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Filosofia Africana - deu na folha



O Arcebispo Desmond Mpilo Tutu em uma das suas brilhantes entrevistas nos disse que a Africa não irá mudar enquanto os africanos não pararem de culpar àqueles espíritos ruins e os olhos grandes por todas as infelicidades pessoais. Isto é, tudo de ruim que acontece na vida de cada um a culpa é sempre dos entes invisíveis que dominam suas mentes.
A folha de hoje apresenta um daqueles nossos alunos que passam pelas  
nossas escolas fazendo aquilo que abominamos.  O pior,  virou um herói  
em uma imprensa como a nossa.  Novamente a culpa dos males do cara é a  
nossa escola e não o fato de o malandro não estudar e não fazer o que  
deve para poder se preparar para lutar por uma vida melhor.
Somos como os africanos e culpamos nossos males à sociedade ou às  
nossas instituições: nunca aos nosso erros e equívocos.  O jornalista  
que publicou tal matéria deve ter passado por sua escola da mesma  
forma: com colas e malandragens.
Saudações
Carlinhos
Jotagá Crema

Como desisti da Escola Politécnica

------------------- Texto gancho -----------------------
Na Poli, as várias técnicas de cola eram uma instituição, trapacear era natural; os alunos acabavam a prova e as fórmulas, de origem misteriosa, já eram esquecidas
-----------------Fim do texto gancho ------------

Em 2002, comecei a cursar engenharia na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. Tinha passado os últimos dois anos do colegial obcecado por notas e vestibular.
O colégio onde fiz o ensino médio, o Agostiniano Mendel, estimulava os  
alunos a estudarem para as provas através de rankings de  
classificação, que serviam para definir em qual sala cada um ficaria.
Entrei completamente no jogo. Raramente conversava com amigos fora do  
colégio, saía pouco, dificilmente pesquisava assuntos não relacionados  
ao vestibular -sentia culpa por estar perdendo um tempo precioso. Fiz  
uma lista de livros e filmes que poderia ler e assistir quando  
finalmente passasse no vestibular.
Não sabia qual curso escolher. Meu melhor amigo tinha um primo  
engenheiro com um belo emprego corporativo. Como eu era bom em exatas,  
por que não garantiria uma carreira promissora?
Apaixonei-me pelo campus da USP. Fui a festas. Tive alguns amores  
uspianos. Até remo pratiquei.
Na Poli, as semanas de prova guiavam as vidas dos alunos. Todos  
entravam no ciclo básico e, de acordo com a sua classificação,  
escolhiam as especialidades. Ou seja, a competitividade do colegial  
seguia. Eu nunca tinha tirado uma nota vermelha na vida até a primeira  
prova de álgebra linear. Percebi que jamais seria um dos primeiros do  
ranking e me sentia cada vez mais desmotivado.
As coletâneas de provas de anos anteriores, vendidas no xerox do  
grêmio, eram muito disseminadas. Estudávamos através delas, muitas  
vezes sem saber de onde surgiam fórmulas e técnicas. O objetivo era  
passar nas provas, não aprender. Era tão grande a pressão por notas, e  
as disciplinas tão desconexas, que trapacear era algo natural.
Colas: escritas sutilmente nas antigas carteiras de madeira, com uma  
leve passada de borracha para disfarçar. Em papeizinhos escondidos no  
estojo, na caneta, no bolso. Escritas no braço ou nas sofisticadas  
calculadoras HP, nas quais armazenávamos páginas de fórmulas. Papéis  
que passavam de um estudante para o outro. E o bom e velho cochichar.
Tínhamos uma ética própria na arte da cola: jamais dedávamos alguém em  
nossa tática de guerrilha contra um sistema de avaliação maluco. E  
bastava terminar a prova para que todas aquelas fórmulas e técnicas  
vazias abandonassem a mente.
Em 2005, estava no quarto ano, em engenharia mecatrônica. Estagiava há  
dois meses em um banco. Ia para a Poli de tarde com uma roupa social  
que me dava um ar sério.
Ao dar uma aula-trote na semana de recepção dos calouros, percebi o  
quanto tinha me afastado do amor que eu tinha pela ciência e como o  
meu conhecimento era superficial -fiquei em silêncio e, estarrecido,  
abandonei a sala.
O tédio imperava no estágio. Fazia com indiferença os cursos do banco:  
trabalho em equipe, influência, negociação... No computador de  
trabalho, escrevia textos de ficção. Na Poli, fazia as provas e tirava  
as notas suficientes de sempre.
Até que, um dia, fui pego colando em uma prova de eletrônica digital.  
"É, João. A vida não é fácil", disse o professor. "Mas não é  
impossível", pensei. Fiquei profundamente feliz por ser pego, tive  
certeza de que ali não era meu lugar.
Abandonar a Poli foi difícil. Outro aluno também foi pego passando a  
resolução de um exercício. O professor decidiu nos vincular: um só  
passaria se o outro também passasse. Mesmo tendo desistido, fiz as  
aulas e as provas. Fui aprovado com 5,0.
Saí com a consciência tranquila e passei em último lugar no curso de  
audiovisual da USP. Estou formado há um ano e creio que, apesar do  
difícil mercado de trabalho, estou na área certa. Sinto maior  
liberdade para pensar e me expressar. Uma escolha errada não precisa  
acabar com uma vida inteira.
Preparo-me para fazer mestrado. Quero ser professor. E tenho certeza  
de uma coisa: se um dia tiver de aplicar provas, elas terão consulta.
JOÃO HENRIQUE AURICHIO CREMA, o Jotagá Crema, 28, é formado em  
audiovisual pela USP. É um dos diretores da série "Três por Cento"  
(facebook.com/3porcento)









Carlos Alberto de Braganca Pereira <cpereira@ime.usp.br>