Enfim, todo Catulo à disposição do leitor brasileiro

Paulo Sérgio de Vasconcellos

Na época de Cícero, quando a República romana se aproximava de seu fim, um grupo de jovens poetas, quase todos da Gália cisalpina, hoje norte da Itália, provocaria verdadeira revolução nas letras latinas, praticando um novo ideal de poesia muito distante dos preceitos da velha tradição. Até então, apesar de um que outro esporádico prenúncio de mudança nas gerações imediatamente precedentes, a literatura que gozava de consideração e reconhecimento oficial era a que tinha, sob o ponto de vista do Estado, alguma utilidade prática, alguma preocupação moralizante. Venerava-se, sobretudo, a epopéia de Ênio, poeta que recebera o título de "pai" das letras latinas e cantara as proezas dos antepassados. Até o surgimento da Eneida de Virgílio, na época de Augusto, os Anais de Ênio o consagrariamcomo o Homero romano e se canonizariam como o modelo da literatura "séria". Cícero, que na juventude manifestara em seus poemas tendências semelhantes às que se verão nos novos poetas, paradoxalmente expressaria um soberbo desprezo por essa geração de escritores, que ele, contrastando-os com o "exemplar" Ênio, apelidou de "poetas novos", "poetas modernos" (1), com expressões de indisfarçável tom depreciativo.

Da produção desse grupo de enfants terribles só nos resta a obra do maior deles, o veronês Gaio Valério Catulo, que deixou uma coletânea de cerca de cento e dezesseis poemas, lidos, traduzidos, recriados, musicados, encenados, em suma, estimados e influentes, através dos séculos, com a exceção de certo eclipse durante a Idade Média. Totalmente justificável, pois, que Harold Bloom o tenha acolhido no seu, por outros aspectos discutível, cânone ocidental (2).

E que grande novidade traziam esses poetas que incomodavam os mais ciosos de uma tradição visivelmente esclerosada em obras sem viço? Sobretudo, a concepção de que a finalidade da poesia não se subordina a compromissos morais de espécie alguma, mas e, acima de tudo, o prazer estético que proporciona uma obra de arte elaborada e graciosa, burilada sem parecer artificial, cuidadosamente trabalhada mas plena de vida.

Não lhes interessavam os grandes temas da história nem os da lenda e da mitologia já tratados à exaustão; quando incursionavam pelo domínio da fábula, elegiam histórias pouco conhecidas ou aspectos mais obscuros de um mito conhecido, muitas vezes se comprazendo em alusões sutis que podiam beirar o enigmático. Na verdade, qualquer matéria do dia-a-dia, se transfigurada pela criação poética, parecia-lhes digna: um convite para jantar, uma ameaça a alguém que, achando tal ato divertido, surrupiou um lenço ao poeta, o lamento pela morte da avezinha de estimação da amada, sobretudo a vida sentimental, da amizade à paixão amorosa, que, para os antigos, sempre escraviza. Poesia de circunstância, em suma, que teria escandalizado, como fruto estéril de fútil ócio, a um Catão, o Censor...

Imbuída de estética alexandrina (Calímaco é, aqui, o mestre supremo), a geração de Catulo aperfeiçoaria como nunca antes a técnica do verso latino, que teria seu ápice com Virgílio e Horácio, poetas diversos daqueles predecessores, sobretudo por reafirmarem o compromisso ético da poesia, revalorizando a figura do poeta como "vate" (3), inspirado portador de valores importantes para a comunidade ­ mas sumamente devedores, com seu rigor formal (o labor limae) e suas técnicas alusivas, do ideal calimaquiano difundido pelos pioneiros.

O leitor brasileiro conta, agora, com uma boa edição completa dos poemas de Catulo, precedida de introdução que apresenta ao leitor as principais questões discutidas hoje sobre a poesia subjetiva, não apenas latina (a persona poética, a não confundir com o autor de carne e osso, como o próprio Catulo explicita num poema, o de número 16; as relações intertextuais na lírica; as questões de filiação genérica), e seguida de notas na medida certa, que esclarecem o leitor leigo sem deixar de trazer informações e reflexões de relevo também para os já iniciados na literatura da Antigüidade.

No aforismo 83 de seu A Gaia Ciência, Nietzsche afirma que cada época revela seu sentido histórico pelo modo como traduz as obras do passado; no desenvolvimento dessa idéia, aprecia as relações dos poetas latinos com os gregos (que eles retomaram, traduzindo e recriando) como uma espécie de apropriação imbuída do espírito mesmo do império romano. Essa última afirmação é, no mínimo, bastante discutível, por não tocar a essência do processo alusivo da maior parte da poesia latina clássica, que não "raspa", absolutamente, o nome do criador grego, como pretende o filósofo (4), mas, pelo contrário, tece com sua obra as mais variadas relações de um diálogo criador de sentidos, incitando o leitor a ter sempre em mente suas "fontes". Não posso me deter aqui para aprofundar a discussão sobre esse aforismo interessante, mas faço uso de suas primeiras palavras para iniciar meu comentário a respeito do nosso (isto é, no Brasil de hoje) modo de traduzir os textos clássicos.

