CUIDADO COM OS COMPUTADORES!

(Original de um artigo publicado pela revista Exame em 1996; revisões ortográficas de 31/12/2010)

Valdemar W.Setzer
Departamento de Ciência da Computação, Instituto de Matemática e Estatística, Universidade de São Paulo
http://www.ime.usp.br/~vwsetzer

(O conteúdo deste artigo é um pequeno resumo de uma palestra que o autor dava para empresas, intitulada "A Miséria da Computação")

Computadores são máquinas fascinantes. Mas será que são neutros, isto é, em seu uso normal não influenciam o usuário ou programador? Mostraremos que, como todas as máquinas, eles não são neutros, pelo contrário, são muito perigosos. Só que, contrariamente a uma motocicleta mal dirigida (alguém viu uma bem dirigida hoje?), eles não produzem um desastre físico visível e abominado por todos. De fato, um computador é uma máquina mental, o que chamamos no mundo acadêmico de uma "máquina abstrata". Tanto os dados que são fornecidos a ele, como os programas que processam esses dados, são pensamentos. As instruções de um programa, ao serem executadas pelo computador, na verdade simulam pensamentos, efetuando sobre os dados uma transformação que foi previamente pensada. Mas jamais deveríamos dizer que um computador "pensa", pois essa simulação é de pensamentos extremamente restritos e particulares. São pensamentos de natureza matemática (tanto que se pode fazer modelos matemáticos exatos do computador, dos programas e dos dados, o que não é possível com todas as outras máquinas). Para os programadores, é claro que sua atividade mental é análoga à de quem está provando um teorema ou fazendo manipulações algébricas. Mas isso também ocorre com um usuário qualquer, como por exemplo alguém usando um editor de textos. Ao dar um comando para alinhar verticalmente um texto, o usuário está ativando uma função puramente matemática, e para isso ele tem que usar um raciocínio análogo ao matemático, de causa-e-efeito exato (isso faz do computador uma máquina "determinista"). Como contraste, uma pessoa que usa um torno faz um eixo dentro de certa aproximação, e nunca com um diâmetro exato e uniforme. Além disso, o uso de um torno manual envolve coordenação motora essencial, o que não é o caso com o computador.Esse raciocínio abstrato-matemático é a fonte dos maiores problemas causados pelo computador. Ele é alienado da realidade (daí a "abstração") e extremamente "quadrado". De fato, há relativamente poucos comandos diferentes numa linguagem de programação ou em um software qualquer. Se uma pessoa faz musculação 8 horas por dia, ficará musculosa. E um programador ou usuário usando um computador, pensando bitoladamente durante 8 horas diárias? Lógico que não desenvolverá os músculos da cabeça, mas esse pensamento bitolado imposto pelo computador certamente vai influenciar sua maneira geral de pensar. Além disso, a frustração que ele sente ao não conseguir um resultado esperado (lembremo-nos que tudo é exato) leva-o a esquecer da vida, só sossegando na exaustão, ou se conseguir descobrir o erro de seu programa ou o maldito comando ou parâmetro que estava faltando no uso de um software qualquer. É um desafio puramente intelectual, totalmente diferente do desafio de, por exemplo, uma atividade esportiva de competição, onde não se tem certeza de conseguir acertar. Isso leva ao que se chama a "Síndrome do Processamento de Dados": stress, atitude a- (ou pior, anti-) social (as pessoas não são previsíveis como os computadores...), insônia, falta de apetite, etc. Cremos que haverá também uma tendência a se ter idéias fixas muito estreitas e exatas sobre tudo, já que o computador apresenta um espaço mental extremamente restrito, bem-definido e previsível.Há ainda um efeito pernicioso adicional: o computador induz indisciplina mental. Isso é decorrente do fato de ele não trabalhar com materiais físicos, como um torno ou um liquidificador, isto é, o programador ou usuário não tem restrições físicas em suas ações (que na verdade são pensamentos). Um programa ou texto podem ser