo que a constituiu" (*15). Sem dúvida, ela desenvolveu um
potencial de luta que gerou as insurreições dos escravos -
particularmente nas províncias que constituíam a zona do Paraíba ou
grande zona do café (*16), forçando a Lei Áurea. Aparecendo também como
"defensora da pátria" na Guerra da Cisplatina (1825-1828) e na Guerra do
Paraguai (1865-1870). Utilizada militarmente não só nas guerras, como nas
eleições, por exemplo, em 1909, os cabos eleitorais capoeiristas elegeram
o deputado negro e monarquista Dr. Monteiro Lopes, no Distrito Federal
(RJ). No mesmo ano, estudantes cariocas promovem a luta entre o capoeira
Ciríaco Francisco da Silva e o lutador de Jiu-jitsu Sada Miako. Com a
vitória, Ciríaco tornou-se alvo de todas as atenções, inclusive sendo
destaque em revistas nacionais. Enquanto isso, na marginalidade, de 1902
a 1909, na 'Escola de Aprendizes da Marinha', Mestre Pastinha ensinava
aos seus colegas a arte aprendida com o africano Mestre Benedito.
...Capoeira Regional
O processo de mutação da Capoeira é muito antigo. Em
1874, Raul Pederneira descreve na Gíria Carioca a primeira nomenclatura
de movimentos e defende uma "desesportivização" da Capoeira. No Rio de
Janeiro, em 1907, um oficial militar escreve o "O Guia do Capoeira ou
Ginástica Brasileira". Em 1928, o capoeirista Annibal Burlamaqui,
conhecido como Zuma, publica "Ginástica Nacional - Capoeiragem -
Metodizada e Regrada". Alguns dizem que influenciou Mestre Bimba (Manoel
dos Reis Machado, 1899/1900-1974), que cria a Luta Regional Baiana,
fundando sua academia em 1932 (*17-A). Mestre Nenel discorda dizendo que
M. Bimba já tinha sua metodologia sendo desenvolvida desde 1918. Mestre
Decânio aponta a importância de Dr. José "Sisnando" Lima para a fundação
da Regional (*17-B). Numa época em que a Capoeira era crime, Mestre Bimba
a modifica, introduzindo novos golpes e uma sistematização do ensino.
Consegue, depois de anos de muito esforço, a primeira autorização do
Estado para a prática da Capoeira, em 9/7/1937, de um militar do
Exército, o interventor federal do Estado Novo (primeira ditadura
brasileira no século passado) na Bahia, Juracy Magalhães.
Novas mudanças nessa atribulada história de quase 400
anos: por estratégia militar de Getúlio Vargas, acontece a cooptação da
Capoeira, numa tentativa de controle e de transformá-la em Educação
Física e Esporte, dentro de seu projeto populista. Em 1934, Getúlio
Vargas, interessado no voto feminino, dos analfabetos, dos soldados, etc,
extingue o decreto-lei que proibia a Capoeira e a prática de cultos
afro-brasileiros. Mas, por outro lado, obriga que tanto os cultos quanto
à Capoeira sejam realizados fora da rua, em recintos fechados, com um
alvará de instalação. Novamente, o que parece com 'liberdade' é, na
verdade, 'controle'. Tanto que no final da década de 40 ainda havia a
cavalaria da polícia impedindo a Capoeira na rua (e o toque de cavalaria
no berimbau, avisando os capoeiras...). Interessante que nasce a Capoeira
Regional a partir da Angola, por estratégia, com outro nome: Luta
Regional. Nesse contexto, a Capoeira tradicional começa a ser chamada de
Angola para uma melhor diferenciação. Em 1953, o Presidente Getúlio
Vargas assiste a uma demonstração de Mestre Bimba e comenta sobre a
Capoeira: "a única colaboração autenticamente brasileira à educação
física, devendo ser considerada a nossa luta nacional" (*18).
Com o crescimento da Regional, que era freqüentada por
estudantes e trabalhadores com carteira assinada, a Angola continuou à
margem da institucionalização até 23 de fevereiro de 1941, quando grandes
mestres da época entregaram a Mestre Pastinha a responsabilidade de
preservar a arte da Angola (*19). Assim nasce o Centro Esportivo de
Capoeira Angola (CECA), registrado somente em 1/10/1952. Em 1955,
instala-se no Largo do Pelourinho, Salvador, Bahia.
Apesar da aparente rixa entre os estilos, havia um respeito mútuo. Tanto
os alunos de Mestre Bimba podiam freqüentar as rodas de Mestre Pastinha,
como o contrário. Todos eram bem recebidos, até porque os golpes criados
por Mestre Bimba não eram utilizados com alunos de outras escolas que não
utilizassem o seu método. Começou então uma aceitação da junção das
capoeiras. Relata Mestre Canjiquinha, que foi contra-mestre de bateria de
Mestre Pastinha: "Não existe capoeira regional nem angola. Existe
capoeira. (...) Eu sou capoeirista. Não sou nem angoleiro nem regional.
(...) Agora, capoeira é de acordo com o toque. Se você está numa festa:
se tocar bolero você dança bolero; se tocar samba você dança samba; - a
capoeira é conforme: tocando maneiro você dança amarrado, tocando
apressado você apressa."(*20).
Onde a confusão se espalha...
