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Uma lição para a vida



Caros Redistas:

Todos os dias, no meu café da manhã, tenho de ler o caderno 2 do estadão. Coincidências ocorrem com os textos que leio e o meu dia a dia, passado e presente.
Na segunda feira, Lúcia Guimarães tenta explicar as razões de sua  
queda na caminhada em NY.  Eu acho que é o sinal dos tempos pois quase  
todos os meses desse ano cai na rua, concentrado em meus pensamentos  
longínquos e saudosos ou tentando resolver problemas sugeridos por  
algum de meus amigos.  Meu último tombo foi feio, quebrei inclusive  
uma costela e até agora a fisioterapia não surtiu efeito.
Ontem o Jabor falou dos tempos dele na UNE, na escapada do incêndio da  
sede e no conflito com seus pais udenistas.  Ah! Que saudade das  
broncas de meus pais!  Justamente a mesma época que vivi na ENCE do  
centro do Rio.
Essa semana falei um pouco de nossas diversões com algo que pensamos  
ser um teste genuinamente Bayesiano.
Eis que surge o Damatta falando da verdadeira criatividade.  Como é  
maravilhosa a leitura de bons pensadores, com idade próxima a nossa.
Vejam lá

http://m.estadao.com.br/noticias/impresso,uma-licao-para-a-vida,810763.htm
Uma lição para a vida

Quarta, 14 de Dezembro de 2011, 03h07

Roberto DaMatta

Na minha primeiríssima e inesquecível - quem não se lembra de toda primeira e última vez? - estada nos Estados Unidos, em 1963, eu - um humilde e inseguro aprendiz de antropologia social numa portentosa Harvard - fiquei tão chocado quanto deslumbrado quando ouvia meninos e meninas com 20 e poucos anos de idade "discordarem" das ideias que saíam como cascata da obra dos grandes gênios das ciências sociais. Especialmente dos seus inventores, aqueles orgulhosos, persistentes, obsessivos e desafiadores Durkheim, Marx, Tocqueville, Frazer, Hocart, Mauss, Tylor, Maine, Weber... que em vez de policiarem e decretarem sobre o mundo, decidiram fazer o mais difícil: compreendê-lo em seus próprios termos. Esse modo mais complexo e profundo de transformá-lo.
Eu ficava apatetado e cheio de culpa quando meus colegas, uns  
merdinhas de olhos azuis claros como a inocência das louras que  
clamavam terem sido estupradas por negros, diziam em alto e bom som:  
"Eu discordo de Mauss!"; "Durkheim estava errado!"; "Preocupa-me a  
posição de Weber!"; "Marx perdeu o bonde!"; e assim por diante.
O modo tranquilo com que meus colegas, debaixo do olhar aprovador dos  
nossos professores, discordavam desses pioneiros me perturbava, pois  
quanto mais originais eram suas teorias, mais eles eram criticados. As  
opiniões não eram meras apreciações formais ou elogiosas de um  
iniciante ajoelhado diante de um mestre, mas uma assertiva sempre  
negativa e ostensivamente contrária ao que era discutido que, sendo  
boa ou profundamente enganada, promovia a discussão das ideias gerais  
contidas no livro em debate. Desse modo, todos (menos eu) faziam  
questão de bater de frente e essa atitude que para mim, surgia como  
hipercrítica, e até mesmo agressiva, passava por um crivo que eu não  
havia aprendido e certamente não existia no Brasil. O filtro de um  
ponto de vista individual e não a perspectiva pessoal que tende a  
atenuar ou arrefecer o debate e a apreciação do outro.
Entendi que estava no universo dos "eus". De fato, o que eu mais ouvia  
era o pronome pessoal "I" (eu). Entendi por que em inglês a primeira  
pessoa do singular, o "eu", é escrito com letra maiúscula...
Nesse contexto, passei por uma experiência decisiva.

Num seminário sobre a história da antropologia, dirigido pela professora Cora Du Bois, uma pioneira, ao lado de Margaret Mead e Ruth Bennedict na prática da antropologia social, uma mulher que havia feito trabalho de campo na Ilha de Alor, na Indonésia, quando nós, no Brasil, achávamos um problema ir a Niterói e impossível conhecer Manaus, eu apresentei um desses autores clássicos. Não me lembro mais quem era, mas não me esqueci da luz que essa experiência lançou na diferença entre o meu modo de aprender e o dos meus colegas harvardianos. Pois quando terminei o meu resumo, recebi da professora uma pergunta surpreendente.
- Sua apresentação está mais do que correta! - disse Cora Du Bois -,  
mas o que eu quero mesmo é saber o que você pensa sobre as teorias que  
acabou de apresentar.
A ênfase no "você" que individualizava e buscava a minha opinião  
íntima - o sentimento de um "eu" que mal sabia era autônomo e tomava  
partido - deixou-me embasbacado. Eu jamais havia pensado em me  
distanciar e me individualizar diante do autor estudado. Pelo  
contrário, eu havia feito exatamente o oposto e me identificava com  
ele preparando-me para defendê-lo a todo custo. Jamais havia passado  
pela minha cabeça que era possível e desejável formar uma opinião  
pessoal sobre ele e, eis o espanto, que essa opinião, mesmo sendo a de  
um jovem iniciante, contava e a experiente e sábia professora fazia  
questão de ouvi-la.
No Brasil eu era bamba em discutir ideias, projetos, leis e sistemas  
políticos sem ser obrigado a tomar posição em relação ao que estava em  
pauta. Aliás, o que eu aprendia era jamais criticar certos autores e,  
pela mesma moeda, elogiar outros. Mas entre o lado direito e o  
esquerdo, o alto e o baixo, o bom e o ruim não havia nenhum espaço  
para dizer o que eu realmente pensava de cada um deles.
Meu aprendizado não era individual. Era pessoal e grupal no sentido de  
que cada grupo ou turma tinha seus padrinhos e heróis, bem como seus  
inimigos e bandidos, como figuras para serem idolatradas e admiradas,  
a ponto de jamais serem apreciadas de modo individualizado. Sabíamos  
definir socialismo e liberalismo, mas não aprendíamos a tomar uma  
posição sobre cada um desses sistemas - e a exprimir o que eles diziam  
para cada um de nós.
Éramos, como ocorre em tantas outras esferas da vida social brasileira  
(e, imagino, latino-americana), contra ou a favor. Não líamos Marx,  
éramos marxistas! Ou reacionários, porque simpatizávamos com Durkheim,  
que jamais falou em luta de classes. Mas, entre um e outro, jamais  
fazíamos como aqueles meninos de Harvard que tomavam um partido  
individual relativamente a cada autor e assim mediam suas aversões e  
simpatias às suas ideias, métodos e teorias. E isso, parece, faz  
diferença. A diferença entre a repetição e o modismo e a verdadeira  
criatividade.

Bom final de ano para todos!

Carlinhos



Carlos Alberto de Braganca Pereira <cpereira@ime.usp.br>