O impacto da Tecnologia de Dados na sociedade do futuro

Valdemar W.Setzer
vwsetzer@ime.usp.br - www.ime.usp.br/~vwsetzer

(Este artigo foi escrito em abril de 2000 a pedido do jornal BCC News dos alunos do Bacharelado em Ciências da Computação do Instituto de Matemática e Estatística da USP. Para esta versão, foram feitas pequenas correções e mantido o tom de conversa com os alunos. Ele foi publicado na revista eletrônica Redemoinhos, do Instituto de Estudos Avançados da USP. Última modificação: 8/8/01.)

O título deste ensaio não coincide com o proposto pelo jornal BCC News, "O impacto da Tecnologia de Informação na sociedade do futuro", pois creio que uma formulação mais precisa de "Tecnologia de Informação" seria de "Tecnologia de Dados" (TD). Na minha conceituação, o que se armazena em, se processa por e se transmite com computadores são dados, e não informações. Dados são representações simbólicas quantificadas. Assim, uma árvore não é um dado, mas descrições da mesma em forma de texto ou uma foto o são. Informação exige um ser humano que a recebe, eventualmente sob forma de dados, e a interpreta, associando-a a conceitos, lembranças de imagens, sensações, etc., já conhecidos. Se o Prof. Siang Wun Song, diretor do IME, escrever a descrição da árvore em Mandarim, ela será um montão de dados para mim (poderei processá-la formatando-a, mudando de fontes, etc.), mas não consigo obter nenhuma informação a partir dela. A mesma descrição em português são dados que se tornam informação para mim quando eu compreendo suas frases, mas provavelmente será apenas um montão de dados para um chinês. Um semáforo vermelho é um dado, que é interpretado por um motorista, passando a ser uma informação para o mesmo. É importantíssimo reconhecer que para um computador tudo é dado, e nada é informação. Veja-se artigo sobre esse assunto em meu "site". Nessa minha conceituação, Claude Shannon não fez uma Teoria da Informação, mas uma Teoria de Dados. De fato, sua teoria preocupa-se por exemplo com a capacidade de canais transmitirem dados, e não informação; ela não se preocupa em absoluto com o conteúdo do que é transmitido.

Vou considerar a TD como englobando computadores, redes de computadores, dados e programas. Estou interessado primordialmente nos impactos profundos.

O título proposto exige uma especulação inicial sobre o que será a sociedade do futuro. Podemos imaginar dois cenários: a continuação das tendências verificadas principalmente no século XX (mas que são uma continuação das conseqüências de uma mudança na constituição humana que vem se processando desde o século XV) ou uma guinada para outros caminhos (como uma possível conseqüência dessa mudança). Para considerações e exemplos de mudanças positivas de mentalidade ocorridas no século XX, veja-se o artigo sobre a obsolescência do ensino, em meu 'site'.

No primeiro cenário haverá uma penetração cada vez mais acelerada da TD, continuando a tendência dos últimos 50 anos. Isso se deve a vários fatores: 1) O fato de estarmos continuamente imersos em frutos de pensamentos abstratos ou técnicos, e a TD trabalhar justamente com pensamentos - muito restritos - que foram colocados nas máquinas ou redes sob forma de dados ou programas. Pelo contrário, na antiguidade o ser humano estava imerso quase que somente em um mundo natural que não tinha sido pensado por seres humanos (a menos de sua casa e de alguns instrumentos). 2) A colocação do avanço técnico a serviço de interesses ambiciosos de enriquecimento ou de poder. Assim, esse avanço não visa atender a reais necessidades humanas, mas a interesses egoístas e gananciosos, isto é, anti-sociais. A sociedade não é convidada a se manifestar sobre a introdução de um novo 'gadget' (em hard ou soft); se não há necessidade do mesmo, ela é criada por meio de marketing milionário. Outra fonte de necessidade é a obsolescência forçada, bem típica da TD. 3) O casamento absolutamente indevido entre a economia e o conhecimento científico, levando este a dedicar-se principalmente ao desenvolvimento técnico e àquilo que pode produzir lucro ou poder. 4) O modismo e a curiosidade, que ainda sobrepujam de longe a consciência na utilização de qualquer novidade técnica.

