FUTEBOL: SIM OU NÃO?

Valdemar W. Setzer
www.ime.usp.br/~vwsetzer

Original de 4/5/14; última revisão em 4/2/16

Introdução

Há dezenas de anos tenho grandes restrições ao futebol, tanto ao jogado, como principalmente ao visto na TV. Nunca tive coragem de escrever minhas ideias, e nem comentá-las em público verbalmente, pois tinha medo de ferir e ir contra a quase maioria dos brasileiros, grandes admiradores do futebol. No entanto, as surpreendentes demonstrações contra a realização da Copa do Mundo no Brasil de 2014 deram-me ânimo para divulgar minhas ideias a respeito desse jogo.

Inicialmente inicio com um histórico de meu relacionamento com o futebol. Em seguida coloco quais são meus sentimentos em relação a ele. Essas duas seções são individuais e subjetivas. A terceira é universal, e contém minhas ideias a respeito. Espero que essas ideias suscitem comentários dos leitores, e que me os enviem, para que eu possa eventualmente revê-las, mudá-las ou aperfeiçoá-las.

Tradicionalmente, a pedagogia Waldorf não utiliza o futebol em suas atividades de educação física e recreação com os alunos. Alguns dos argumentos expostos na terceira seção podem servir para se compreender essa atitude.

Este artigo foi escrito originalmente antes da Copa do Mundo de julho de 2014, que ocorreu no Brasil. Para esta versão as referências a ela foram colocadas no passado.

Histórico pessoal

Joguei futebol depois dos 10 anos quando mudei, em 1950, para uma rua onde havia uma ótima turminha de minha idade, e se jogava na própria rua – só por curiosidade, e comparação com nossos gloriosos tempos de hoje, era a rua Maestro Elias Lobo, que é paralela à 9 de Julho, um pouco acima da Av. Brasil, em São Paulo. De vez em quando passava um carro e tínhamos que parar o jogo; nunca havia algum estacionado para atrapalhar o campo. Hoje em dia, é impossível os garotos jogarem bola nela e em muitas ruas muito mais distantes do centro da cidade.

Seguindo a turminha, também joguei futebol de botão (e bolinha de gude, taco etc.). Eu tinha jogadores que se chamavam Oberdã, Mauro, Leônidas, De Sordi e outros que não me lembro mais. Lembro que uma vez eu cortei todos os botões grandões de uma capa que meu pai tinha ainda da revolução de 32, quando foi definido como tenente especialista em explosivos, pois estudava engenharia química na Escola Politécnica da USP. Lixei todos os botões e fiz um senhor time. Levei uma bruta surra ou bronca de minha mãe por causa disso – para minha incompreensão infantil, pois meu pai jamais usava aquela capa. Os gols eram feitos com livros, os goleiros eram caixinhas de fósforo, e as bolas ou de papel de alumínio de chocolate, ou botõezinhos menores; colocando estes últimos de cabeça para baixo dava para se poder encobrir os goleiros...

Obviamente, eu torcia para um time, acompanhando meus amiguinhos. Lembro vagamente de ter ouvido no rádio partidas de futebol daquela época; a TV apareceu no Brasil quando eu tinha 11 anos, e meus pais levaram muitos anos para instalarem uma, de modo que salvei-me da influência dela na infância.

No futebol de rua, eu era uma total nulidade. No botão, era razoável.

Eu colecionava figurinhas, jogava bate-mão ou seja lá como era o nome. Mas as figurinhas, que vinham em caixas de balas, que eu me lembre não eram de jogadores de futebol como agora, e sim de pessoas famosas. Lembro de uma, a do Marechal Floriano Peixoto que era "difícil" e valia uma nota.

Não vejo futebol pela TV; bem, também não a vejo para outras coisas. Tive instalado um pacote com telefone, Internet e TV durante um ano e meio e não a assisti nenhuma vez, o que me levou a cancelar o pacote, e desde aquela época não tenho TV a cabo. Eu tinha e tenho coisas muito mais úteis para fazer, como escrever e rever este texto. No entanto, quase sou obrigado a assistir TV quando a da academia em que faço musculação três vezes por semana está ligada à minha frente, em frente ao aparelho elíptico (transport) que uso para aquecimento inicial, uma parte da aeróbica. Não ouço futebol pelo rádio, não leio notícias futebolísticas no jornal que assino. Mas vejo um pouco de futebol quando a TV da academia está transmitindo um jogo. Mas nesse caso eu fico em geral olhando para o jardim e para os lindos cavalos que passam de vez em quando na trilha perimetral do clube (Hípico de Sto. Amaro) e só de vez em quando olho para o jogo, que me parece monótono demais – mas esse é um assunto para a próxima seção que aí vai.

Sentimentos

Talvez por ter sido uma nulidade no futebol de quadra ou campo, nunca me envolvi sentimentalmente com o jogo. E depois da turminha da rua, jamais o joguei. Acho que isso me deu uma perspectiva objetiva em relação ao futebol.

