Bibliotecas virtuais

Arnaldo Mandel

Há meses é raro chegar às minhas mãos um preprint pelo correio normal. Isso, é claro, não por defeito dos correios, mas pelo simples fato que preprints em papel estão acabando. Como todos os artigos técnicos são produzidos primariamente em formato eletrônico, é muito mais fácil para os autores distribuí-los usando os vários mecanismos disponibilizados pela Internet. Arquivos de preprints em Computação (1), Matemática (2) e Física (3) já existem há tempos para facilitar a distribuição eletrônica e o acesso em grande escala antes da publicação efetiva.

A tecnologia de publicação eletrônica e uso da Internet foi desenvolvida e adotada pela comunidade acadêmica (uma parte dela) e já mostra uma direção para mudança do conceito de publicação. A disseminação da informação é rápida e eletrônica, servindo a publicação tradicional mais como forma de registro e sancionamento, e não de veiculação.

Mesmo quanto ao registro, os primeiros passos para publicação eletrônica em grande escala já foram dados. Em cada uma das mesmas três áreas já existem por volta de vinte revistas de pesquisa publicadas eletronicamente (e mais de sessenta em medicina); isso sem falar de editoras que distribuem eletronicamente assinaturas de suas revistas para assinantes do formato convencional. Os números são pequenos se comparados ao mercado editorial representado por essas áreas, refletindo o estado de fluxo de idéias em que algumas questões fundamentais estão:

· Como garantir um registro permanente de uma publicação, quando o meio eletrônico conduz à alteração dinâmica?

Soluções adotadas por enquanto são do tipo edição alternativa em papel e anuário em CD. Outros arquivam os artigos em formato não facilmente alterável; mas a substituição de um arquivo por outro é sempre uma possibilidade. Afinal, essas podem ser respostas a uma pergunta errada. Será que a perenização do registro é realmente desejável ­ não convém mais à comunidade científica a existência de publicações que evoluam com o tempo?

· Como resguardar os direitos autorais aos seus detentores?

O respeito a direitos autorais é de difícil garantia, no caso de publicações eletrônicas. Em particular, não há como efetivamente proibir que um arquivo copiado venha a ser distribuído sem controle do detentor do direito. No caso de artigos de pesquisa, isso pode não ser uma preocupação do autor, em geral interessado prioritariamente na máxima divulgação dos resultados, com reconhecimento de autoria.

· Como garantir um sistema de edição e revisão?

Atualmente boa parte desse trabalho é feita por editores profissionais (exceto o peer review), com retorno financeiro obtido através da venda do material publicado. A remuneração por informação distribuída pela rede é uma questão econômica que afeta vários ramos de comércio, e soluções devem aparecer logo em vista das pressões do mercado. Uma dificuldade peculiar ao ramo de distribuição de informação é que esta é um bem intangível e especialmente arisco dentro da rede.

Os exemplos citados acima dão uma idéia do que vem acontecendo com a divulgação da descoberta científica. Os efeitos da Internet se sentem mais rápido em umas áreas que em outras, mas são inexoráveis.

Dentro em pouco quase toda a informação científica produzida será disponibilizada de alguma forma na Internet; basta que as questões acima e algumas outras do gênero sejam resolvidas a contento dos interessados. Uma dificuldade maior ocorre na outra ponta, a do consumidor de informação. O pesquisador e o acadêmico trabalham tradicionalmente com informação localizada em bibliotecas, organizada de formas já longamente estabelecidas. Com a informação dispersa pela rede mundial (e, quem sabe, no futuro, interplanetária) um grande desafio se apresenta em torná-la efetivamente disponível.

· Como organizar esse grande volume de informação?

Os métodos tradicionais de indexação, por autor, palavras-chave, etc., parecem insuficientes e pobres, dada a possibilidade, em princípio, de se fazer indexação para dentro dos textos. Por outro lado, como essa informação varia dinamicamente com grande velocidade, qualquer mecanismo de indexação envolve um esforço tecnológico não trivial.

Além disso a natureza anárquica da Internet leva a que muito se publique sem a sanção de nenhum organismo oficial, nem uma organização de fundo. No presente, esse tipo de produção é praticamente ignorado em bibliotecas acadêmicas. Será que isso cabe no futuro?

· O que é acervo neste novo contexto?

No presente, uma obra que está no acervo de uma biblioteca tem seu acesso garantido aos usuários, independentemente da vontade do autor ou editor. Uma publicação que resida na rede não tem essa garantia. Pode haver empecilhos técnicos temporários para acesso a um servidor, mas pode também haver obstáculos ao acesso impostos por quem controla o servidor. Será necessário que cada biblioteca tenha cópia de tudo, para se garantir?

· Como integrar o legado de tempos passados?

À medida que a informação vai se tornando digital, o usuário vai também adquirindo destreza no seu uso e preferência pelo meio. Haverá demanda para que a imensidão de obras atualmente presentes nas bibliotecas seja colocada à disposição nesse meio. Uma linha romântica nessa direção vem sendo seguida pelo Projeto Gutenberg (4); uma apreciação simples mas direta dos problemas envolvidos é feita por Zboyovski (5). Não é à toa que um jovem estudante, que cresceu em contato com computadores e a rede, sinta a urgência do problema.

Usuários freqüentes da Internet conhecem vários índices e mecanismos de busca que tentam dar alguma organização a uma enorme teia. No meio acadêmico esse problema afeta um insumo básico, que de repente passa a ser obtido de maneira nova. A nova biblioteca deverá necessariamente ter informação eletrônica e disponibilidade pela rede como premissas básicas da sua estrutura.

Notas

(1)http://www.rdt.monash.edu.au/tr/siteslist.html

(2)http://euclid.math.fsu.edu/Science/Preprints.html

(3)http://preprints.cern.ch/

(4)http://www.promo.net/pg/

(5)http://www.students.wfu.edu/zboyjm00/Digital.html

ARNALDO MANDEL é professor do IME-USP.

e-mail: am@ime.usp.br