Um dos grandes problemas da TD é que ela trabalha somente através de dados e programas, sendo os primeiros quantificados e os segundos restritos à lógica simbólica dos computadores (que também é quantificada). Assim, perde-se totalmente a qualidade que não pode ser quantificada ou expressa sob forma de instruções lógico-simbólicas. Não posso provar que ela existe, mas também não se pode provar que tudo no mundo seja quantificado. A vivência sensorial de cada um, por exemplo, claramente não é sentida pessoalmente como quantificada, como também não o são os pensamentos, os sentimentos e os impulsos de vontade. Portanto, uma quantificação indiscriminada simplesmente não corresponde à nossa vivência, sendo necessariamente desumana. A necessária quantificação da TD leva à eliminação ou ao esquecimento da qualidade, e isso tem significado um empobrecimento da vivência humana, que neste cenário continuará aumentando. Creio que a tendência é esse empobrecimento chegar a reduzir o comportamento do ser humano ao nível de máquinas, isto é, um nível subnatural - ao contrário do que acho que deveria ser o nosso caminho, isto é, no sentido de nos tornarmos supra-naturais (quando o ser humano das cavernas fez uma pintura rupestre, já não era mais um ser 100% natural, e conjeturo que nunca o tenha sido).

Pode-se objetar que textos já existiam antes da TD e que eles já usavam uma representação quantificada. A sua introdução deveu-se, creio, a uma das etapas do empobrecimento geral do ser humano. É importante observar que esse empobrecimento foi necessário para a aquisição da liberdade, da auto-consciência e da individualidade, que podem ser considerados como enriquecimentos em outra direção. Não foi à toa que Platão chamou a atenção para a perda que a escrita significava - compare-se a nossa capacidade de memorizar com a que havia na época em que Homero declamava suas enormes epopéias sem usar 'cola'. Uma das grandes diferenças dos livros e revistas em relação a textos e imagens via TD é que nos primeiros há algo físico a ser pego, no qual se podem fazer anotações físicas e com os quais se pode ter um relacionamento pessoal. Por outro lado, há obviamente uma grande flexibilidade introduzida pela TD na busca, na seleção e no hipertexto. Infelizmente, a TD, por meio da Internet, eliminou a responsabilidade de quem editava o livro ou revista. Agora qualquer um coloca qualquer bobagem ao acesso de centenas de milhões de pessoas, sem que ninguém se responsabilize além do autor, e sem que se possa associá-la com, por exemplo, uma publicação sensacionalista, o que poderia evitar ter-se que lê-la para saber do que se trata. Isso significa uma diluição do que é útil num mar de inutilidades. Tenho a impressão de que o lixo na Internet aumenta exponencialmente, ao passo que o que é útil aumenta linearmente - com um coeficiente bem baixo! Humberto Eco declarou há pouco no Fórum de Davos que "A enchente de informações leva à idiotização da sociedade." Uma outra vantagem do livro era que ele constituía um todo. Gostaria de encontrar alguém que tenha lido um livro inteiro no computador, sem tê-lo impresso. Provavelmente a fragmentação produzida pela máquina impede a concentração necessária para se ler um livro prestando atenção de cabo a rabo.

Mas o que não havia antigamente era o processamento algorítmico de dados - a não ser mais recentemente, em cálculos, como os astronômicos a partir do século XVI, que eram feitos em galpões, com as folhas penduradas em varais. Obviamente, as pirâmides egípcias não foram calculadas, pelo menos na Estática - mas nem os Incas o fizeram muito mais recentemente, em suas maravilhosas enormes pedras perfeitamente encaixadas, pois não tinham nem escrita. Na medida em que a sociedade depender mais e mais de processamento de dados, tornar-se-á mais e mais empobrecida, principalmente pela perda dos aspectos qualitativos e pelo processamento reduzido em última instância às limitadas manipulações lógico-simbólicas das instruções das linguagens de máquina. Logicamente não estou me referindo a processamento de entes já quantificados, como o sistema monetário - o que levou ao casamento perfeito da TD com o sistema bancário -, ou a cálculos necessários, por exemplo em engenharia.

