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MAC 324: Mundo Digital (Artigo da Revista Exame)

Este artigo saiu na Revista Exame, edição 639, de 2 de julho de 1997. O artigo é reproduzido aqui estritamente para o uso dos alunos da disciplina MAC 324 do IME-USP.


Mundo Digital

Software
Barato não. É gratis mesmo

Alguns dos melhores programas de computador 
do mundo não custam nada e começam a ser cada 
vez mais usados em empresas

Por Helio Gurovitz

	De graça, até injeção na testa e ônibus errado. Por que não software?

	Considere o caso do Apache, o servidor de Web mais usado no planeta,
que hoje envia para os navegadores as páginas de 44% dos sites da
Internet. O Apache foi desenvolvido em cima de programas do Centro
Nacional para Aplicações em Supercomputadores (NCSA) da Universidade de
Illinois, em Urbana-Champaign, o antigo lar de Marc Andreesen. Quando
An-dreesen saiu de lá para fundar a Netcaspe, levou junto o autor do
servidor do NCSA. O programa ficou abandonado. Um grupo internacional de
especialistas, que ficou conhecido como grupo Apache, começou a elaborar
remendos (patches) e consertar problemas do software. Em 1995, tudo foi
posto de graça na Internet. Nascia o servidor Apache (trocadilho em
inglês com “a patchy server”, ou “servidor remendado”).

	Apesar do nome despretensioso, a qualidade do software é indiscutível.
O Apache foi escolhido pela IBM para transmitir on-line as partidas de
xadrez entre Garry Kasparov e o computador Deep Blue. É usado por
empresas como Digital, UUNet, Reebok, CBS e Yahoo! (um dos mais
populares sites de busca da Internet). Somados, servidores gratuitos
como o Apache e o NCSA original dominam mais da metade dos sites da Web.
No Brasil, chegam a estar em 62% deles, segundo os dados mais recentes
da pesquisa periódica realizada pela em-presa britânica Netcraft.
Programas equivalentes da Microsoft têm apenas 16% do mercado global. Os
da Netscape, 12%. Qual o segredo do triunfo do Apache sobre essas
corporações?

	Por incrível que pareça, não é apenas o fato de esse tipo de software
estar disponível de graça na Internet (eles podem também ser comprados
em CDs ou disquetes, a preços bem in-feriores aos dos softwares
convencionais). A diferença crucial é que eles vêm acompanhados do
código original, ou código-fonte. Fonte é o programa que pode ser
entendido e modificado por seres humanos. Para funcionar, o fonte
precisa ser traduzido para a linguagem da máquina. Programas costumam
ser vendidos apenas na versão que a máquina entende. Ou seja: podem
funcionar, mas não podem ser modificados em sua essência. O Apache, não.
Por vir com o fonte, é muito mais maleável.

	“Sentimo-nos absolutamente seguros com o software pelo domínio que
temos dos fon-tes”, diz Marcelo Lacerda, diretor da Nutec, empresa que
provê acesso à Internet a 46 000 as-sinantes em 33 cidades do Brasil e
implanta intranets. A Nutec comprou o código-fonte do servidor NCSA por
10 000 dólares ainda em 1994, antes que ele fosse transformado em Apache
e posto de graça na rede para uso comercial. Incorporou alterações ao
programa e hoje usa um Apache sabor Nutec. Apenas em duas das 33 cidades
a Nutec não usa esse servidor. “Temos clientes corporativos rodando
programas que executam tarefas críticas com ele”, afir-ma Lacerda.

	O Apache é um representante típico da nova geração de programas que
atingiram a maioridade com a Internet e começam aos poucos a invadir o
mundo corporativo. São os cha-mados softwares livres. Além de gratuitos,
eles são distribuídos com duas vantagens sobre os softwares
convencionais: 1) todos os códigos-fontes; e 2) uma licença autorizando
que o pro-grama seja copiado livremente, e os fontes, alterados e
redistribuídos à vontade.

	Sim. É isso mesmo. Nenhuma preocupação com piratas ou propriedade
intelectual. A idéia, à primeira vista insana, de abrir mão da cobrança
de direitos autorais pelo software foi lançada em 1985 por Richard
Stallman, uma espécie de ciberguru e pai de todos os hackers. Nos anos
70, Stallman era um menino prodígio com computadores no laboratório de
inteligên-cia artificial do Massachusetts Institute of Technology (MIT).
Depois ganhou a bolsa concedi-da a gênios pela Fundação McArthur e, na
década de 80, criou a Free Software Foundation.