O Rio de Janeiro também possui uma rica história marginal da
Capoeira e uma rica influência das maltas de capoeiras ligadas à
criminalidade e à política, que formavam quase um exército paralelo. Mais
tarde, porém, houve o enfraquecimento da Capoeira carioca e uma "invenção
da tradição" (*21) da Capoeira baiana. Mestre Bimba leva seus alunos para
São Paulo em 1949 para competir em luta livre: das cinco lutas, ganham
três por nocaute. Mestre Bimba também viaja apresentando a Regional: em
1955, em Fortaleza-CE (Teatro José de Alencar); em 1956, no Rio de
Janeiro (Maracanãzinho) e, em São Paulo (inauguração da TV Record); e, em
1968, em Teófilo Otoni-MG. Mestre Pastinha e o CECA viajam fazendo
demonstrações em São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Paraná,
Minas Gerais e Recife.
Apesar da existência de capoeiristas tradicionais no Rio, em 1964 começa
um fenômeno novo. Alunos com pouca experiência na Angola e na Regional se
juntam e formam o grupo carioca que viria a se chamar Senzala e a
influenciar muito a Capoeira no sul/sudeste do país, tanto pela
descaracterização (afastamento de rituais tradicionais), como pela
incorporação de novas técnicas de ensino.
Em São Paulo, através de pioneiros como Mestre Zé de
Freitas (discípulo do maior cantador de Capoeira Angola de todos os
tempos, Mestre Waldemar da Paixão - BA) e Mestre Valdemar Angoleiro,
abriu-se espaço para a vinda, na década de 60, de capoeiras que migram da
Bahia buscando melhores condições de vida. Vieram mestres angoleiros e
regionaleiros. Devido à falta de tradição da Capoeira na capital
paulista, para melhor sobrevivência econômica desses mestres, há a
necessidade de apoio mútuo. Mestre Suassuna, por exemplo, ajudou muitos
capoeiristas a se estruturarem. Este processo de adaptação e
sobrevivência é melhor exemplificado com a fundação, em 1967, da Academia
Cordão de Ouro, formada pelos mestres Brasília e Suassuna, o primeiro da
linhagem Angola de Mestre Canjiquinha e o segundo da linhagem Regional de
Mestre Bimba. O que era impossível para Mestre Pastinha e Mestre Bimba
acontece: a fusão de estilos se torna uma realidade.
Na década de 50, a Capoeira chega a Belo Horizonte. Em
1963, Mestre Pastinha se apresenta na Universidade Católica, mas somente
na década de 70 é que crescem as academias e a Capoeira se fortalece nas
praças, sendo criada uma roda na Praça Liberdade, onde o público se
reunia para ver a 'vadiagem'. Por causa desta roda, surgiu a famosa Feira
Hippie, que se desenvolveu e virou um marco na cidade (hoje está na Av.
Afonso Pena), no entanto poucos falam dessa origem ligada à Capoeira.
Em Curitiba, em 1973, a Capoeira se implanta através de Mestre Sergipe,
depois que Mestre Eurípedes passou por lá no início da década de 70.
Mestre Sergipe foi contra-mestre do angoleiro Mestre Caiçara, mas, como
Mestre Brasília, também mudou de estilo. Em 1975, com a chegada de Mestre
Burguês, a Capoeira se espalha na cidade.
Ainda seguindo a história do poder cooptando a Capoeira,
em 1968 e 1969 (segunda ditadura militar do século passado), a Comissão
de Desportos da Aeronáutica patrocina dois simpósios nacionais sobre
Capoeira com o intuito principal de estabelecer uma única nomenclatura
para os golpes e defesas. Entre os vários mestres participantes estava
Mestre Bimba, que se retira antes do término do segundo simpósio por não
aceitar que a Capoeira Regional se fundisse com outras regras e
'modismos' (no primeiro simpósio ele enviou Mestre Decânio para
representá-lo).
Interessante também que foram vários os capoeiristas que
desejaram ter o mérito de Mestre Bimba, criando estilos com nomes e
características próprias como a Capoeira Estilizada, a Muzenza, a
Saramango, a Primitiva, a Barravento, etc. Mas nada disso vingou além de
seus grupos e descendências. A não ser a criação coletiva da Capoeira
'Angola-e-Regional', que a meu ver, repito, não é nem Angola nem
Regional.
A década de 70 é fundamental no encolhimento da Angola tradicional,
resgatada por Mestre Pastinha. Em 1971, ele é enganado e perde sua
academia no Largo do Pelourinho nº 19 e, em 1979, sofre derrame cerebral.
Em 1981, morre cego, na miséria e quase esquecido. Com a morte de Mestre
Bimba em 1974, também esquecido, enganado e na miséria, em Goiânia-GO, a
Regional também perde sua força e o seu mentor.
Em 1º de Abril de 1966, Mestre Pastinha se apresentou junto com outros
mestres e alunos na África, no I Festival Internacional de Arte Negra em
Dakar, Senegal. Na década de 70 ocorre a expansão da Capoeira para a
Europa e E.U.A., mas só em 1989 o angoleiro Contramestre Rosalvo migra
para a Europa, fundando em 1997 a primeira academia européia de Capoeira
Angola em Berlim, Alemanha.