Uma tendência que eu acho absolutamente idiota mas que provavelmente acabará por se impor largamente será a do 'ubiquitous computing', isto é, o computador em todo lugar (muito mais do que hoje!). Um exemplo que foi citado em nosso meio e também mencionado na recente Feira de Utilidades Domésticas foi o de uma cafeteira ligada à Internet. Alguém pode imaginar a utilidade disso? Talvez eu comandá-la de meu escritório, quando estiver saindo para casa? Talvez economizar alguns minutos, que é o tempo de fazer um café? Vejam o empobrecimento de eu não mais ter que tirar o pó do saquinho, sentindo o seu cheiro, de misturá-lo na água fervendo, colocando intuitivamente mais ou menos quantidade conforme minha preferência no momento de fazê-lo, de mexer o líquido sentindo a dissolução, escolher talvez um filtro de papel pois não estou com vontade de lavar o filtro de pano que prefiro, etc. Obviamente, se o leitor já usa uma máquina de fazer café, e não costuma passar por todo esse processo manual, não haverá nenhuma diferença quanto ao gosto do café 'internetado'. Mas, se eu costumo fazer o café manualmente, ao usar essa cafeteira internetada minha esposa não poderá depois dizer: "Que café gostoso você fez!" Bem, preciso confessar que, infelizmente, como eu não tomo e não faço café, qualquer vantagem da cafeteira internetada parece ainda mais idiota, mas espero que muitos leitores possam ver-se na situação prevista pelo exemplo e extrapolar para, por exemplo, a música ambiente da casa do - desculpem a citação da 'baixaria da computaria' - Bill Gates. Lá, segundo seu 'horroripilante' livro, a música varia de cômodo para cômodo, acompanhando o infeliz que não consegue ficar sossegado sem o inferno (para mim) que é a música ambiente, e sem que o computador detecte onde está (qualquer exagero de minha parte é mera intenção). A propósito, notícias recentes dão conta que sua casa, que custou 50 milhões dólares, é uma verdadeira dor de cabeça quanto ao funcionamento de todos os seus aparelhos, exigindo a presença constante de 3 técnicos para manutenção... Contra a 'computação ubíqua', vejam-se os números 100 (6/1/00), 101 (27/1/00) e 112 (5/10/00) da excelente revista eletrônica Netfuture - Technology and Human Responsibility (www.netfuture.org). Aliás, essa revista, com um grande número de assinantes, é um contra-senso às tendências atuais: ela é absolutamente anti-democrática, pois reflete exclusivamente - a menos de algumas cartas transcritas e raros artigos - a opinião absolutamente pessoal de seu editor Stephen Talbott (autor do livro The Future does not Compute). Isto é, na era da despersonalização causada pelas máquinas e pelo computador, aparece alguém na Internet que se torna popular apesar de impor um estilo absolutamente pessoal marcado, por sinal, por uma tentativa de crítica sem agredir os opositores e sem se envolver em polêmicas.

Portanto, os primeiros impactos profundos da TD na sociedade futura serão, neste cenário, o aumento do empobrecimento da realidade através de sua representação em forma de dados e processamento destes últimos, e da substituição de mais e mais atividades humanas por máquinas. Não se venha com o argumento de estarmos substituindo serviços indesejáveis: quem não tem tempo e prazer de fazer um café ou um bolo pessoalmente e aprecia mais os feitos por máquinas já não é uma pessoa humana, pelo menos no sentido amplo que dou a esse conceito. A propósito, faço pão quase todas as semanas usando uma máquina (se bem que a ajudo amassando a massa enquanto ela a bate, para sentir a consistência), pois é mais prático, mas continuo reconhecendo que o feito à mão é muito melhor! Quanto à economia de tempo, creio que quem não tem alguns minutos diariamente para fazer café ou ler um jornal já está com a vida errada, desumana, e deve estar sofrendo por causa disso.