É notável, aliás, como o mercado editorial brasileiro para essas publicações vem crescendo nos últimos anos, certamente muito longe da exuberância dos anos anteriores à retirada do latim dos cursos de primeiro e segundo grau, mas pouco a pouco se distanciando da pobreza desoladora de algumas décadas atrás. Essa expansão mais ainda nos incita a refletir sobre o modo como temos traduzido os clássicos greco-latinos.

Em nosso país, com raras exceções, há pletora de traduções acadêmicas, que têm seu papel de divulgação, como parece ser mais reconhecido em outros países que no Brasil; no entanto, se o trato com a tradição clássica se restringisse a elas, com que perspectiva redutora estaríamos lidando com o passado literário! Não era esse, por certo, o espírito dos próprios gregos e romanos, que, da tradução mais ou menos criativa à recriação crítica dos predecessores, mantinham um vivo e rico diálogo, de releituras e "desleituras" (como se tem traduzido a noção de misreading difundida por Bloom) (5) de um autor por outro (6), sem pretensões românticas de utópica originalidade e sem escrúpulos acadêmicos que desfiguram o espírito de uma obra sob pretexto de preservar a letra dos textos. Em país de escassíssimo espaço para os estudos clássicos, vemos uma desalentadora falta de criadores que, em face dos textos greco-latinos, mobilizam sua competência artística para recriar a ossatura fônica, rítmica, sintática de obras que sem esses elementos nada periféricos se tornam letra quase morta, triste "poesia" rígida como um fóssil... No trato criativo com o original, as nuanças vão da tradução que se propõe como verdadeiro texto, sem o complexo de inferioridade que os antigos jamais tiveram, à recriação; não há meio mais eficaz de manter vivas as vozes do passado.

Felizmente, a edição de Catulo que a Edusp coloca à disposição do leitor brasileiro vai muito além da trivial modorra. De fato, logo à leitura das primeiras traduções dos poemas, percebe-se que o encanto e a graça de Catulo não vêm sufocados por escrúpulos acadêmicos. Já de imediato, chama a atenção o bom gosto da edição, digna da importância do poeta e da competência do tradutor.

O professor João Angelo Oliva Neto sabiamente adota padrões métricos para todos os poemas, um desafio que poderia ter resultados catastróficos em mãos inexpertas, mas que é vencido galhardamente por ele. À riqueza métrica de Catulo, diversidade de ritmos na tradução, uma proposta que impõe um labor a mais para o já difícil trabalho, mas que funciona como freio imediato para as facilidades da tradução literal. Desafio espinhoso: se o poeta veronês mostra, sob a aparente facilidade de suas "bagatelas" (nugae, como ele denomina seus poemas, pelo menos os de "circunstância"), uma técnica sutil, decididamente "alexandrina" no seu burilar da forma, o tradutor, sujeito às agruras do padrão métrico regular, precisa evitar toda impressão de artificialidade e manter a vivacidade e a naturalidade aparentes dos poemas "menores", que constituem a maior parte (e a mais estimada, estudada e imitada) do livro de Catulo. Há, sobretudo, o risco de trair o tom coloquial, de conversa colhida ao acaso pelo leitor, de não poucas poesias, pela adoção de uma camisa-de-força métrica que poderia tirar a espontaneidade da dicção do verso português. Abra-se a tradução de João Angelo ao acaso e se verá que geralmente conseguiu evitar tais riscos.

Outro aspecto a salientar foi a "audácia" do tradutor em citar autores vários, antigos e modernos, em sua tradução (até Camões...); longe de torcer o nariz, o "purista" de vistas estreitas deve considerar que era esse mesmo o espírito da arte antiga, alusiva em vários aspectos, sob várias formas intertextual. Ao citar textos que Catulo jamais poderia ter lido, o tradutor abandona a literalidade dos versos, mantendo-se, porém, fidelíssimo ao espírito da arte catuliana, ao encetar, como ele, diálogo com sua tradição literária; por outro lado, deixa visível, sem hipocrisia, que não há modo de dialogar com textos do passado sem a intermediação de uma bagagem cultural outra, sedimentada ao longo dos séculos, em novas vivências sociais e culturais.