projetados ou escritos desorganizadamente, cheios de erros, passando-se posteriormente a uma fase de correção. No caso de um texto, compare-se com a escrita à mão ou, antigamente, à máquina de escrever: nesses casos, como somente pequenas correções poderão ser feitas, é preciso redigir logo de início com uma extrema fluência e correção, para não se ter que jogar fora o resultado, o que exige uma grande disciplina mental. Já no computador é possível não prestar atenção nem à ortografia nem à gramática (verificadores ortográficos e corretores gramaticais ajudarão posteriormente a deixar o texto impecável). Não é necessário caprichar no alinhamento, e nem na ordem das frases e parágrafos: tudo poderá ser mudado posteriormente. Como ninguém quer atuar disciplinadamente, é lógico que o resultado será indisciplina. Essa indução de indisciplina mental é ruim para um adulto, mas é péssima para uma criança ou jovem em idade escolar, pois estes estão justamente desenvolvendo sua disciplina mental ligada à redação decente de textos. Talvez o aprendizado de escrever à mão tenha algo a ver com esse desenvolvimento. Testes de português têm altíssima correlação com os de nível intelectual; pode-se conjeturar que uma boa capacidade de redação está ligada a manifestações da inteligência. Mas esse não é o único problema educacional dos computadores: justamente o pensamento abstrato, lógico-simbólico que o computador força para ser programado ou usado, é totalmente inadequado para crianças e jovens antes de terem uma maturidade intelectual adequada. Usando a pedagogia Waldorf, concluímos que essa idade situa-se ao redor dos 16-17 anos. A aceleração mental, como referida por J.Healey, em seu livro Endangered Minds, tende a especializar as funções cerebrais, prejudicando o desenvolvimento posterior. Conjecturamos também que forçar uma atividade mental que ainda não é própria para uma idade deve provocar processos esclerotizantes, isto é, senilidade precoce: forçar uma criança a agir, sentir ou pensar como adulto obviamente faz com que ela se torne menos criança, e a falta dessa etapa poderá ser trágica mais tarde. Para uma criança, o fascínio educacional do computador é a atração pelo cosmético, isto é, o aspecto áudio-visual e de animação, e não pelo conteúdo. Pode-se perguntar: e se se tirar o cosmético, o que sobra? Certamente não um interesse pelo conteúdo (geografia, por exemplo). Infelizmente, com o ensino péssimo que nós temos, até um computador é capaz de ensinar melhor que nossos pobres professores. Mas isso é só um atestado de que o ensino é justamente péssimo. Analogamente, sabe o leitor por que o xadrez é um jogo quadrado? Até computador joga bem...Não advocamos que não se use um computador. Estamos apenas alertando para o fato de ele ser altamente prejudicial. Para os programadores, recomendamos uma verdadeira higiene mental (literalmente, limpeza dos pensamentos poluídos forçados pelo computador) compensatória: atividades artísticas (especialmente pintura, particularmente aquarela em papel molhado, onde não há nada bem definido). Para os usuários, desligar-se do micro mais ou menos a cada ½ hora, escrever de vez em quando à mão, etc. Em educação, só introduzir o computador nas duas últimas séries do colegial; não há nenhuma necessidade de se introduzir antes. O argumento que de as crianças devem acostumar-se com essas máquinas é totalmente falaciosa: quando elas forem grandes, o software será completamente diferente, e os computadores tão simples de aprender a usar que não será necessário nenhum curso para isso. Enfim, não somos contra as máquinas, mas sim a favor de sua colocação em seu devido lugar e seu uso crítico e não cego como se está fazendo, o que está levando a uma verdadeira destruição da humanidade. No caso do computador, talvez uma destruição pior do que a recente bomba atômica francesa, pois o que é preferível: eliminar uma pessoa fisicamente ou reduzi-la a uma máquina de pensar apenas pensamentos que podem ser colocados dentro de uma máquina?