O projeto das comunidades virtuais

Peter Lyman

O ciberespaço é mais que uma matriz matemática criada pelas tecnologias cibernéticas, embora também seja isso. Além da computação ou de qualquer outra realização tecnológica, os computadores têm se tornado um novo meio para a comunicação entre as pessoas de todo o mundo. E o mais incrível é que esse novo meio parece criar uma sensação de participação em uma comunidade, uma sensação que transcende o tempo e a geografia.

Esta experiência é freqüentemente chamada de "realidade virtual" ou "comunidade virtual". Alguns antropólogos têm começado a chamá-la de "Cyberia" (1), para indicar que a nossa experiência com o ciberespaço não é técnica, mas é como se estivéssemos em um novo tipo de mundo social. Os participantes da Cyberia falam na criação de um novo tipo de identidade e de vida pessoal em um novo tipo de lugar, ainda que a Cyberia só exista como um sinal eletrônico. Talvez o ciberespaço possa ser descrito como um novo tipo de país que transcende a nacionalidade, um país que combina a universalidade da ciência com a espontaneidade de um novo tipo de arte dramática.

Embora os computadores sejam uma espécie de máquina, eles respondem de uma maneira que é mais que mecânica. São uma espécie de "outro", se não são totalmente um "eu". Recentes pesquisas no projeto da interface sugerem que se as interfaces do computador receberem o menor indício comportamental que possa sugerir a presença de uma personalidade, os humanos vão tratar seu relacionamento com os computadores como se fosse relacionamento íntimo com outras pessoas. Essa dimensão social dos relacionamentos entre os humanos e o computador não é intencional e foi descoberta por acaso, pois ela é evocada até por sistemas técnicos originalmente projetados para propósitos militares e científicos. Considerando que pode ser desenvolvida no ciberespaço uma sensação de comunidade, ainda que acidental, o projeto de todos os sistemas desse ponto em diante deve incluir uma visão social e cultural, e também uma especificação técnica. Como o ciberespaço é um novo tipo de país, como ele deve ser designado? Que tipo de cultura ele deve ter? Que tipo de ética? De arte? De política?

O correio eletrônico é talvez o primeiro e mais importante exemplo dessa cultura acidental. É não somente um meio técnico para se trocar mensagens, mas também a primeira de muitas novas formas de comunicação em rede, que parece poder dar suporte a uma sensação de comunidade. Essa sensação de uma comunidade virtual parece ser forte, mesmo que grandes distâncias geográficas separem seus membros. Embora útil, a cultura técnica do e-mail é imperfeita. Mensagens breves podem provocar más interpretações e conflitos quando o leitor e o escritor não conhecem um ao outro nem compartilham uma cultura comum; ou quando discordam ou estão zangados um com o outro; ou quando a mensagem é sutil ou complexa. Além disso, o e-mail é visivelmente um meio de comunicação capaz de manter uma sensação de amizade pessoal ou comunidade social, mesmo quando os participantes vivem em lados opostos do mundo. É essa sensação de comunidade, embora frágil, que deve ser nutrida enquanto construímos novos tipos de instituições no ciberespaço, como salas de aula virtuais e bibliotecas digitais.

Novas culturas também emergem quando se joga jogos de computador, ou em outras atividades espontâneas franqueadas a partir da disciplina de trabalho, como programar ou "navegar na rede". Mesmo uma pessoa sozinha com um computador forma um elo especial, mais parecido com aquele que existe entre um músico e um instrumento musical do que entre um trabalhador e uma máquina. Sherry Turkle (2) descreveu uma profunda concentração emocional e intelectual nas crianças quando elas brincam com computadores, uma espécie de jogo que leva a pessoa para fora do tempo e do espaço, que é freqüentemente associado com a aprendizagem.

Desde o início, houve também jogos de computador para serem praticados em grupo, que produziam uma sensação pública de comunidade virtual. Atualmente, a comunidade virtual emerge da tecnologia de MUDs e MOOs. MUD é um acrônimo para Multi-User Dungeon or Dimension (Masmorra ou Dimensão de Usuários Múltiplos). Originalmente, estes eram softwares de jogos de aventura, em geral baseados em histórias do jogo "Dungeons and Dragons", que muitas pessoas podem jogar ao mesmo tempo. MOO é um acrônimo para MUD Object Oriented (MUD Orientado para o Objeto), que adicionou efeitos de multimídia para os MOOs, especialmente gráficos e som. (Aqueles interessados em explorar os MUDs para si mesmos podem ir até o grupo de novidades da Usenet chamado rec.games.mud para encontrar listas dos MUDs acessíveis na Internet.)

O MOO mais famoso é o Lambda Moo (3), originalmente um projeto de pesquisa da Xerox Parc que investiga as dimensões sociais da Internet, e agora tema de muita pesquisa nas comunidades do ciberespaço (ver http://www. Butterfly.net/eclipse/lambda.html/ na World Wide Web). Lambda Moo é uma pensão virtual, cujos membros realmente moravam em toda parte dos Estados Unidos, mas eram também membros de uma comunidade no ciberespaço, encontrando-se na sala virtual para conversar. Embora eles jamais tenham se encontrado pessoalmente, quando um dos personagens virtuais atacava outro, sentiam o mesmo trauma que poderiam ter se realmente vivessem juntos (Dibble, 1993).

