next up previous
Next: Referências Bibliográficas

Impacto da Tecnologia de Informação na Sociedade do Futuro

Imre Simon
Universidade de São Paulo
05508-900 São Paulo, SP, Brasil
is@ime.usp.br

4 de julho de 2000

Foi com prazer que aceitei o convite do Márcio para escrever algumas palavras para o BCC News, mas me assustei um pouco quando ele propôs o tema do artigo. Isto porque acredito na frase atribuída ao grande físico Niels Bohr, afirmando que ``é muito difícil fazer previsões, principalmente sobre o futuro''. Mas, vamos lá.

Inicialmente eu gostaria de colocar o meu ponto de vista sobre este tema. Penso, como muitos outros, que estamos no início de um processo muito dinâmico de mudanças em todas as dimensões da nossa existência. O fato novo que parece estar na raiz das mudanças é a digitalização crescente da informação e a evolução dramática da tecnologia para lidar com a informação digitalizada. Alguns acham que estamos no início de uma grande revolução, parecida talvez com a Revolução Industrial, mas outros objetam ao uso do termo revolução. Um ponto de vista muito interessante é aquele de Phil Agre, que prevê que durante o processo em curso todas as instituições da nossa existência serão renegociadas. Enfim, revolução ou não, poucos duvidam do fato de que a evolução tecnológica impactará fortemente os aspectos econômicos, sociais e culturais da nossa civilização. Ou seja, acredito que é ponto pacífico que haverá impacto.

O problema está em tentar prever qual o impacto ou como o processo se desenrolará. Na verdade, eu acredito que estas coisas são intrinsecamente imprevisíveis. Na minha opinião, o modelo que melhor se adapta a esta situação é aquele dos Sistemas Complexos Adaptativos. Caos, auto-organização, conflitos incessantes, adaptabilidade são algumas das palavras-chaves para descrever o processo. Faz parte desta visão o fato de que o impacto (ou seja, a transição de fase) acontece de forma contínua e imprevisível, fora do controle de qualquer entidade ou ser. Isto é muito importante para a compreensão do fenômeno e é apavorante e tranquilizador ao mesmo tempo (note o exemplo de conflito). O processo atinge um número muito grande de agentes que se comunicam entre si e cujo comportamento continuamente depende do comportamento de outros agentes. Todos agem simultaneamente, essencialmente descoordenadamente, da forma que mais adequada lhes parece. A resultante das ações é que determina o impacto final e por este motivo tal impacto é imprevisível. Uma bela teoria, se Você quiser ler mais sobre isto, recomendo o livro de Stacey, mas existe uma literatura quase infindável sobre o tema.

Bem, isto não deve nos impedir de raciocinarmos sobre a nossa percepção da natureza do impacto, muito pelo contrário. Os dois livros que eu mais recomendo para Vocês lerem sobre os aspectos do impacto é a trilogia de Castells e a obra extraordinariamente original e profunda de Lessig.

Gostaria de focalizar agora um aspecto desta revolução que considero um dos mais importantes. Trata-se da natureza extraordinariamente multidisciplinar e multi-cultural dos processos em curso. Isto é uma afirmação pesada, cujas conseqüências custamos a aceitar em geral. Até porque a sua aceitação implica em dores de cabeça monumentais, já que é muito difícil acostumar-se a uma só disciplina e aprofundar-se nela a ponto de poder dominá-la. Imagina então fazer isto em várias disciplinas, e ser capaz de entender a interação entre duas ou mais disciplinas. Mais complicado ainda é substituir disciplina por cultura nesta transição do mono para o multi. São tarefas formidáveis, no entanto acho que é por aí que as coisas estão andando e é por aí que elas andarão cada vez mais. Continuamente a ênfase maior parece estar na interação ampla, ativa e significativa de duas ou mais disciplinas ou culturas. Elas têm que agir uma sobre a outra, de forma sinérgica, ou seja, cada uma aumentando a outra. É daí que virão os grandes impactos futuros. Faz parte desta minha visão o fato de que os nossos estudos e conhecimentos necessários para a compreensão do dia a dia e para o exercício profissional serão cada vez menos verticais, de menor especialização, para serem cada vez mais horizontais, de maior abrangência temática.

Vou exemplificar estas afirmações, para que elas não se percam numa nuvem de generalidades. E para exemplificá-las vou comentar o último número da revista ``The Economist'' que chegou às minhas mãos. Estou falando do número de 24 a 30 de junho de 2000. É importante notar que trata-se de uma revista semanal de cunho geral e de tradição centenária. Ela é famosa pela profundidade das suas análises e a sua leitura assídua tem me levado à opinião de que esta revista é uma das melhores fontes de informação e de reflexão sobre o tema que o Márcio me propôs. Posso recomendá-la.

Bem, o número em questão do ``The Economist'' tem 80 e poucas páginas de conteúdo editorial e quase 30 delas referem-se aos impactos da tecnologia digital na sociedade. E que impactos! Quer dizer, um terço deste número versa sobre o nosso tema. A diversidade e abrangência tanto das matérias quanto das suas implicações ilustram muito bem a natureza multidisciplinar e multi-cultural do tema. Senão, vejamos.