	Mas como as empresas sobreviveriam fazendo software livre? Segundo
Stallman, ven-dendo tudo o que não é software: manutenção, suporte,
livros, manuais ou CDs com as distribuições. Surgiram nos Estados Unidos
algumas empresas especializadas em desenvolver e dar suporte a software
livre. A Cygnus, da Califórnia, costuma ser citada como exemplo
clássico. Fundada em 1989, ela cresce 65% ao ano há cinco anos e tem
sido lucrativa todo ano. Tem escritórios no Japão e na Europa e clientes
como Toshiba, Hitachi, Cisco, Sega e Ericsson. Em 1993, foi escolhida
pela revista Fortune como uma das empresas mais quentes dos Estados
Unidos.

	O que parecia um delírio acadêmico que só poderia ganhar adeptos no
ambiente experimental do Vale do Silício começou a prosperar com a
explosão da Internet. A rede mundial tirou as rédeas do software livre
das mãos de Stallman. Em 1991, o jovem finlandês Linus Torvalds, então
um aluno da Universidade de Helsinque com pouco mais de 20 anos, começou
a enviar para grupos de discussão mensagens sobre um sistema baseado no
Unix, cri-ado pela AT&T, que ele desenvolvia como hobby e distribuía
livremente. O resultado foi, nas palavras do colunista da PC Week Bill
Machrone, um fenômeno inédito na história da compu-tação. Com o auxílio
de colaboradores espalhados pelo mundo, surgiu  um sólido sistema para
PCs: o Linux.

	Para desespero do guru Stallman, o que deu impulso ao Linux não foram
ideais de li-berdade, mas fatores puramente econômicos. O sistema
começou ser aprimorado por centenas de programadores se comunicando via
Internet. Como o código-fonte era conhecido, as versões ficavam cada vez
mais estáveis e confiáveis. O erro que um não via, outro podia enxergar.
E ninguém perdia tempo trabalhando sobre as mesmas alterações no
software. Quem ganhava com isso era o usuário. Linus Torvalds sempre
centralizava o lançamento de novas versões, para evitar anarquia. 
	
	CRESCIMENTO — Em 1994, foi lançada a primeira versão completa e estável
do Li-nux, pronta para ser ligada à Internet. Torvalds tinha
desenvolvido menos da metade dela. No final daquele ano, o Linux já
tinha 500 000 usuários, a maioria em instituições de pesquisa. No fim de
1995, eram 1,5 milhão. Começou, então, a implementação do Linux em
outros tipos de computador, além do PC. A Apple levou apenas dois meses
para lançar uma versão funcionan-do no PowerMac, uma vez que os
códigos-fontes eram todos abertos. Hoje já há versões que rodam em
estações Digital, Sun e Amiga, todas absolutamente compatíveis entre si.
No início de 1997, o número de máquinas rodando Linux passava de 4
milhões. Se o ritmo de crescimen-to for mantido, em dois anos o Linux
pode ser mais comum que o Macintosh, da Apple. Detalhe: a Apple levou
mais de 10 anos para atingir a base de usuários que o Linux pode
con-quistar em cinco.

	Mas, se ninguém ganhou dinheiro fazendo o Linux — tudo o que Torvalds
recebeu fo-ram algumas doações —, o que toda essa história fantástica
tem a ver com o mundo dos negócios?

	Tudo. Por dois motivos.

	Primeiro, porque os softwares livres estão entre os melhores e mais
confiáveis progra-mas do mundo. Tanto o Apache quanto a versão 2.0 do
Linux foram premiados no ano passado pela revista Byte. A InfoWorld
também escolheu uma versão do Linux como o melhor sistema operacional.
“É um sistema muito, muito bom. Hoje, tem  90% das características das
versões comerciais de Unix. Mas não tenho dúvida de que ele vai ter 100%
no futuro”, diz Jon Hall, pesquisador da Digital e diretor executivo da
Linux International. Devido à qualidade e ao custo praticamente zero,
softwares livres já começaram a ser usados por empresas:

	• O Universo Online, joint venture do grupo Abril com o grupo Folha
para a Internet, usa sistemas diferentes para não ficar preso a um único
fornecedor. Inclusive Linux e Apache. “Usamos o Linux numa aplicação que
não existe no sistema da Sun”, diz Daniel Amaral, diretor de tecnologia
do UOL. 

	• O provedor de acesso à Internet Esquadro, do Rio de Janeiro, com 450
usuários, tem todos os seus sistemas funcionando à base de software
livre. Os investimentos em hardware e linhas de comunicação foram de 35
000 dólares. Se a empresa fosse pagar pelo software, gas-taria mais 12
000.

	• A tecelagem Filobel, de Santa Catarina, optou por softwares livres
para integrar seus bancos de dados com a Internet.

	• A fábrica de plásticos Akros, também de Santa Catarina, optou pelo
Linux para montar sua intranet. “Eles foram atraídos pelo preço, mas
acabaram impressionados com a qualidade”, afirma José Carlos Benfati,
sócio da ZZP Serviços de Informática, empresa funda-da há três meses
para dar suporte a softwares livres.