Não gosto de futebol. Gosto não se discute (como vou discutir com alguém o fato de ele/ela não gostar de mamão, por exemplo?), mas esse sentimento é apoiado pelas razões expostas na próxima seção.

O sentimento que sinto ao assistir um pedacinho de uma partida de futebol é de total monotonia. Muito de vez em quando aparece um lance que pode ser admirado pela precisão, ou pela expectativa de a bola entrar ou não no gol. Aliás, os chutes ou cabeçadas para gol são, em geral, muito raros. Lembro de ter assistido trechos de partidas do Brasil – fiquei impressionado com a falta de vontade de correr dos jogadores brasileiros. Parecem tartarugas! Além disso, muitas vezes parecem confundir os campos, pois fazem passes para trás em vez de tocarem a bola no sentido do gol adversário...

Tenho um sentimento de revolta quando um jogador comete uma falta em um outro, principalmente quando é proposital. E haja faltas! Tenho uma teoria, dentre as minhas muitas sem fundamento, que é baseada no fato, comprovado cientificamente, de normalmente a TV induzir um estado de sonolência no telespectador, e diminuir drasticamente a atividade cerebral (por exemplo, a amplitude do eletroencefalograma é normalmente reduzida a 1/5 da resultante de uma atividade com atenção, como a leitura). Tente-se pensar conscientemente em cada imagem e frase falada transmitidas pela TV e ver-se-á que se sente uma exaustão mental em cerca de um minuto; pode-se perceber como a tendência é relaxar o pensamento, o que se reflete geralmente na cara de desatenção, de bobo, que se vê nos telespectadores. Como não há nenhuma ação física por parte do telespectador, e portanto não há exercício da vontade (é preciso exercer uma enorme vontade para se desligar o aparelho, isso sim!), das atividades mentais pensar consciente, sentir e querer, apenas a segunda está sendo ativada. E há duas receitas infalíveis usadas e abusadas pela TV para atrair o telespectador e impedir que ele passe do estado de sonolência para o de sono profundo – pois aí a propaganda, pelo menos a visual, não surtiria efeito: atingir os sentimentos com cenas de violência e cenas eróticas. Daí, segundo minha teoria, a existência de tantas faltas nos jogos de futebol; segundo ela, provavelmente os jogadores são incentivados a cometer faltas – pois, pelo que vejo, claramente uma porção delas, senão a maioria, são totalmente desnecessárias. E vejo também que as cenas de faltas, principalmente as bem violentas, quando o pobre atingido cai contorcendo-se no chão, seja fingindo ou não, são imediatamente repetidas – como também são repetidos os grandes desastres em Fórmula 1; aposto que a maioria das pessoas que veem essas corridas estão ansiosamente aguardando aquele desastre. Quando vários carros são envolvidos, pneus voam, o carro dá cambalhotas, escangalha-se na murada e pega fogo, é a glória total; aí a TV repete a maravilhosa cena um monte de vezes.

Também tenho sentimentos de revolta quando imagino o efeito anestesiante que os jogos têm sobre as pessoas, principalmente as socialmente desfavorecidas. Aposto que muitas delas, em vez de comprar uma geladeira, compraram uma TV para assistir um monte de estupidez e futebol.

E mais revolta ainda sinto quando, ao assistir, como contei, um pedacinho de um jogo, ou ver de relance no jornal notícias sobre futebol, penso no verdadeiro comércio de pessoas que o futebol representa. Raramente leio a seção de esportes, pois em geral descarto-a de cara. Sinto revolta também em pensar ou ficar sabendo dos rios de dinheiro gastos sem que a humanidade progrida com isso.

Fico triste em pensar que milhões de pessoas ficam frustradas após assistirem um jogo em que seu queridinho time perdeu.

Finalmente, fico muito triste em pensar que os telespectadores de jogos de futebol estão fazendo uma atividade sem nenhum, absolutamente nenhum benefício a não ser os sentimentos de alegria quando seu time faz um gol ou ganha uma partida. Mas quando comparo com a satisfação que sinto ao ler um bom romance ou uma boa poesia, ou aprender algo lendo um texto científico, filosófico, educacional, histórico, artístico etc., a satisfação que sinto ao fazer arte (cerâmica e música), ou ao conversar com minha família ou amigos, ao assistir uma peça de teatro, ao brincar com meus netinhos, assistir um jogo de futebol parece-me uma atividade absolutamente vazia, sem substância humana. Examinem-se a si próprios após verem um jogo e perguntem-se: Nesse tempo do jogo, aprendi algo? Desenvolvi algo em mim mesmo, progredi de alguma maneira? Ajudei alguém ou fiz alguém feliz? Produzi algo de interessante ou útil para outras pessoas?