Em 1972, a Capoeira é homologada pelo Ministério de
Educação e Cultura (MEC) como esporte e, em 1974, nasce a Federação
Paulista de Capoeira. Em 1992, forma-se a Confederação Brasileira de
Capoeira e, finalmente, em 1993, a Associação Brasileira de Capoeira
Angola (ABCA). Assim, após milênios de ancestralidade lúdica e poucos
séculos de agressividade para a luta, a Capoeira, que desenvolveu
variações nas décadas de 20 a 50, com o nascimento da Regional e a
sobrevivência da Angola, finalmente se descriminaliza. Consequentemente,
se elitiza. Nas décadas de 60 a 90, a fusão e a mutação das capoeiras
fazem surgir a 'Contemporânea', e, após breve enfraquecimento, renascem a
Angola e a Regional. Entramos no século XXI com um lado da Capoeira
ligado à marginalidade cultural e econômica, sendo a Roda de Capoeira um
aprendizado de desobediência civil para a vida (detalhes no livro). Por
outro lado, num outro estilo, está cooptada, servindo ao sistema estático
da estrutura sócio-econômica que mantém as classes, as explorações e a
escravidão (que chamamos hoje de globalização ou neo-liberalismo),
divertindo ou competindo nas lutas de vale-tudo, ou ainda nas
universidades e espaços militares, servindo ao hierarquismo e ao
comodismo. Lembro aqui as palavras de Mestre Lua 'Rasta' da Bahia, "... o
capoeirista precisa se respeitar...os mais jovens procurarem se interar
do que é capoeira, do que é liberdade, do que é militarismo; e a capoeira
é anti-militar, a capoeira não tem nada a ver com militarismo..." (*22).
...uma prática...
Quando comecei a prática da capoeira em 1990, em
Curitiba, as academias diziam fazer Angola e Regional. Passei pela
Muzenza do Mestre Burguês e, depois, pelo Centro Paranaense de Capoeira
do Mestre Sergipe. Somente no final de 1991, vendo uma apresentação do
GCAP no Rio de Janeiro, experimentei uma 'rasteira'. Como é que depois de
dois anos aprendendo Angola, descobri a Angola ?
Quando desejei aprender somente Angola no Paraná, os
capoeiristas riam e diziam ser a Capoeira Angola coisa de mulher, num
sentido pejorativo e obviamente machista. No Rio, Mestre Mano comenta que
antigamente (antes de 1980) os regionais diziam pisar na cabeça dos
angoleiros nas rodas. Na Capoeira "Contemporânea" há um estereótipo da
Angola dos angoleiros: muito lenta e no chão, sem a presença do ritual.
Mestre Moraes e o GCAP resgataram a Angola com seu conteúdo de luta e com
uma capacidade técnica de enfrentamento. O angoleiro podendo jogar Angola
e enfrentar a "Contemporânea" com igualdade, de baixo para cima, na fuga
e no contra-ataque, com negativas frente às positivas.
Na década de 60, a inexperiência em Capoeira (início do
Senzala), a necessidade de sobrevivência, o apoio entre capoeiristas de
estilos diferentes (Cordão de Ouro e Senzala), o afastamento dos centros
tradicionais (BA e RJ) e o desejo de criação de estilos novos fazem a
Capoeira sofrer novas transformações. Em 1971, procurando resgatar alguns
aspectos mais tradicionais, Mestre Almir das Areias, dissidente do Cordão
de Ouro, cria a Capitães da Areia, que junto com a Cativeiro, questionam
a Federação e sua proposta.
Grupos importantes e vários outros mestres não cito, pois aqui procuro
priorizar apenas os mais próximos da pesquisa Soma-Iê versus Capoeira
Angola. Em 1976, Roberto Freire, intelectual que havia entrevistado
Mestre Pastinha em 1966 para a revista REALIDADE, começa a fazer Capoeira
com Mestre Almir (que hoje chama se Anand) e a estudá-la cientificamente
em paralelo ao desenvolvimento da Somaterapia.
Aqui entra um parêntese para a importância do GCAP, o
Grupo de Capoeira Angola Pelourinho, formado na época por Mestre Moraes.
Fundado em 1980 no Rio e transferido em 1982 para a Bahia, teve uma
importância indiscutível para a retomada da Capoeira Angola. Deixou
mestres no Rio de Janeiro e formou Mestre Cobrinha Mansa na Bahia.
Valorizando os mestres antigos, produzindo pesquisas, trouxe a energia
tradicional da Roda de Capoeira a uma nova posição: ritual, luta e
movimento. No início da década 80, com a Regional completando 50 anos e a
Angola, 400, o contexto se modificou totalmente. A Regional era
predominante, mas se afastara dos preceitos do seu criador, e os
angoleiros, que não concordaram com a inevitável fusão das capoeiras,
estavam esquecidos e se afastando da sua prática. Mestre João Pequeno,
principal discípulo de Mestre Pastinha, começou a usar cordéis e
batizados, influenciado pelas mudanças da Capoeira.
A Capoeira começou a se preservar e se restringir através de shows e
espetáculos, que associavam uma Capoeira acrobática com Maculelê (arte
recuperada por Mestre Popó, de Santo Amaro), Puxada de Rede, Roda de
Samba e rituais de show criados por Mestre Canjiquinha. Foi a forma de
sobrevivência da Capoeira. Mestre João Grande, que migrou para Nova York
(EUA) e hoje está recebendo vários prêmios pela preservação da arte
negra, tinha abandonado a Capoeira, trabalhando como frentista em
Salvador. Graças à insistência de Mestre Cobrinha e do GCAP, voltou à
Capoeira em 1984. Em 1986, o Mestre Nenel (filho de sangue de Mestre
Bimba) resolve recuperar a Regional original de seu pai, formando a
Filhos de Bimba Escola de Capoeira, denunciando como a 'Contemporânea' se
afastou da Regional pura.
