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aflições noturnas - JUR



Caros redistas:

A idade vai aumentando e a angustia vem junto com as barreiras que vão se criando em torno de nossas necessidades.
Muitos nos acariciam com frases como ?velhos, mas sábios?.

O fato é que a gente vai envelhecendo e cada vez mais tem satisfação quando alguém pede esclarecimentos. Creio que nosso sentimento de utilidade só aparece nesses momentos.
Antes podíamos sem esforço ajudar na solução de problemas pesados.   
Agora evitamos chegar perto desses problemas de pessoas necessitadas.   
Não por egoísmo, mas por estar impossibilitado em ajudar.
Pensava eu que eram estes problemas apenas meus.  Vejo agora que  
nossos mestres literatos também estão chegando ao fim.
Outro dia li de algum de nossos ídolos que existem várias alternativas  
para a morte e a pior delas era continuar a viver.
Mas eis o que eu queria trazer para nossa rede mais por humor e menos  
por lamento.  João Ubaldo semanalmente vem escrevendo sobre o fato de  
já estar velhinho.  Sua mensagem de hoje é ótima e convido a todos  
para apreciarem seu texto e evidentemente sua coluna com textos  
anteriores.
Grande semana
Carlinhos

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,aflicoes-noturnas-,961753,0.htm
Aflições noturnas

18 de novembro de 2012 | 2h 10

JOÃO UBALDO RIBEIRO - O Estado de S.Paulo

Vocês também devem ter lido a respeito da utilização de celulares como forma de pagamento ou transferência de dinheiro. Já está chegando, ou vai chegar em breve. Quando eu era menino e lia tudo o que podia, achei lá em casa um livro velho, com ilustrações sombrias, sobre os males da fraqueza nervosa, que eu não sabia o que era, mas de boa coisa não se tratava, a julgar pela cara franzida e meio tresvariada estampada na capa. Impressionava também a visão de um velhote, sentado de pijama na beira da cama com o cabelo desgrenhado, aparentemente desperto de um pesadelo. A legenda explicava que, depois de uma certa idade, muitos indivíduos (e indivíduas, segundo a gramática da República) padecem de aflições noturnas, ansiedades, dispneias, disúrias, discinesias, dispepsias e inúmeras outras condições molestosas, que não raro induzem a fundos estados melancólicos e, por vezes, até mesmo ao passamento prematuro - os textos de antigamente eram caprichados.
Faz pouco tempo, eu não tinha queixa, mas acho que estão começando a  
pintar umas aflições noturnas, há indícios de que a fraqueza nervosa  
já se encontra em processo de instalação. Foi essa notícia do celular  
que me chamou a atenção para o problema. Não o celular em si. Não  
tenho celular e já me costumei a ser a atração turística da mesa e  
objeto de comentários sociofilosóficos. Não só não tenho, como não  
quero ter. Não por nada, somente porque é mais uma geringonça de que  
na verdade nunca precisei e da qual passarei a depender perdidamente,  
depois de alguns dias. Uma repórter encarregada de fazer entrevistas  
sobre comunicações resolveu me ouvir e, quando eu lhe disse que não  
tinha celular, recusou-se a acreditar. Durante alguns segundos, acho  
que ela ficou pensando que, na Bahia, celular tinha outro nome, o  
único que eu conhecia, só podia ser. E desligou meio desconfiada, sem  
se conformar.
O que me afetou foi o que li a respeito dos celulares e pagamentos, ou  
melhor, do que o futuro nos reserva, a nós, terceiridadistas  
(resignemo-nos a "terceira idade", pois que não há mais jeito, e  
recebamos com um sorriso dúbio "atroz idade" e "indigna idade", mas  
reajamos a bengaladas contra "melhor idade" e "feliz idade"). Na  
matéria que vi, várias especialistas se manifestavam sobre a novidade.  
Operação facílima para pagar qualquer conta, transferir qualquer  
quantia. Teclam-se alguns botões no celular e a transação está feita.  
A inovação é bem recebida por todos, de consumidores a comerciantes.  
Mas, como sempre, há aspectos não tão alvissareiros. As autoridades do  
setor manifestaram alguma reserva quanto à adoção talvez precipitada  
do mecanismo, pois sua segurança requeria certas cautelas e  
habilidades. Em mãos vulneráveis, podia facilmente ser explorado por  
hackers criminosos e outros espertalhões. "Nossa preocupação  
principal", disse lá o entendido, "são os idosos e as pessoas de baixa  
instrução. Esses provavelmente precisarão de cuidados especiais ou  
atendimento diferenciado".
Pronto, meu caro coevo, minha distinta coetânea. Estamos ingressando  
em nova categoria estatística e administrativa, talvez ainda não  
batizada, embora logo deva aparecer o eufemismo oficial adequado.  
Deficientes cognitivos diversos? Geroanalfabetos? Excluídos por  
critérios etarioeducacionais? Não sei, mas, com a falta do que fazer  
que parece grassar em alguns dos incontáveis órgãos que cada vez mais  
nos dizem como devemos nos comportar, não somente em público como em  
casa, em que devemos acreditar, do que devemos gostar, como devemos  
falar e até como devemos entender o que lemos, acho que precisamos  
estar preparados para receber mais proteção por parte do Estado.  
Talvez, se o idoso e o analfabeto quiserem usar o celular para  
transações financeiras, precisem, para seu próprio bem, tomar um curso  
especial para a categoria e, depois disso, mediante requerimento ao  
Ministério da Fazenda, obter a Carteira Nacional de Movimentação  
Financeira para Idosos e Analfabetos, que os habilitará à realização  
de pagamentos simples.
Tudo razão para aflições noturnas. Agora compreendo aquele livro  
profético e até gostaria de tê-lo aqui, para uma consulta. Ainda não  
me levantei sobressaltado no meio da noite, mas não é preciso, é fácil  
fazer previsões assombradas sobre o que está por vir. Os idosos, como  
adverte todo dia algum comentarista de entonações sinistras, cada vez  
aumentam em número e já começam a causar uma série de problemas.  
Deixá-los trabalhar mais tempo antes da aposentadoria não resolve,  
porque atravanca o mercado de trabalho para os jovens. Sustentá-los é  
uma carga cada vez maior para a previdência social. O sistema de saúde  
também sofre, sobrecarregado por uma demanda que não para de crescer.  
Não é impossível que se conclua que representam um custo impossível de  
pagar e o correto é morrerem pela pátria, como está nos hinos.
Além disso, surgem boatos alarmistas inquietantes. Zecamunista, ele  
mesmo também da confraria idosa, andou denunciando uma conspiração  
multinacional para matar a velharia, através de estratagemas  
diabólicos, como epidemias artificiais. E, o que é pior, tudo para  
abastecer de matéria-prima o mercado de comida de cachorro dos Estados  
Unidos, da Europa e do próprio Brasil. Não botei fé, embora tenha  
ficado meio cabreiro, pois nunca se sabe de nada, neste mundo de hoje.  
Mas ele acabou me tranquilizando.
- Esqueça aquilo que eu falei - disse ele. - Não vão mais armar o  
esquema da comida de cachorro.
- Ah, eu sabia que era invenção, não iam fazer isso com os velhos.

- Não é por causa dos velhos - disse ele. - É por causa dos cachorros. As sociedades protetoras de animais declararam que essa comida ia fazer mal aos cachorros e ameaçaram boicote.
Mas aguardemos os acontecimentos.

 <cpereira@ime.usp.br>