Abro um parêntese para exemplificar a diferença que distingue esta tradução de uma "acadêmica"; não pretendo dar qualquer conotação pejorativa ao último termo, que designa uma tarefa que tem seu interesse e seu momento, como espero também demonstrar ­ mas que não pode servir de pretexto para tolher a outra, obra de criação que faz reviver, para um público mais amplo que o do recinto universitário, um poeta morto há mais de dois mil anos. Abaixo transcrevo uma tradução literal (o mais possível!) do poema 84 de Catulo e, depois de breve comentário, a de João Angelo:

"Árrio dizia chommoda, quando queria commoda

dizer e, ao invés de insidias, hinsidias,

e achava que tinha falado esplendidamente

ao dizer hinsidias o mais que podia.

Assim a mãe, creio, assim o tio liberto,

assim o avô materno e a avó falavam.

Enviado ele à Síria, descansaram os ouvidos de todos:

ouviam pronunciar as mesmas palavras brandamente e suavemente

e não mais temiam palavras assim;

mas eis que de repente chega notícia terrível:

as ondas iônias, depois da chegada de Árrio,

já não eram iônias, mas hiônias".

É um poema célebre, muito citado pelos filólogos e gramáticos por ilustrar um caso de "hiperurbanismo": querendo parecer fino e culto, Árrio coloca aspiração até em palavras em que ela não existia... Uma tradução literal em nossa língua precisará apor uma nota assim; pior: não terá o que fazer com a aspiração de consoantes ou de vogais iniciais referidas no texto original, com os pares contrastados chommoda e commoda, hinsidias e insidias, que nada significam para o leitor leigo, sem contar o "iônias", menos comum que "jônias", em português. Ora, o leitor curioso, por um motivo ou outro, desse fato lingüístico ­ a aspiração, inicial ou não, na época de Catulo­, se não domina o latim do original, precisará ler tradução do poema que mantenha os dados referenciais tais quais, isto é, ter com o texto o contato que se tem com um documento; todavia, se esse não é o interesse maior do leitor comum, culto mas não interessado em detalhes filológicos, há que se encontrar outros meios de se criar um texto que se sustente sem notas de rodapé pouco amigáveis.

Que faz João Angelo? Cria um excelente "análogo", precisando, para isso, modificar certos dados referenciais ­ "traindo" a letra do texto para não trair o espírito, o sal e o encanto de um poema que jamais se pretendeu ser mero exemplo de tratado filológico... Eis sua versão:

"Árrio dizia 'rúbrica' em vez de rubrica

e por pudico 'púdico' dizia

e achava que falava tão incrivelmente

que, se podia, 'púdico' dizia.

Creio que assim a mãe, assim o tio liberto,

assim o avô materno e a avó falavam.

Foi à Hispânia e os ouvidos descansaram todos;

as palavras soavam leves, lindas

e tais palavras nunca mais ninguém temeu.

Súbito chega a hórrida notícia:

os Iberos, depois que Árrio foi para lá,

Iberos já não eram, eram 'Íberos'".

Da tradução literal a uma recriação total, modos vários de tratamento do original que se pretende verter para outra língua são possíveis, mais à esquerda ou à direita. A meu ver, o grande trunfo da tradução de Catulo feita por João Angelo é duplo. Por um lado, sabe evitar as armadilhas da tradução literal, maximamente empobrecedora da ossatura material dos signos da poesia, em sua teia fônica e rítmica. Por outro lado, consegue permanecer muito próximo da letra do original, com a vantagem da concisão e da recuperação quase geral (não nos levem a um erro de avaliação as modificações da tradução mais acima transcrita) dos dados referenciais da cultura da época. Assim, essa tradução não- literal respeita a condição histórica do texto, sua alteridade, como o latinista verifica com facilidade cotejando a versão portuguesa com o texto latino, assim como o leitor leigo identifica também facilmente ao se ver introduzido num mundo que é semelhante e diverso do seu ao mesmo tempo.

De resto, se o tradutor não fosse suficientemente hábil, uma versão "poética" poderia acabar se tornando pior que uma em prosa feita com correção e tato: a montanha pariria um ridículo rato... A um e outro risco, Cila e Caríbdis, João Angelo consegue escapar.

Aqui vão alguns exemplos de felicíssima e inventiva reprodução dos sons e sentidos do original: no poema 3, it per iter vertido como "vai por via"; todo o poema 4, digno de menção à parte; no poema 63, destaco um verso (dentre vários outros dignos de citação) que imita em Catulo o som do tamborim frígio, vertido com a forte harmonia imitativa do original, sem precisar o tradutor se afastar da letra do texto: "quatiensque terga taurei teneris caua digitis" ­ poema 63, verso 10 ("batendo em cava pele táurea os tenros dedos").