Em 1992, mudei para Belo Horizonte e entrei no Grupo Iúna
de Capoeira Angola, com os professores Primo, João e Wagner, que, hoje,
dez anos depois, são considerados Mestres. Devido a motivos pessoais,
mensalmente viajava pelo sul e sudeste, além de viagens de pesquisa para
o nordeste do Brasil, podendo perceber na prática (em rodas e treinos) as
várias Capoeiras existentes na década de 90. Fiz contato com vários
capoeiristas, como, por exemplo, Nino Faísca de Olinda-PE, que foi o
capoeirista que formou o primeiro grupo somente de Angola em Curitiba, e
hoje se encontra na Alemanha como professor da Associação Angola Dobrada
de Capoeira Angola, coordenada por Mestre Rogério (que formou o Iúna).
Um texto de Alejandro Frigerio publicado em 1989, "Capoeira:
de arte negra a esporte branco" (*23), foi uma referência para quem se
iniciasse nas diferenças das capoeiras. Vendo hoje as referências de
Frigerio, percebo que sua análise não foi entre Angola e Regional, mas
sim entre Angola e "Contemporânea". Frigerio não encontrou a Regional
pura, e, ainda hoje, essa dicotomia acontece. Quem faz Capoeira, na maior
parte dos grupos está aprendendo a Capoeira "Contemporânea". Aprende a
'angola-e-regional'. A roda começa com um ritmo lento, a 'angola' e logo
depois, entra num ritmo mais rápido, a 'regional'. Frigério comenta essa
diferença da 'regional' e da 'atual' em entrevistas relatadas. Para um
pesquisador que, no decorrer de 1983 a 1987, pesquisou somente oito
meses, sua categorização teve pontos interessantes. Concordo com muito de
sua abordagem, mas discordo da "musica lenta" ser uma característica
intrínseca da Angola. Porém entendo que ele fez um grande trabalho, mesmo
que o seu universo de pesquisa tenha sido somente dois grupos de Capoeira
Angola. A Angola, para mim, comporta uma possibilidade variada de ritmos,
do lento ao rápido, o que nem sempre vai definir a movimentação dos
jogadores. A música na Capoeira não é só um fundo que define o ritmo, ela
faz parte do próprio diálogo do jogo, e o jogador pode 'quebrar as
regras' por desconhecimento ou ousadia (*3).
Junto com o processo de crescimento e "modernização" da
Capoeira, quando ela começou a migrar para todo o Brasil e para outros
países, a "Contemporânea" se ampliou de forma geométrica, ao mesmo tempo
a Angola minguava junto com a Regional original. Na década de 60, ambas
se enfraquecem para quase morrerem na década de 70. Na década de 80 se dá
o renascimento da Angola através do GCAP e o renascimento da Regional com
os Filhos de Bimba e, na de 90, a definição dos estilos. Conflitos entre
grupos e mestres fazem os conceitos de mestria (títulos) e os conceitos
dos estilos serem relativizados. Cada grupo se define do seu jeito e a
confusão semântica faz parte das capoeiras nessa virada de milênio.
"Mestre Pastinha morreu com 92 anos e dizia estar
aprendendo a Angola. Como é possível alguém saber os dois estilos?" Esta
questão representa a filosofia que procura definir limites para os
estilos. A história nos mostrou como foi possível essa fusão, mas o
movimento da Capoeira se opera internamente de forma a recuperar
conceitos numa prática viva que é o ritual das rodas. A Regional segue os
passos da Angola e ambas conseguem reviver e recuperar sua unidade,
deixando para a "Contemporânea" escrever sua história. A Angola se volta
para sua essência como movimento de baixo, provocando uma mudança de
posição que permanentemente questiona as outras capoeiras. Também
questionando permanentemente a si própria para estar em movimento.
...considerações finais e iniciais.
Em 1993 a pesquisa da Soma deu seus primeiros frutos. Os
somaterapeutas ligados a Roberto Freire se aprofundam na Capoeira Angola
montando um espaço destinado a Angola de Mestre Pastinha e criando um dos
primeiros espaços dedicados somente a esta arte (inclusive, tendo
conflitos com um capoeirista na sua inauguração) em São Paulo: o Tesão -
a casa da Soma, em Perdizes. Enquanto isso, Mestre Almir das Areias cria
seu projeto Soma-Capoeira, procurando juntar Angola, Regional e outros
estilos num só, o que nada tem a ver com a Somaterapia, ou a proposta da
Soma, que é exclusivamente viver a Angola.
Outro ponto de confusão é a questão libertária, que é mal vista por
muitos devido à tentativa política da 'esquerda' e da 'direita' em
confundi-la com bagunça ou desordem. Através da denúncia do
autoritarismo, o Anarquismo, como a Angola, produz a permanente crítica
às relações que produzem o movimento social. Hoje, o próprio Movimento
Anarquista está contaminado de autoritarismo, e a Soma-Iê procura lutar
contra isso vivendo a Autogestão (ou melhor, em permanente busca por
ela). A luta pela Autogestão é a luta cotidiana contra a vivência do
autoritarismo. Nos estudos de grupos de Capoeira nos aproximamos da
cultura Bantú na descentralização do poder e no respeito à dignidade
humana (não confundir com cidadania (*24) - sempre conceitos em
conflito...). O que está difícil na sociedade é a vivência da Autogestão
e, principalmente, as associações em macro escala, possíveis na teoria de
"Do Princípio Federativo", de Pierre-Joseph Proudhon, mas raramente
vividos na prática. Vivência que acontece cotidianamente nos diálogos da
roda de Capoeira Angola.