Um outro impacto profundo será a continuação, incremento e popularização da mentalidade corrente nos meios intelectuais desde meados do século XIX, de que o ser humano é uma máquina. Isso não é tanta novidade: em 1748 La Mettrie publicou um livro intitulado L'Homme-Machine. Mas certamente era uma novidade naquela época. Nunca houve uma metáfora tão grande para essa mentalidade quanto o computador o é, pois nunca uma máquina trabalhou simulando uma gama tão variada de nossos pensamentos. No mundo atual, estamos cercados de frutos do pensamento humano, portanto ele tornou-se o que de mais importante foi desenvolvido pela humanidade. É preciso conhecer o que é um computador do seu ponto de vista lógico (isto é, sua linguagem de máquina) para saber que ele só simula certos pensamentos restritos (aqueles que podem ser expressos através de algo redutível às instruções da LM), e não pensa. Aliás, conhecendo os circuitos lógicos percebe-se que um computador nem mesmo soma: ele combina símbolos lógicos de modo a dar o resultado esperado para a soma. Mas nada disso é conhecido pelos leigos, e os 'computatas' não parecem interessados em desmistificar a máquina, já que eles mesmos introduzem nomenclaturas falaciosas, como por exemplo a 'Inteligência Artificial'. Essa expressão foi introduzida por John McCarthy, importante iniciador da pesquisa do que se denominou de 'semântica formal' de linguagens de programação que, por sinal, não é semântica coisa nenhuma, pois o computador é uma máquina puramente sintática. Pois bem, segurem-se, ele afirmou, conforme relatado por John Searle em seu livro Minds, Brains and Science: "Pode-se dizer que máquinas tão simples como termostatos têm opiniões ('beliefs')." Perguntado por Searle qual era a opinião de um termostato, McCarthy afirmou: "Meu termostato tem três opiniões: aqui está muito quente, aqui está muito frio, ou aqui está bom." Transcrevo tudo isso para mostrar o que é uma mentalidade de achar que o ser humano é uma máquina - no caso, que nossa opinião é como a reação mecânica de um termostato. Não é à toa que ele inventou a expressão abreviada em inglês por AI ('automated imbecility', na minha paráfrase). Se a concepção é de que o ser humano é uma máquina, obviamente alguém achará que alguma máquina terá um dia a nossa inteligência, seja lá o que isso for. Quantas pessoas estão falando por aí, além de mim, que o computador pode parecer ter um comportamento inteligente, mas que se indo ao fundo verifica-se que ele é de uma burrice total - pois segue sempre o programa pré-determinado? Aliás, deixem-me aproveitar para enunciar a última Lei de Setzer: "Só os burros necessitam de uma definição de inteligência." Corolário: os computadores são burros.

Na verdade, a influência na mentalidade é o meu maior temor de impacto do computador, e essa influência é clara: a de reduzir a concepção que se faz do ser humano à de uma máquina, novamente reduzindo-o a algo subnatural. Meu medo é que essa mentalidade vá provocar tragédias terríveis. Já estamos podendo imaginar as possíveis conseqüências disso: a idéia de que o ser humano é determinado fundamentalmente pelo seu genoma - levantado com o auxílio essencial de computadores, isto é, mais uma quantificação! -, e que poderemos alterá-lo para 'melhorar' uma pessoa, deriva totalmente dessa mentalidade. Estou chamando essa tendência de 'racismo genético'. Deveria ser 'eugenia genética', mas o exagero é proposital, e me leva ao seguinte. Os nazistas - esses representantes máximos do que eu chamo de 'século da barbárie' - trataram milhões de seres humanos como animais, transportados em vagões de gado, confinados em verdadeiras jaulas, etc. Mas pode-se ter uma ética em relação aos animais, vide as Sociedades Protetoras, as campanhas para defender as baleias e espécies em extinção (ainda há um sentimento de veneração em relação à natureza, mas neste cenário a TD talvez acabe com ele), as campanhas para não se usar animais em experiências de laboratório, etc. O que não faz sentido é ter uma ética em relação às máquinas - bem, desde que não se tenha uma mentalidade como a de McCarthy, pois eu não me admiraria se ele tivesse dó de desligar seu micro. Assim, a concepção de ser humano como máquina poderá produzir atitudes que deixarão os nazistas no chinelo. Temo especialmente pela mentalidade que terão, quando adultas, as crianças que usam computador hoje em dia. Elas não têm a possibilidade de compreender o que é a TD e são demasiadamente influenciáveis.

Mas há outras conseqüências desastrosas deste cenário. Uma outra será um aumento na fragmentação da vida humana. Examinem-se a si próprios quando vocês usam o computador, especialmente a Internet. Vejam como em geral não se concentram em um trabalho ou um assunto só: por exemplo, lêem e respondem montões de e-mails rapidamente, se uma cita um 'site' vocês dão uma olhada nele, nesse 'site' seguem vínculos para outros, etc. Essa fragmentação tende a dissolver a auto-consciência e a individualidade, limitando a liberdade à escolha das ações permitidas pelo software. Enfim, novamente o ser humano é reduzido em sua humanidade.