	• A filial do banco de investimentos Merryll Lynch em São Paulo ficou
cerca de 15 dias atrás de um software comercial que oferecesse aos
usuários de Windows a possibilidade de acessar sistemas que rodavam em
Unix. A opção final foi o Samba, um software livre.

	• O correio dos Estados Unidos escolheu o Linux para elaborar um
sistema de reco-nhecimento de caracteres que roda em 4 000 máquinas. “Se
eles tivessem de gastar 500 dólares de software em cada máquina, só as
licenças sairiam 2 milhões”, diz Jon Hall.

	Mas isso não é tudo.

	O segundo motivo pelo qual o software livre interessa ao mundo dos
negócios é o mer-cado criado em torno do Linux. O software é distribuído
de graça na Internet, mas há empresas que se especializaram em vender
versões mais envenenadas, com discos, manuais e programas extras. Um
exemplo é a Caldera, empresa fundada em Utah por Ray Noorda,
ex-presidente da Novell. Além de oferecer implementação e suporte ao
Linux, a empresa vende aplicativos como editor de texto, planilha e um
programa com o qual o Linux pode executar softwares feitos para Windows.
Outro exemplo é a Red Hat, que desenvolveu o melhor sistema de
instalação para Linux. “Com o Red Hat, é mais fácil instalar Linux que
Windows 95”, diz Fre-derico Neves, da consultoria Excon, de São Paulo.
	
	MANUTENÇÃO — Mas ainda há um porém: não existe um sistema disseminado
de suporte a software livre. Só agora começam a surgir no Brasil
empresas do ramo. “Se o computador fica parado, ninguém se compromete a
colocá-lo em funcionamento”, diz Luís Ba-nhara, gerente de marketing da
Microsoft do Brasil. Se os softwares livres fossem carros, fal-tariam
mecânicos no mercado para dar conta de toda a manutenção. Com
atenuantes. A principal é a própria Internet: encontrado qualquer
problema num software popular como Li-nux ou Apache, correções costumam
ser colocadas na rede em questão de horas. Respostas para problemas
simples podem ser obtidas em minutos nos grupos de discussão. “É
reconfor-tante saber que, se você tem um problema, haverá milhares de
pessoas com o mesmo problema e alguém pode resolvê-lo para você”, diz
Rasmus Lerdorf, do grupo Apache. Mesmo assim, é preciso ter dentro da
empresa alguém capaz de fazer as correções e manter os computadores
funcionando.

	A mera existência do Apache levou Bill Gates a distribuir de graça seu
servidor de Web junto com o sistema Windows NT. Mas vários softwares
livres estão sendo lançados para NT, como o próprio Apache. A abundância
de softwares livres ou apenas de programas gratuitos parece ser sintoma
de uma nova transformação que a indústria de informática deve
atravessar. No início, as máquinas eram caras, e a IBM fez fortuna.
Depois, o computador tornou-se uma commodity, e o software passou a ser
o produto de maior valor agregado. Foi a vez de Bill Gates ganhar muito
dinheiro. O que parece estar acontecendo é o barateamento cada vez maior
dos programas. Os produtos mais valorizados passarão a ser os serviços.

	Será que isso é uma ameaça concreta ao império de Bill Gates?

	A resposta, por enquanto, é um não enfático. “Aprendemos muito quando
tivemos que correr atrás da Netscape na Internet”, diz Banhara, da
Microsoft. Mas a existência do Linux pode vir a alterar a estratégia da
empresa de Redmond. Segundo a Red Hat,   56% dos com-pradores da sua
distribuição de Linux nunca haviam usado Unix antes. É esse o mercado
que a Microsoft está disputando com seu sistema Windows NT. Até o
momento, com bastante sucesso. Embora o Unix ainda domine mais de 75% do
mercado, as vendas de NT cresceram 242% em um ano, segundo a Dataquest.
“A próxima versão do NT será muito mais adaptada aos usuários de Unix”,
diz Banhara.

	A Microsoft já provou que não descarta distribuir software de graça
quando se trata de conquistar mercado, mas ainda coloca fora de questão
liberar os códigos-fontes de seus programas. Isso equivaleria, grosso
modo, à abertura dos portos. A empresa perderia o quase monopólio que
detém sobre os softwares que comandam os PCs. Mas veja o que diz Jon
Hall: “Se a Microsoft liberasse o código do NT, a demanda pelo Linux
desapareceria. Aí poderia surgir um Linus Torvalds do NT”.

	Torvalds, por sinal, mudou-se no início do ano da Finlândia para o Vale
do Silício, onde trabalha num misterioso projeto numa empresa chamada
Transmeta. Um nome a guardar.


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e-mail: Imre Simon <is@ime.usp.br>

Last modified: Sun Mar 22 20:14:59 EST 1998