Os aspectos técnicos retomados podem variar, mas como exemplificação da
terminologia vamos analisar a bateria das rodas. Mestre Pastinha mostrou
que na bateria o berimbau é indispensável. Com a retomada da Angola pelo
GCAP, Mestre Moraes a definiu com três berimbaus, dois pandeiros,
atabaque, agogô e reco-reco. E outros grupos como de M. João Pequeno e m.
Curió já usava bateria similar na época. Muitos grupos criaram essa
bateria como 'lei' sem perceber que não é só isso que definirá o estilo.
A Regional de Mestre Bimba, que hoje atua com um berimbau e dois
pandeiros de couro, segundo Mestre Boca Rica, antes também contava com um
reco-reco.
A entrada dos instrumentos é plural. O berimbau-de-barriga entrou na
Capoeira entre os séculos XIX e XX. Na vida social, o berimbau era usado
por vendedores ambulantes para chamar a atenção. Antes, no lugar do
arame, era usado o cipó-de-imbé e havia também o berimbau-de-boca. O nome
'berimbau' é de origem portuguesa e espanhola e foi transferido para o
arco-musical africano, que é um dos instrumentos musicais mais antigos da
humanidade (*25). A entrada do atabaque se deu provavelmente no século
XX, na institucionalização da Capoeira. Apesar de constar na clássica
ilustração de Johann Moritz Rugendas (de 1830, considerado o mais antigo
desenho do jogo de capoeira), o atabaque não manteve uma continuidade
histórica. Inclusive, há versões de que quem o introduziu recentemente
foi Mestre Canjiquinha. Se no Rio de Janeiro, na capital do Império,
entrou a navalha, "a Bahia muito contribuiu, na parte musical,
introduzindo o pandeiro, o caxixi e o reco-reco, em substituição às
palmas; e o berimbau de barriga com corda de aço, com voz mais sonora e
muito mais recursos que o de boca" (*26).
Só para apresentar esta exemplificação da bateria, vi na década de 90
grupos mudando e variando. Alguns, que usavam um berimbau, passaram a
usar três berimbaus. No aspecto aparente e superficial, passaram da
Regional para a Angola, mas no aspecto técnico da música, o tipo de
toque, a afinação de cada berimbau e a sua função na roda, eles
simplificaram e enfraqueceram a proposta da Angola, aumentando a
descaracterização e a confusão.
Assim procuro separar os aspectos OBJETIVOS, como cores de uniforme,
bateria, músicas, etc, dos aspectos SUBJETIVOS, as intenções e relações
criadas que se buscam na brincadeira de Angola. Sem uma entrega visceral
(como abandonar a tentativa de ter vários estilos hoje) não se conhecerá
todo esse mistério afro-brasileiro. Podemos ultrapassar a
'objetividade-sem-parênteses' das análises objetivas e trabalhar a
'objetividade-entre-parênteses'(*27) na Capoeira. A Soma-Iê quer
movimentar os conceitos, colocando todos como 'observadores': ação direta
produzindo trocas dentro da roda e fora dela. Cada um é quem vai optar
entre ilusão e percepção. A arte da Angola vai contra a alienação
dominante. Hoje, mesmo grupos de Angola que não mantiverem um contato com
outros mestres angoleiros podem no decorrer do tempo mudar de estilo.
Pois a Angola, viva e em movimento, é formada pelo conjunto dos
praticantes e seus intercâmbios.
Como fiz dois anos de 'Contemporânea' e dez anos de
Angola pura não tenho competência nenhuma para falar da Regional. Possuo
somente algum conhecimento teórico. Na Angola só terei alguma competência
para nela começar a me expressar com mais de quarenta anos de Capoeira.
Não tenho pressa, pois ainda faltam trinta anos para isso. Sempre que se
tenta explicar as diferenças de estilos da Capoeira, o aspecto semântico
confunde muito. Pois só é possível entender a Capoeira através da
experiência pessoal e própria. Este texto é parte de uma pesquisa na qual
pretendo mostrar os efeitos poderosos que a Angola possui para a vida
humana enquanto terapia, liberação da criatividade, liberação energética,
etc...
Uma grande riqueza desse universo é sua diversidade.
Neste aspecto, a Capoeira imita a natureza em sua biodiversidade. Estamos
a cada dia descobrindo novidades, "movimento é vida".
O que pretendo com este texto é clarear um pouco a
nomeação dos estilos, mas com certeza dentro de cada estilo cada grupo
possui suas diferenças. O que vejo na Angola é como cada um consegue
descobrir o seu jeito de se expressar, uma verdadeira unidade na
diversidade (*28). Muito mais importante que os nomes é o que se pratica,
e, nesse aspecto, a Capoeira tem uma unidade. Pois posso dentro do meu
estilo me adaptar e jogar em rodas de outros estilos. E é a partir desta
prática que pergunto com este texto: Qual é a sua? Cada um está
escrevendo a sua história corporalmente e procurando manter as capoeiras.