Um outro impacto da TD que provavelmente piorará no futuro é o aumento da velocidade das reações que seus usuários são obrigados a exercer. Novamente, é como se o ser humano fosse reduzido a uma máquina, agora de reagir rapidamente. Crianças e jovens estão sendo treinados para isso, por meio dos terríveis joguinhos eletrônicos (leiam meus artigos a respeito, em meu 'site', expandidos em meu livro Meios Eletrônicos e Educação: uma visão alternativa, No. 10 da coleção Ensaios Transversais, São Paulo: Ed. Escrituras, 2001) e pelo uso de computadores. É uma verdadeira 'maquinização' do ser humano em termos de suas ações. O raciocínio é sempre lento, a menos das idéias intuitivas que devem depois sofrer uma calma reflexão, antes de se agir - o que os animais não podem fazer, pois seguem seu 'programa' impulsivamente. Mas a TD impõe uma velocidade que não está de acordo com essa lentidão de nosso pensamento consciente. Isso sem falar na velocidade absolutamente desumana das mudanças das máquinas e da sociedade, mas isso já está sendo tratado por uns e outros, e não estou aqui para falar o que os outros dizem. Essa questão de velocidade está penetrando nos negócios. Há muito venho dizendo que a seleção natural não deve ser aplicada ao ser humano, a não ser em uma área: a econômica, onde na selva (!) capitalista claramente impera a 'lei do mais forte'. Pois bem, estamos entrando na era da 'lei do mais rápido': empresas que não se internetarem rapidamente serão engolidas pelas que o fizerem. Mais desumanização da sociedade.

Finalmente, ligado à aceleração do tempo aparente, há outro impacto que, neste cenário, certamente vai piorar muito: o adiantamento do desenvolvimento pessoal e da humanidade. Já escrevi bastante sobre a aceleração indevida do desenvolvimento das crianças e jovens quando usam o computador, em qualquer aplicação. A respeito disso, recomendo a leitura da tradução do livro de Neil Postman, O Desaparecimento da Infância, onde ele faz uma interessante análise do conceito de infância e trata do problema do ponto do vista dos meios de comunicação. Creio que a liberdade exagerada introduzida pela Internet também é uma aceleração. Eu aprecio muito essa liberdade, quando não recebo "junk e-mails" ou vírus, meu cartão bancário não é clonado ou as listas de que participo não trazem uma enxurrada de e-mails diariamente (já saí de várias por causa disso). Não tenho certeza, mas é possível que a humanidade ainda não esteja suficientemente desenvolvida para o exercício do grau de liberdade oferecido pela Internet. Liberdade exige auto-consciência e responsabilidade social, que ainda estamos desenvolvendo. Esse adiantamento indevido do futuro pode significar um efeito contrário: a perda da liberdade, por não sabermos usá-la (é o que já acontece quando pessoas sem suficiente maturidade, como por exemplo crianças, são influenciados por 'sites' indevidos). Os problemas com a liberdade exagerada na Internet não serão nada com a implementação da planejada 'Freenet', uma rede em que se poderá colocar anonimamente o que se quiser, o autor não terá que se inscrever em um provedor, e será impossível localizar e eliminar o arquivo em que a informação foi armazenada. Se o cenário em que estamos não mudar, parece-me que a 'Freenet' vai tornar-se uma realidade.

Em resumo, os maiores impactos serão na desumanização contínua e acelerada do ser humano. As conseqüências disso poderão ser terríveis: desagregação social, desespero e desilusão pessoais com a vida, aumento de fundamentalismos religiosos, étnicos e o científico (crença nos paradigmas da ciência - por exemplo, considerando a Biologia um ramo da Física), levando talvez a uma apocalíptica guerra de todos contra todos, o que, aliás, pode-se perceber já há tempos espocando em várias partes do mundo.