Um dos artigos principais da revista (uma espécie de editoriais, chamados de ``leaders'') é dedicado à questão da revolução causada pelo Napster no consumo de músicas e o impacto destas mudanças sobre a indústria de entretenimento. Escreve-se cada vez mais sobre este tema. Napster (a mudança tecnológica), Metallica (o artista), sindicato dos grandes rótulos (a entidade que representa os que se julgam os grandes prejudicados), o futuro da propriedade intelectual (um tema gigante e que está no olho do furacão), exércitos de advogados e exércitos de ativistas são os ingredientes principais desta discussão causada pela interferência da Internet na distribuição de músicas digitalizadas. É muito interessante registrar o ponto de vista da revista, que tenta acordar a indústria de entretenimento para que ela perceba que há uma nova realidade que está aí, cujo progresso é inevitável, com a ponte do regresso ao passado destruída e que exige uma nova postura da indústria. Esta postura deve se basear na nova realidade e aliar-se a ela em vez de lutar contra ela. É interessante observar que até mesmo em alguns círculos mais conservadores está cada vez mais freqüente uma opinião destas. Sinal de mudanças irreversíveis.

Ainda ligado ao tema anterior, a revista traz um artigo de uma página e meia sobre um assunto essencialmente técnico, de ciência da computação, acessível ao leitor comum. Aliás, eu aproveito para chamar a sua atenção para este tema, que considero ser um forte candidato a um dos campeões dos impactos futuros mais profundos. Chamo a ua atenção também para a beleza e a complexidade técnica do problema, bem refletidos nas soluções propostas até agora. Trata-se de artigo na seção de Ciência e Tecnologia que aborda o advento de sistemas distribuídos de informação. O artigo focaliza a atenção principalmente no projeto FreeNet que promete uma tecnologia distribuída para armazenar informação digital que poderá ser disponibilizada e consumida de forma anônima, sem que ninguém saiba onde a informação se encontra em cada instante. Conseqüentemente a informação não pode ser destruída. Este sistema está sendo alardeado como uma ferramenta para tornar realidade a impossibilidade de censurar a informação. Por quem quer que seja. Uma afirmação e tanto, pense um pouco! Que impacto econômico, social e cultural! Está curioso para saber maiores detalhes? Comece pela página do projeto na teia em <http://freenet.sourceforge.net/>.

A revista traz ainda um artigo de uma página sobre a nova mania na rede: o ``instant messaging'' e a guerra de cunho comercial envolvida nesta questão. Um belo artigo, que acaba apontando para protocolos abertos como a ferramenta capaz de contrapor-se à tendência a monopólio que está se despontando e que preocupa cada vez mais; um tema e tanto. Acho que eu precisava de um número inteiro do BCC News para desenvolver adequadamente este tema!

Outra matéria muito interessante é um artigo convidado pela revista. Convidaram Jeffrey Sachs, o professor de Harvard, a escrever sobre globalização. Ele acabou concluindo que o mundo não é mais dividido por ideologia, mas por tecnologia. E escreve sobre o poder divisivo da tecnologia e de como a percepção da tecnologia e a capacidade de inovação de cada país determinam o seu futuro no quadro que vivemos. Aborda também as mudanças necessárias para lidar com a nova realidade. Este artigo faz a gente pensar muito. A região sul do Brasil é classificada no artigo como ``capaz de adotar tecnologias'' enquanto a maior parte do país é classificada como ``tecnologicamente excluída''. No hemisfério Sul nem pensar na categoria de ``inovadores tecnológicos'' (com a exceção da Austrália) cujos 5 maiores líderes correspondem a 10% da população mundial, são responsáveis por 41% da produção mundial e por 87% das patentes válidas nos Estados Unidos. E nós? Como vamos enfrentar esta situação? Será que estamos nos preparando adequadamente para o futuro?

Finalmente, o artigo mais extenso da semana é dedicado a um ``survey'' de 22 páginas sobre ``Governo e Internet'', um impacto e tanto, mas que não tenho condições de analisar aqui em maior profundidade. Ficou curioso? Leia o ``The Economist''. Posso lhe assegurar que o ``survey'' é muito interessante.

E o BCC? Onde fica o Bacharel de Ciência da Computação neste quadro multidisciplinar e multi-cultural? Será que estamos preparados para adquirirmos e fornecermos uma formação multidisciplinar e multi-cultural? Eu tenho as minhas dúvidas. Mas é importante registrar que o Bacharel de Ciência da Computação é uma peça essencial neste processo, se ele souber se adaptar à nova realidade. Ele é essencial, pois é o que melhores condições tem de entender e de interpretar a tecnologia digital das redes computacionais. E este é um aspecto essencial e indispensável do processo em curso. Mas ele tem que entender que o seu maior valor não está mais em si mesmo, mas na sua capacidade de interagir com outras profissões e com outras culturas. Na sua capacidade de levar o seu conhecimento para fora da sua área específica de atuação. Um desafio e tanto!

Voltando à revista, vou confidenciar a Vocês que se trata de um número extraordinário da mesma. Eu na verdade demorei tanto para escrever este artigo, pois estava esperando este número da revista para poder comentá-lo :-) Felizmente, nem todos os números são tão ricos assim em termos de impacto da tecnologia sobre a sociedade. Mas, veja só! Acaba de chegar o número desta semana. A capa, o ``survey'' e vários outros artigos são dedicados ao Projeto Genoma. O outro braço da revolução digital que estamos vivendo. O braço que complementa aquele das redes computacionais. Põe mais disciplinas e mais culturas nisto!

E qual é a moral desta história? Acho que é esta: vem impacto aí, não é possível evitá-lo, muito menos prevê-lo, mas se quiser refletir sobre ele ou se juntar a ele adote um ponto de vista cada vez mais multidisciplinar e mais multi-cultural e para te amparar nesta árdua caminhada procure ler (pelo menos) o ``The Economist''!

Muito obrigado pela atenção e por me esperarem.




next up previous
Next: Referências Bibliográficas
Imre Simon
2000-09-14