O que tenho visto são três ambientes e a melhor síntese disso
seria a duração de permanência de estilos:
- CONTEMPORÂNEA é a capoeira mais difundida. Aqui nesta categoria
coloco todas as nomeações que tenham menos de 50 anos de existência. Aqui
entra a MAIORIA DE GRUPOS E ACADEMIAS, com a Capoeira sendo chamada de
'Angola-e-Regional', e as contemporâneas 'regional-moderna',
'Soma-Capoeira', Capoeira free-style (para luta Vale-tudo),
Hidro-Capoeira, Capoeira misturada com outras lutas (boxe, muay-thai,
etc) e ainda as que não querem abandonar seus títulos anteriores. Na
década de 90, tentaram e hoje ainda tentam se aproximar da Angola (o que
está gerando confusões, pois todos têm o direito de aprender o que
quiser, mas nesta categorização, estes angoleiros "contemporâneos" se
diferem dos que jogam EXCLUSIVAMENTE a Angola);
- REGIONAL pura de Mestre Bimba, que está sendo divulgada e
recuperada, principalmente, por Mestre Nenel. Passou por mudanças, tem em
torno de 80 anos de existência;
- ANGOLA pura, que possui Mestre Pastinha como ícone maior, mas
que comporta dentro do mesmo estilo variações práticas e técnicas
derivadas de 400 anos de existência e experimentação. Nessa categoria,
não se aceitam competições ou campeonatos, pois o melhor da roda não pode
ser medido, não existe. Cada um contribui com seu melhor para a roda e
isso potencializa a energia coletiva, que retorna para o indivíduo.
A Soma-Iê se encontra dentro desta proposta com os grupos de terapia
ligados aos Coletivos Iê's de SP, BH e Curitiba. Apesar de não ter um
mestre nos apadrinhando, buscamos a responsabilidade de não misturar ou
deturpar sua essência, permanentemente fazendo oficinas com mestres
angoleiros. Uma fonte de referência além do GCAP e suas derivações (*29)
é a ABCA (Associação Brasileira de Capoeira Angola), que possibilitou a
volta de mestres que pararam por mais de 20 anos ou que modificaram seu
estilo e agora voltaram à Angola. E inúmeros angoleiros que se espalham
pelo Mundo a fora, os já citados e outros como M. Curió, Mestre Lua de
Bobó, M. René, M. Roberval e M. Laércio, e sem falar dos antigos
capoeiristas como M. Antônio Diabo de Jequié.
Esta categorização (*30) pode ser usada por grupos e rodas, mas é sobre o
capoeira, o capoeirista, que procuro definir. Pois se Mestre Bimba foi
angoleiro e criou a Regional, qualquer um pode mudar de estilo no
decorrer do fluxo de sua vida. Nem é sempre o título conseguido por um
mestre angoleiro que definirá seu estilo. Mestre João Pequeno, maior raiz
viva da Angola, formou mestres em Minas Gerais que nesta categorização
não são angoleiros. Há também outros mestres antigos que são angoleiros e
foram criando alunos e mestres não-angoleiros (Mestres Brasília e
Sergipe, e outros inúmeros exemplos). A Capoeira é PRÁTICA e não TEÓRICA.
Se mestres tiveram formação angoleira ou regionaleira pura e não a
seguem, procuro enquadrar seu estilo em função da sua prática cotidiana,
de seu grupo e alunos.
Esta categorização não é entre melhor e pior, simplesmente busco
explicitar uma forma de ver a Capoeira que desenvolvi nos últimos anos,
na prática, na convivência e na pesquisa. Apesar dos estilos terem
treinos e rodas que definem o cotidiano de seus praticantes, qualquer um
pode participar de um outro estilo, desde que respeite os rituais locais,
o que mantém a possibilidade de chamarmos tudo isso de CAPOEIRA.
Acontecem muitos eventos onde se convidam mestres antigos, ora pra
valoriza-los, ora para tentar usar seus nomes, são tênues esses limites,
e secundários, desde que se respeitem estes mestres.
A individualidade defendida por Mestre Pastinha ("cada um é cada um,
ninguém luta como eu") é fundamental dentro do estilo Angola. No entanto,
a infiltração da militarização e da padronização (*31) pode ainda
descaracterizar a Angola no contexto atual de globalização econômica.
Mesmo grupos que foram fundamentais no resgate da Angola, ao insistirem
em uma única padronização, podem enfraquecê-la. O 'Cobra Mansa' de Mestre
Pastinha, Mestre João Pequeno é fundamental hoje, pois além de ser o mais
importante capoeirista vivo e em atividade, soube experimentar e trazer
de volta elementos ritualísticos da sua Angola. Poucos podem trazer em
seu currículo mais de 71 anos de capoeiragem em quase 85 anos de vida.
Desejo críticas e sugestões para ir 'movimentando' minhas percepções aqui
apresentadas e poder retribuir em novos textos (as correções colocarei no
livro), procurando buscar mais 'sinceridades' que 'verdades'. Nas últimas
décadas, com a existência de técnicas de vídeo, fotos e arquivos, há
capoeiristas tentando inventar (mentir) seu passado. Uma pergunta pode
ser um desafio ou um diálogo, na roda e na vida. Dentro das capoeiras, eu
pergunto: Qual é a sua?
Posso definir o outro de fora e cada um pode se definir. Assim poderemos
confrontar conceitos. Querer definir o outro pode parecer autoritário,
uma forma de me defender (fechar), mas também pode fazer parte do meu
direito libertário. O autoritarismo também é móvel e está nas relações e
não só em conceitos. Pois os conceitos mostram a prática e esta é
modificada cotidianamente, pelas relações do indivíduo com seu meio. Eu
sou angoleiro, sim sinhô... e pergunto ao Kamugerê, qual é a sua?
"Para ter mais certezas tenho que me saber de
imperfeições"
Manoel de Barros
Rui Takeguma Somaterapeuta criador da Soma-Iê, anarquista, fotógrafo e
professor do Iê - Grupo Anarquista de Capoeira Angola de SP, participante
da FACA (Federação Anarquista de Capoeira
Angola)
As primeiras pequenas correções aconteceram após e-mail´s de Mestre
Cobrinha (EUA) e MestreMano (RJ), contatos pessoais com M. Nenel (BA) e
novas referências bibliográficas.
