O ombro amigo do Tio Flávio acabou!

Certo dia, discutindo com meu filho, afilhado do Mestre, eu disse a ele, "André, você é um cara de sorte por ter meu ombro para chorar". Perguntei então, "se tivesse eu que chorar, o ombro de quem me acolheria?". Rapidamente me respondeu, "o do Tio Flávio, pô!". Meu argumento não colava! Eu tinha mesmo o ombro do meu querido amigo de toda hora. Flávio Wagner Rodrigues, um grande homem, companheiro, amigo e principalmente possuidor do ombro mais amigo, faleceu no dia 30 de julho em uma UTI do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, no Paraíso, em São Paulo. Tenho certeza que a passagem pelo Paraíso paulista foi a porta para o paraíso de verdade. Acho que se a pergunta fosse feita hoje, meu filho teria que pensar muito antes de responder.

Tive o privilégio de estar com o Mestre no domingo, dia 25 e seu humor estava ótimo. Em um quarto do hospital assistimos a parte do jogo Brasil x Argentina. Fui para casa assim que terminou o primeiro tempo com o empate de 1 a 1. Devia ter ficado até o final para ver sua alegria com a vitória "suada" do Brasil. Tinha-lhe presenteado o livro "O Gene da Matemática" que pensei retratar suas habilidades profissionais. Tenho certeza que ele teve esse gene ativado durante toda a vida.

Naquele domingo, Flávio parecia ter se recuperado, mais uma vez, das agressões que vinha sofrendo nos últimos 12 anos. Aquele quadro era muito melhor do que o dos anos de suas cirurgias. Vencia com muita bravura os tempos duros do pré e do pós-operatório. Importante dizer que a sua lucidez parecia ainda melhor a cada agressão sofrida. Por exemplo, meu colega e amigo Julio Stern pediu minha opinião sobre como orientar seu filho no caminho da Matemática. Disse a ele que a melhor coisa era colocar o Rafael na mão do grande professor. Flávio e Rafael se tornaram parceiros, Mestre/Aluno, a ponto de Rafael ser hoje viciado em probabilidade e combinatória. Hoje faz iniciação científica com uma colega probabilista. Ainda sobre sua lucidez e rapidez de raciocínio, lembro que no mês passado tive um problema que não sabia resolver e lhe telefonei. Minutos depois de desligar, telefonou perguntando se eu não lembrava do problema da distribuição de bolinhas em urnas do livro do Feller. Respondeu então a todas as minhas perguntas. É bom colocar as questões aqui para o leitor se divertir um pouco. Meu problema era saber o número de pontos amostrais possíveis em uma tabela de contingência 2 por 2. Inicialmente, com apenas o total fixo, depois, com uma marginal fixa e, finalmente, com as duas marginais fixas. É claro que podemos obter a resposta depois de algum trabalho, mas em poucos minutos eu duvido.

Para ilustrar o relacionamento alegre que sempre permeou nossa amizade, gostaria de relatar alguns fatos de nosso longo convívio. No dia de meu último contacto com o saudoso amigo, o enfermeiro entrou e disse que eu era muito parecido com meu pai, no caso, o Flávio. O Mestre riu muito lembrando que, tempos atrás, me havia dito que eu subornava o vigia de sua rua, pois toda vez que passava por sua casa e ele não estava, o vigia dizia-lhe que seu filho mais velho tinha passado para visitá-lo. Sou apenas 10 anos mais jovem que ele.

Somos uma legião de admiradores do Mestre. Sérgio, Wagner, Galvão e eu certamente tomávamos sua bênção periodicamente. Outros como Adilson e Cláudia o faziam de forma menos constante, mas também pediam sua bênção. Tínhamos o costume de nos reunir uma vez por mês, pelo menos, para almoçar no meio da semana. Era na verdade um Clube do Bolinha formado apenas por estatísticos do IME (o Duda não é estatístico, mas já trabalhou no Departamento e nos presta uma ajuda inestimável). Certa vez, quando começou o cerco aos fumantes, um repórter entrou por acaso em nosso restaurante preferido, o Rubaiat da Vieira de Carvalho, no centro de Sampa, e entrevistou o Mestre, um fumante incorrigível. No dia seguinte estávamos em jornais e telejornais que estampavam os malandros da USP, incluindo o Galvão (pasmem!), em plena quarta-feira às 14 horas a tomar algumas caipirinhas e outros aperitivos. Nosso clube funcionou a todo vapor antes da primeira cirurgia do nosso mestre.