Agora vou passar ao outro cenário. Terei que ser muito breve, pois estou atingindo o limite de espaço que me foi alocado. Nesse cenário, os seres humanos reverteriam todo esse processo. Isso seria um fruto de uma tomada de consciência daquilo que se está fazendo inconscientemente. A economia passaria a atender interesses sociais, e não a ambições egoístas e portanto anti-sociais. Note-se que as injustiças sociais, o desespero e a desesperança estão em média aumentando de maneira acelerada, de modo que os efeitos benéficos da 'invisible hand' de Adam Smith, cuja mentalidade impera na economia, estão cada vez realmente mais difíceis de ser vistos - a não ser em poucos casos privilegiados. A introdução de uma nova técnica ou máquina deveria atender a reais necessidades sociais, controladas pela própria sociedade (e não pelo Estado ou pelos meios de produção). Não deveria haver liberdade, e muito menos igualdade nos meios econômicos e de produção, e sim uma fraternidade, produzindo-se o que é necessário e tem prioridade. Neste cenário, a TD passaria a servir naquilo em que pode ser realmente útil, e não a ambições pessoais e a modismos. Como o sistema bancário é quantificado por natureza (da moeda), é ponto pacífico que a TD pode ser útil nessa área - sem se esquecer que não se deve eliminar as pessoas naquilo que realmente elas são imprescindíveis: não para fazer uma transferência de dinheiro, mas para um aconselhamento em investimento, por exemplo. Não iríamos cair nessa de 'internetizar' uma cafeteira, já que pelo menos há necessidades sociais com prioridade infinitamente maiores de ser atendidas - assim como não enviaríamos foguetes a Marte com justificativas falaciosas que ouço desde que o homem pousou na Lua: "Desta vez vamos descobrir qual a origem do sistema solar." Não se desenvolveria uma vacina contra uma doença benigna como é a catapora, só para os pais americanos não perderem dias de trabalho (isso não é piada minha, não!). Aliás, quem sabe nesse cenário reverter-se-ia o conceito de doença, reconhecendo que muitas delas são uma necessidade do organismo, e não devem ser eliminadas e sim controladas para poderem produzir o efeito que o ser humano, essa não-máquina, procurou. Sim, pois a sábia língua nos diz que nós "pegamos" uma doença, não é ela que "nos pega". Com as quantidades de germes e bactérias pululando numa cidade como São Paulo, se as doenças nos pegassem nós não deveríamos sair da cama... A TD, mais especificamente a Internet, poderia ser muito útil como vetor para essa mudança de mentalidade: afinal, duvido que uma revista médica clássica permitisse a publicação de um artigo mostrando que se pode ter um outro conceito de doença - assim como se colocou no ostracismo um conhecido astrônomo que fez a besteira de tentar divulgar uma teoria de que o desvio para o vermelho não era devido ao afastamento de estrelas e galáxias, mas a uma atração gravitacional, o que vai contra o paradigma (leia-se preconceito) adotado hoje na astronomia.

Os leitores estarão achando que estou sendo utópico. Mas chamo a atenção para o fato de que o fatalismo de "essa máquina veio para ficar, apertem os cintos!" não se aplica mais a várias conquistas técnicas. Por exemplo, já se provou que a bomba atômica não veio para ficar; talvez as centrais nucleares também não vieram para ficar. É possível que a maioria dos paulistanos torça para que o automóvel não veio para ficar, e que muito melhor seria ter um transporte coletivo decente - como o metrô de Paris, que até a zona perimetral deve obrigatoriamente chegar a 500m de cada residência. Exemplos de exageros da TD: o vício que a Internet produz (pesquisas recentes mostraram que 6% dos seus usuário são viciados nela); a diminuição da interação social e aumento da depressão provocados pelo uso da Internet, como mostrado em pesquisas recentes das universidades de Carnegie Mellon em 1998, de Stanford em 1999 e de Harvard em 2000; o fato de se ter constatado que robôs industriais são muito menos eficientes que trabalhadores humanos, pois estes adaptam-me muito mais rapidamente a mudanças na linha de produção, e os robôs necessitam de reprogramação, que é sempre demorada e leva tempo para se tornar confiável.

Uma observação profunda mostra que as forças que estão por trás das máquinas são infinitamente inteligentes, mas não têm um pingo de bom-senso. Assim, contra seu próprio interesse, sempre acabam exagerando, o que promove uma conscientização e uma reação contra elas - vejam, por exemplo, os casos da poluição mundial, e da violência e do sexo na TV brasileira. A 'Freenet' citada acima claramente é um exagero de liberdade para quem não está preparado a exercitá-la, e quem sabe mostrará que liberdade exige responsabilidade, que ainda não desenvolvemos no grau necessário. De modo que há alguma esperança de que o mau uso e o exagero da TD, e os problemas daí advindos, venham a conscientizar as pessoas de que é necessário dar um basta e começar a controlá-la, colocando-a a nosso serviço em um sentido realmente humano e não de homem encarado como máquina.