Entregue além dos e-mails variados, pessoalmente para M. Primo, M. João
em BH-MG, e avisado da HP para Silvinho e René. Na Bahia, Pepeu do GCAP,
Aranha e Zóinho e Grito do M. João Pequeno, M. Moa do Catênde da ABCA,
Mestre Nenel do Filhos de Bimba e M. Roberval do Filhos de
Angola. Avisado do texto na HP para CM. Boca do Rio e Déo Lembá.
Em 4 e 5 de Abril de 2002, Salvador-BA.
Observações:
*1 -Seu próprio inimigo e porta-voz do establishment, o jornal The New
York Times, acabou tendo de reconhecê-lo como "o mais importante
intelectual vivo da atualidade". Chomsky é anarquista declarado e
professor no Massachusetts Institute of Technology (MIT - EUA). Mesmo
Chomsky, com sua capacidade de percepção especial sobre política
internacional, errou ao classificar o governo do Rio Grande do Sul (ou a
prefeitura de Porto Alegre) como 'dos trabalhadores' durante a palestra
de abertura do 2º Fórum Social Mundial, no início de 2002. O PT (Partido
dos Trabalhadores) pode até ser diferente nas intenções em relação aos
outros partidos, mas na prática repete a mesma estrutura de poder e
exploração, gerando e mantendo a desigualdade social e desviando a
possibilidade de uma ação mais revolucionária e rápida: a mudança no meu
corpo, aqui e agora.
*2 - Roberto Freire, 75 anos, escritor e criador da Soma. Em início de
2002, ocorre minha separação com a Soma praticada pelo Coletivo
Brancaleone e, com Freire voltando ao Brancaleone, opto por um vôo solo
na pesquisa prática da Somaterapia: "Manifesto Soma-Iê" - Janeiro de
2002.
*3 - Revista LIBERTÁRIAS nº2, nov./dez.1997, "Capoeira Angola a Arte da
liberdade" por Rui Takeguma. Quem desejar ler o texto na íntegra pode
acessá-lo na página:
http://somaterapia.vilabol.uol.com.br/artigos.html
*4 - palestra do Dr. Fu-Kiau (Lemba Institut - NY/EUA) durante o III
Encontro Internacional de Capoeira Angola, da Fundação Internacional de
Capoeira Angola (FICA), Salvador-BA, agosto de 1997.
*5 - "O folclore negro do Brasil" de Arthur Ramos, Rio de Janeiro 1935. A
relação Angola-Brasil é outra ainda a ser contada, além dos portugueses
terem sido os únicos europeus a praticar guerras oficiais de captura de
africanos, os brasileiros foram os únicos americanos a ajuda-los nessas
violências. Em 1648, saiu do Rio de Janeiro a força expedicionária de
Salvador de Sá (armada e financiada por fazendeiros fluminenses) que
reativou o tráfico para o Brasil após expulsar os holandeses de Luanda.
Foi o paraibano André Vidal de Negreiros, então governador de Angola,
quem destruiu o reino de Congo, antigo soberano dos reinos nativos de
Angola, na batalha de Ambuíla, em 1665 (por Luiz Felipe de Alencastro,
Nós em Angola, Angola em nós, revista Veja, 27/11/1996).
*6 - "Liberdade por um fio - História dos quilombos no Brasil"
organização de João José Reis e Flávio dos Santos Gomes, São Paulo 1996.
*7 - "Breve Histórico sobre a Capoeira" por Mestre Moraes, publicado em
revistas e no site do GCAP: http://www.gcap.com.br. Esta tese foi
levantada por Luís da Câmara Cascudo (Folclore do Brasil, 1967) e Mestre
Pastinha começa a defendê-la, como uma possibilidade, depois de ir à
África em 1966.
*8 - entrevista a Revista GINGA CAPOEIRA, nº5 - 2001.
*9 - Livro "Capoeira e Mandingas - Cobrinha Verde", de Marcelino dos
Santos, Salvador 1991.
*10 - Livro "Capoeira Angola", de Mestre Pastinha, Salvador 1964.
*11 - "Los Conjurados Del Quilombo Del Gran Chaco", de Augusto Roa
Bastos, o principal escritor paraguaio e um dos mais importantes da
literatura latino-americana. Em 1989 recebeu o Prêmio Cervantes - o mais
célebre da língua espanhola.
*12 - "A Capoeira é brasileira", de Luiz Carlos K. Rocha, Revista MUNDO
CAPOEIRA, maio de 1999.
*13 - "A negregada instituição: os capoeiras no Rio de Janeiro", de
Carlos Eugênio Líbano Soares, Rio de Janeiro, 1994.
*14 - "A Lei Áurea revisitada", de José Luiz Werneck da Silva, suplemento
Negros Brasileiros, Revista CIÊNCIA HOJE, nº48, novembro 1988.
*15 - "Zumbi dos Palmares: Identidade Nacional e Democracia" por Maria
Lúcia Montes.
*16 - "Le Brésil em 1889: les zones agricoles", de André Rebouças, 1889.
*17 - A- "Capoeira: Matriz Cultural para uma Educação Física brasileira",
de Sergio Luiz Vieira, 1997.
17 - B- "As raízes da Regional", Ângelo Decânio, Revista da Bahia,
V.32, nº33, Julho de 2001.
*18 - Jornal Tribuna da Bahia, Salvador, 7 de fevereiro de 1974.