Certa vez, com os resultados do trabalho de doutorado do Galvão, o problema do número de semanas necessárias para esgotar todas as dezenas do jogo da sena foi resolvido. O Mestre se divertiu e mostrou uma solução muito mais elegante usando sua habilidade combinatória. Mais do que depressa, com meu espírito visionário, escrevi um artigo com as duas soluções, e o submeti em nome dos três ao "Communications". Ele riu muito, pois achava que jamais alguém publicaria uma "besteira" como aquela. O artigo foi publicado e aí ele riu de novo dizendo que a Academia já não era a mesma. Minha grande vitória foi quando nosso artigo foi escolhido para fazer parte do conjunto de abstracts do final de ano do ISI. Ele na verdade nunca se interessou por ter artigos publicados. O que gostava mesmo era de resolver problemas que para nós pareciam insolúveis. Um dos artigos em que o Sérgio foi seu co-autor, submetido novamente nas mesmas circunstâncias (escondido do Mestre), foi publicado no IEEE. Para nós, seus asseclas, não existe, no Brasil, alguém com tanta cultura, seja geral ou na área de teoria das probabilidades. Achar um intelectual em nossa comunidade não é fácil. Se o leitor desejar ver uma contribuição importante de nosso Mestre, veja a Revista do Professor de Matemática desde seu início. E não foi por acaso que traduziu o livro do Feller!

Tínhamos outro Clube do Bolinha que se reunia periodicamente para um almoço, também no meio da semana, de preferência. Era um almoço que durava umas 4 ou 5 horas e certamente não havia como realizar algum trabalho formal nesses dias. Esse era formado por mais amigos ainda. O Mestre, John, Bolívar, Reinaldo, Teófilo eram os mais coroas; depois vinha eu ali na média e depois Sérgio e Duda. Estou sendo injusto com o mestre quanto à idade. John é o extremo superior e o Duda o inferior. Duda, nas palavras do mestre, e como todos vocês sabem, é o único trabalhador de verdade do nosso grupo e certamente o menos Petista de todos nós. Posso dizer, sem titubear, que das coisas que fiz na vida, nossos encontros devem ter sido as mais importantes.

Tenho pena de quem não teve o privilégio de conviver com uma pessoa como nosso Mestre. Flávio era um sentimental! Muitas vezes, ao contar um fato ou falar de uma letra do Cartola, seus olhos se enchiam de lágrimas. Ele convivia com meus problemas com a mesma ou maior profundidade do que eu mesmo. Creio que, tanto o vigia como o enfermeiro, acertaram em cheio quando disseram que ele era meu pai. Dos dois pais que tive, guardo lembranças incríveis. Aproveitei do convívio com os dois pais, Basílio (o biológico) e Flávio (o mestre), tudo que um filho consegue. Sei que de agora em diante vou ter que conseguir a coragem do Mestre para poder enfrentar a vida sem aquele ombro amigo do Tio Flávio. Ultimamente, para matar a saudade do meu Rio antigo, tenho escutado Teresa Cristina cantando Paulinho da Viola. Parte de uma das letras (a adaptação abaixo é minha) me traz o meu compadre na lembrança.

Eu sou assim, quem quiser gostar de mim eu sou assim. Eu sou assim e assim morrerei um dia. Não levarei arrependimento nem o peso da hipocrisia. Tenho pena daqueles que se enganam a si mesmos por dinheiro ou posição. Nunca tomei parte nesse enorme batalhão. Pois, sei que além de flores nada mais vai no caixão.

 

Currículo de Flávio Wagner Rodrigues

Falecido em 30 de julho de 2004 aos 68 anos

Formação e títulos acadêmicos:

1981 – Livre Docência – Departamento de Estatística do IME-USP.

1972 – PhD em Estatística – University of North Carolina, Chapel Hill, USA

1970 – MSc. em Estatística – University of North Carolina, Chapel Hill, USA

1961 – Bacharel e Licenciado em Matemática – FFLCH – USP.

Atividades Docentes:

1973-94 – Professor de Estatística – IME/USP.