Outro exemplo de hábil resgate da sonoridade do original no poema 64; o cortejo de bacantes que acompanha Dioniso extrai dos instrumentos musicais empunhados música mimetizada pelas aliterações e assonâncias do verso:

"outras batiam tímpanos na palma erguida

ou tiravam tinido agudo ao êneo címbalo.

Muitas sopravam roucos ribombos em cornos

e horrendo trino estridulava a flauta

[bárbara" (v. 261-4).

Efeitos que João Angelo consegue com economia de recursos, sem inflar o original, e permanecendo bastante fiel, além disso, ao sentido literal. E poderíamos continuar citando muitos outros exemplos, em farta colheita.

Nesta ótima edição, porém, um ponto decepcionante é o pouco espaço deixado para o texto original, o que o torna tão diminuto a ponto de ser algo incômoda a sua leitura; como está reproduzido em itálico, distinguindo-se, assim, suficientemente, do texto português sob o ponto de vista da apresentação, por que não lhe dar tamanho maior? É o caso de pensar nisso quando de reedições futuras, que, com certeza, ocorrerão.

De resto, alguns pequenos senões, compreensíveis em obra dessa envergadura. Na página 121, uma reprodução de pintura em vaso que apresenta cena pederástica vem ilustrando o poema 64, com a legenda errônea "Peleu e Tétis". Um detalhe na introdução tão bem feita mereceria uma observação; ao tratar do verso coliambo, o tradutor releva seu uso particular nos poemas 8, 22, 31, 37, 39, 60 (por que não completar a lista, acrescentando os poemas 44 e 59, também em coliambos, como, de resto, se observa em nota?): "a mera presença dessa medida consubstanciava o clima de alegria, ou pilhéria, na 'estória' contida em todos esses poemas, exceto o 8" (p. 60). No entanto, o poema 60 apresenta-nos um problema a resolver, pois é difícil ver nele intenção irônica ou jocosa (nem Fordyce ou De Gubernatis, dois dos maiores estudiosos do poeta, o fazem); se se aceita que a mera presença do metro confere à composição um tom festivo, o poema 60 nos propõe um desafio interpretativo muito maior que o do poema 8 e, por isso, mereceria comentário à parte. Por outro lado, certa tendência a escolher termos portugueses diretamente derivados dos latinos presentes no original (como "nefas") leva, por vezes, a quebrar a coloquialidade que se vinha mantendo em toda a tradução (como no poema 89). Por fim, a peia do metro regular, ou alguma outra motivação, leva, às vezes, a certas alterações bruscas da ordem do original que lhe tiram algo da eficácia expressiva, como no poema V, em que os belíssimos versos 4, 5 e 6 recebem uma ordenação que subtrai ao conjunto o aspecto de bloco temático compacto. Esta, porém, é uma tônica da composição como um todo: grupos de versos nitidamente divisíveis em 3-3-3-4 (estes últimos, em 2-2), um dado de relevo num poema que extrai conotação da ordem, como mostra o quiasmo do último grupo de versos (oração adverbial temporal, oração adverbial final ­ oração adverbial final, oração adverbial temporal: cum ne ­ ne cum): provável mimese, no plano sintático, do embaralhar dos beijos após a multiplicação precedente, de ritmo regular, aos mil e cem... Ainda que não se concorde com tal interpretação, a admirável disposição harmônica desse poema, aquilo que os antigos teriam denominado sua concinnitas, salta aos olhos e se impõe como elemento importante a se considerar numa tradução.

Mas o que vai acima são detalhes que nem de longe arranham a certeza de que estamos diante de uma publicação importante, de uma tradução criativa e competente, tão sensível ao ritmo e aos sons como atenta ao universo cultural revelado nos signos do original; em suma, obra de estudioso com a grande virtude de manter o encanto das adoráveis "bagatelas" de Catulo. Com essa publicação, o leitor brasileiro pode finalmente conhecer as várias facetas desse poeta ao mesmo tempo divertido e douto, mordaz e comovente, artífice poderoso do verso que sabe disfarçar sua técnica como ninguém. Quanto ao especialista, ou, ao menos, quem é capaz de ler o latim de Catulo, terá o prazer suplementar de penetrar no diálogo criativo entre tradutor e obra, que, no caso desta tradução, é rico e realmente estimulante.

PAULO SÉRGIO DE VASCONCELLOS é professor de Latim do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp e autor de O Cancioneiro de Lésbia (Hucitec).

O Livro de Catulo, tradução, introdução e notas de João Angelo Oliva Neto, São Paulo, Edusp, 1996.