*19 - "Mestre Pastinha - cada um é cada um, ninguém luta do meu jeito",
de Rui Takeguma, escrito para a Revista CORDÃO BRANCO em 30/01/2002,
Espaço Cultural TESÃO, São Paulo. Disponível na home-page do Iê - Grupo
Anarquista de Capoeira Angola.
*20 - "Canjiquinha - Alegria da Capoeira", de Antônio Moreira.
*21 - "O mundo de pernas para o ar - A Capoeira no Brasil", de Letícia
Vidor de Sousa Reis, 1997.
*22 - Depoimento gravado em vídeo durante e para o I Encontro Nacional de
Capoeira Angola de Belo Horizonte, em 1999. Para mim este foi o mais
importante evento de Capoeira que participei, não só pelos Mestres
presentes, mas principalmente por ser realizado por quase todos os grupos
de Capoeira Angola de Belo Horizonte, diferente de eventos promovidos por
um ou outro grupo. Ele aconteceu em grande parte pela luta de mestre
Primo do grupo Iúna.
*23 - Na Revista Brasileira de Estudos Sociais, v.4 nº10, 1989. Os pontos
levantados por Frigério são: Malícia, Complementação, Jogo Baixo,
Ausência de Violência, Movimentos Bonitos, Música lenta, Importância do
Ritual e Teatralidade.
*24 - Como anarquistas, não nos interessa a participação na política
nacional, defendendo a Pátria ou o Estado. Somos internacionalistas. O
Brasil de 2002, que mantém a miséria de grande parte de sua população,
deposita mensalmente dois bilhões de dólares de juros de uma impagável
dívida com o FMI, criada nos governos militares.
*25 - "O Berimbau-de-barriga e seus toques", de Kay Shaffer, monografias
folclóricas 2, 1977.
*26 - "O jogo da capoeira - 24 desenhos de Carybé", de Carybé, Bahia,
1955.
*27 - "Emoções e linguagem na educação e na política", de Humberto
Maturana. A Capoeira, como um todo, mantém uma
"objetividade-entre-parenteses", que possibilita estarmos na mesma
história e crescimento - aceitando o outro independente do estilo e
deixando-se vadiar, trocando na roda. Também pela negação responsável
desta objetividade, percebendo o momento de recusar a troca e
estabelecendo limites, que poderemos manter a Angola fora de elementos
cooptadores como o hierarquismo e a competitividade, inerentes ao
ambiente atual. Podemos e devemos reagir através da evolução da relação
do organismo (Angola) com o meio (Capoeira).
*28 - Proposta anarquista: vivência da autogestão. Nós, anarquistas,
temos muito que aprender com essas estratégias e práticas. Aprender com a
teoria libertária para podermos viver o jogo de Angola na vida social,
fora da roda.
*29 - Derivações diretas do GCAP, a meu ver, são o CCARJ (Centro de
Capoeira Angola do Rio de Janeiro) e a FICA (Fundação Internacional de
Capoeira Angola). Derivações indiretas são os sem estrutura formal de
ligação com estes Mestres, mesmo que com eles tenham aprendido e ainda
aprendam, como por exemplo, o Iúna, de Belo Horizonte, o Angola Dobrada,
ou ainda o Aprendizes de Angola, que existiu em Curitiba. São poucos
grupos exclusivamente de Angola. Nas cidades de Curitiba, São Paulo e
Belo Horizonte existem MENOS DE DEZ grupos deste estilo, entre centenas e
milhares de Capoeira "Contemporânea". Em Curitiba e Florianópolis, quem
formou os primeiros grupos de Capoeira Angola foi a Somaterapia, com a
sua proposta. É na Bahia que ainda se preserva a maior diversidade de
raízes da Angola.
*30 - Buscando apoio na forma de pensar do biólogo chileno Humberto
Maturana Romesín ("tudo é dito pelo observador"), procuro que esta
categorização seja mais "distinguir" que "classificar". Agradeço a
revisão deste texto por alguns amigos e membros do Iê, em especial o
Marcão de BH, Marcos Vinícius Bortolus. Além da edição de texto, feita
pelo poeta André Pessôa, e a revisão final, por Juliana Freire.
*31 - Aprofundar como as ditaduras tenderam a essa função na história
nacional seria interessante, pois os governos, de cima para baixo, tendem
a espalhar e espelhar na sociedade sua estrutura regrada e rígida. A
Angola, como o anarquismo, nasce de cada indivíduo e se harmoniza
cotidianamente nos conflitos interpessoais. Na Capoeira isso é gerado na
roda. O anarquismo seria uma forma de ampliar essa experiência corporal
para os conflitos do cotidiano, gerando uma sociedade autogestiva, de
baixo para cima. Não sem regras, mas com regras em movimento, fruto dos
conflitos do aqui e agora, entre pessoas em igualdade de posições e com
liberdade de expressões.
*32 - Depois de terminar este artigo, saiu no Jornal "Folha de São Paulo"
de 24 de Janeiro de 2002 na matéria "Empresa Brasileira é branca e
masculina": "Mulheres e negros estão sub-representados dentro das
empresas brasileiras. Os negros e pardos, por exemplo - que respondem por
46% da população do país - , ocupam uma quantidade irrelevante (6%) das
vagas na direção das companhias atualmente". É só mais um exemplo para
que se possa ver que a Abolição está no papel e não nas relações sociais
como um todo. A luta nunca foi negros x brancos ou mulheres x homens e
sim entre quem está em cima x quem está embaixo (Zapatismo ou
Anarquismo).