1975-04 – Professor Aposentado – IME/USP

1976-77 – Professor Titular do IMCC/UNICAMP

1964-65 – Professor de Cálculo Infinitesimal – FEI e PUC SP

1964 – Professor de Análise Matemática – FFLCH/USP

1962-73 – Professor de Bioestatística – Faculdade de Saúde Pública – USP

1962-64 – Professor de Matemática – Colégio Anglo Latino

1961 – Professor de Matemática – Colégio Bandeirantes

1960-62 – Professor de Física – Escola Técnica Oswaldo Cruz

Orientou oito teses de mestrado e participou de inúmeras bancas examinadoras de mestrado, doutorado e livre-docência

Bolsas de Estudo:

1968-72 – CNPq para doutoramento nos USA.

1967-68 – Organização Pan-americana de Saúde para mestrado nos USA

Comissões e Grupos de Trabalho:

1978-79 – Membro do GT para os objetivos da Divisão de Bibliotecas da USP

– Membro do GT de planejamento e implantação do SIBI/USP.

1977 – Coordenador do GT de Ciências Matemáticas da Ac. de Ciências de SP

1973, 75, 77 – Membro do GT para Avaliação de Programas de Pesquisa e Pós-Grad do FNDCT, na área de Matemática

Atividades Gerais:

1998-04 – Editor Associado da Revista do Professor de Matemática

1989-93 – Diretor Executivo da FUVEST.

1987-04 – Editor da Seção de Problemas da Revista do Professor de Matemática.

1975-77 – Secretário Geral da Sociedade Brasileira de Matemática

1975 – Coordenador do 10º Colóquio Brasileiro de Matemática

1973 – Assessor do PREMEN – U Federal do Ceará – Publicação de textos de Estatística para estudantes secundários

Publicações Principais:

RODRIGUES, F.W. On stochastic relationships and a concept of "in probability" [Tese de MSc, University of North Carolina, Chapel Hill, 1970].

RODRIGUES, F.W. & SIMONS, G. Foundations of probability, by A. Renyi: book review.

Annals of Probability, 1971

RODRIGUES, F.W. Some structural relationships between weak convergence of probability measures and convergence in probability. Chapel Hill, University of North Carolina, 1972. (Mimeo Series, 812) [Tese de PhD]

RODRIGUES, F.W. Tópicos da teoria das probabilidades. Rio de Janeiro, CNPq, 1973, 9º

Colóquio Brasileiro de Matemática.

DIAMENT, A. & RODRIGUES, F.W. Cephalic mesasures in normal pre-school children 3 to 7 years of age. Arquivos de Neuro-Psiquiatria. 34(4):325-330, 1976

DANTAS, C.A.B. & RODRIGUES, F.W. Tópicos de processos estocásticos. Rio de Janeiro, CNPq, 1977 ( 11º Colóquio Brasileiro de Matemática)

RODRIGUES, F.W. Sobre um problema de inversão em Cadeias de Markov redutíveis.

(Simpósio Nacional de Probabilidade e Estatística, 3º, 1978: Atas)

DANTAS, C.A.B. & RODRIGUES, F.W. Introdução à Estatística. São Paulo, Academia de Ciências do Estado de São Paulo, 1979

BORGES, W.S. & RODRIGUES, F.W. On the axiomatic theory of multistate coherent structures. Mathematics of Operations Research, 8(3):435-39, 1983.

RODRIGUES, F.W. Bolas, Urnas e as Loterias de Números. Matemática Universitária, 8: 103-6, 1988

LEITE, J.G.; PEREIRA, C.A.B.; RODRIGUES, F.W. Waiting time to exhaust lottery

numbers. Communications in Statístics, 22: 301-10, 1993

RODRIGUES, F.W. & WESCHLER, S. A discret Bayesian explanation of an apparent

failure rate paradox. IEEE Transactions on reliability, 42:132-3, 1993

Publicações de divulgação:

A Estatística e as pesquisas eleitorais. RPM, 40: 23-30, 1999

E lá vamos nós de novo. RPM, 35: 26-7, 1997

O binômio de Newton e a venus de Milo. RPM, 30: 34-5, 1996

A prova dos noves: como e por que funciona (ao menos quase sempre).

RPM, 14:17-20, 1989

As "cadeias" do professor Bloch. RPM, 10:21-2, 1987

O jogo do pôquer e o cálculo de probabilidades. RPM, 6: 27-31, 1985

As coisas que ensinamos: eventos independentes. RPM, 1-4:21-24, 1982-1984.

Traduziu o primeiro volume do Livro do Feller e o livro do Noether.