O sucesso desses mundos da fantasia conduziu a outras experiências para ver se a realidade virtual poderia ser usada para simular mundos para a educação e o treinamento. Programas de software como o e-mail e os jogos foram as primeiras experiências sociais no ciberespaço, que agora se desenvolveram em experiências da realidade virtual, como "colaboratórios" (4) e salas de aula virtuais. O termo "colaboratório" é uma contração de duas palavras, "colaboração" e "laboratório". O Conselho Nacional de Pesquisa dos Estados Unidos define um colaboratório como um "centro sem paredes, em que os pesquisadores da nação podem realizar sua pesquisa independente da localização geográfica ­ interagindo com colegas, acessando instrumentação, compartilhando dados e recursos de computação e acessando informações em bibliotecas digitais" (5). Assim, por exemplo, os cientistas podem estudar dados de instrumentos de pesquisa de alta profundidade do mundo todo como se estivessem no mesmo laboratório. (Informações sobre o colaboratório de alta profundidade podem ser encontradas na World Wide Web em http://www.si.umich.edu/UARC/) O projeto colaboratório é ainda experimental, mas pode servir como modelo para salas de aula virtuais que podem ser compartilhadas por professores e alunos de qualquer parte ligados na Internet.

A própria World Wide Web pode também ser descrita como uma experiência social. Ela é, antes de tudo, um meio para a comunicação global que não é controlado por nenhum governo, embora muitos governos estejam agora tentando controlar o intercâmbio de propriedade intelectual no ciberespaço. A Internet é um meio em que os indivíduos podem publicar o que quiserem, e ver sua obra distribuída em uma escala global. Pesquisa realizada no Arquivo da Internet em São Francisco indica que a rede consiste atualmente de dois terabites de informações, o equivalente a dois milhões de livros, em mais de duzentos idiomas. A tecnologia impressa mudou o mundo, possibilitando a preservação e distribuição de conhecimento. Agora as tecnologias da Internet possibilitam a distribuição instantânea de idéias em todo o mundo. É difícil imaginar que tipos de mudança social podem emergir dessa possibilidade, mas certamente é provável que se desenvolvam novas formas de cultura.

A questão mais importante da pesquisa atual é se as realidades virtuais podem ser planejadas para estender a educação para todos. As bibliotecas e as universidades têm sido sempre definidas fundamentalmente como locais geográficos, mas a importância da realidade virtual é que as pessoas de locais remotos podem agora ter acesso a esses recursos educacionais através de tecnologias de educação a distância.

A pesquisa sobre tecnologias de computador para uma biblioteca digital já está bem adiantada, mas até agora está concentrada em problemas como o projeto de novos gêneros de informação (como o hipertexto) e novos instrumentos de manejo (como meios de busca). Mas uma biblioteca é mais que um repositório de informações. Embora ela seja certamente isso, é também uma instituição que sustenta uma sensação de comunidade: seja uma biblioteca nacional, que ajuda a definir uma cultura nacional, uma biblioteca pública, que sustenta uma sensação de identidade cívica, ou uma biblioteca escolar ou universidade, que sustenta uma sensação de comunidade acadêmica. Em cada caso uma biblioteca é também uma tecnologia para a comunidade, criando uma memória compartilhada do passado, uma armazenagem comum de conhecimento e um local para a criação de novo conhecimento. Somente agora podemos colocar um segundo objetivo ao projeto de sistemas para uma biblioteca digital: sustentar uma sensação de comunidade.

Finalmente, as bibliotecas não precisam mais servir apenas as comunidades locais e nacionais, pois é possível às bibliotecas de todo o mundo estarem ligadas a uma biblioteca digital global. Freqüentemente se diz que a Internet vai criar um novo tipo de propriedade intelectual, que as idéias vão se tornar a base da competição econômica entre as nações. Mas um dos objetivos da biblioteca digital é se tornar um lugar para o compartilhamento de idéias e a base da cooperação social entre as nações.

Notas

(1) Ver Arturo Escobar, "Welcome to Cyberia", in Current Anthropology, junho de 1994, pp. 211-31.

(2) Sherry Turkle, "The Second Self", New York, Simon and Schuster, 1984.

(3) Ver J. Dibble, "A Rape in Cyberspace", in The Village Voice, 21 de dezembro de 1993, pp. 36-43.

(4) National Research Council, National Collaboratories: Applying Information Technologies for Scientific Research, Washington D.C., National Academy Press, 1993.

(5) Idem, ibidem, p. 7.

Peter Lyman é professor da Universidade da Califórnia, Berkeley (EUA).

e-mail: Plyman@library.berkeley.edu

Tradução de Magda Lopes