Argumentos racionais

O futebol é um jogo violento. Estique-se uma perna e apoie-se o calcanhar em uma mesa. Que forma de um objeto formam a perna e o pé? A de um martelo! Ainda mais com as chuteiras profissionais, com bico duro justamente para se martelar melhor a bola (e as canelas dos adversários). Pergunta: quando se toma um martelo na mão, qual é o sentimento que se tem? Será que é de fazer carinho com o martelo? Não, é de martelar! E martelar é uma ação violenta. Uns e outros logo objetarão: mas nem sempre se martela a bola com um chute; um drible exige habilidade, exige "arte", idem para um passe sutil, só tocando a bola de leve, com o lado do pé. De fato, existem esses casos, mas o objetivo de uma boa parte do jogo é atingindo martelando-se a bola.

Uma indicação de que o futebol é um jogo violento, agressivo, é o fato de muitíssimo menos mulheres se interessarem por ele do que os homens. Ainda bem que, devido à sábia natureza, as mulheres são em geral mais pacientes e menos agressivas que os homens – em caso contrário, uma mãe atiraria seu bebê contra a parede quando ele desandasse a chorar sem parar! (Isto foi um exagero proposital.)

Já observei peladas na praia ou num clube. É muito comum surgirem discussões acaloradas entre os jogadores, com xingamentos etc. É um indício de que o jogo induz agressividade.

Nossas pernas são usadas exclusivamente para sustentação do resto do corpo e para locomoção, fora algumas atividades normalmente excepcionais, como guiar um carro, andar de bicicleta, andar a cavalo. Pois no futebol elas adquirem a maior importância de todo o corpo. Note-se que todas as atividades refinadas são exercidas com as mãos (fora a fala), e não com os pés. De certa maneira, o futebol exige que se passe a ter consciência em membros que normalmente são usados inconscientemente. Isso necessariamente afeta a harmonia geral do ser humano, que é uma totalidade. Por outro lado, não conseguimos executar ações refinadas com pernas e pés, pois eles não têm a mobilidade e sensibilidade que temos nos braços, mãos e dedos. Assim, conjecturo que essa concentração de movimentos nos pés e pernas deve afetar o indivíduo como um todo. Seria muito interessante investigar comparativamente as sensibilidades artística e social, e a capacidade intelectual de jogadores profissionais de futebol, que o praticam intensamente com regularidade, com outros profissionais, tanto esportistas como não esportistas.

A quantidade de gente que se machuca em jogos de futebol é enorme. Eu tenho um colega de natação, o Márcio, que sumiu da piscina por vários meses. A razão: feriu o joelho em um jogo de futebol e teve que ser operado. Já imagino que alguns leitores estarão pensando que vários outros esportes provocam lesões. Por exemplo, meu amigo Sérgio G. foi operado do ombro, se não me falha a memória, umas 8 vezes, devido ao fato de jogar tênis intensamente. Joguei tênis até fevereiro de 2011, sempre com meu companheiro constante nesse jogo, Horst tinha um filho que jogava tênis excepcionalmente bem e era relativamente jovem. Esse seu filho fez uma terrível lesão no pulso durante um jogo, e teve que parar de jogar por muitos meses. Meu cunhado era maratonista; teve várias lesões no joelho. No entanto, o fato de outros esportes também provocarem lesões não justifica que se jogue um jogo, como o futebol, que provoca tantas, se não me engano a maioria delas.

Jogar futebol pelo menos faz a pessoa movimentar-se e exercitar músculos, se bem que muito parcialmente. É um lado positivo, pois é uma atividade física, e essas atividades são necessárias a vida toda, inclusive para crianças pequenas, mas elas já fazem isso naturalmente pois as que ainda são sadias não param de se movimentar; uma criança pequena sadia não anda, corre. Mas jogar futebol é uma coisa, assistir um jogo na TV é outra totalmente diferente. Não só não haverá a atividade física, mas a posição física estática e o estado de sonolência mental induzido pela TV produz, como já foi provado cientificamente, uma drástica diminuição do gasto interior de energia. Some-se a isso o consumo de refrigerantes, bebidas alcoólicas (como a cerveja), docinhos e salgadinhos induzidos pela propaganda transmitida durante o jogo, e se terá uma receita infalível para o aumento de peso, com terríveis consequências para a saúde. Note-se que excesso de peso e obesidade tornaram-se as piores epidemias em vários países. Na página A17 do jornal O Estado de São Paulo de 1/5/14 há uma notícia relatando uma pesquisa feita pelo Ministério da Saúde, que "mostra que metade (50,8%) dos brasileiros acima de 18 anos está com excesso de peso, e 17,5 são obesos." Nos EUA, apenas 1/3 da população tem peso normal, e mais de 1/3 é obesa.

Jogar futebol tem um aspecto social; encontram-se amigos, os membros de um time muitas vezes se ajudam durante o jogo. No entanto, a competitividade contra o time adversário é, claramente, antissocial. Voltarei ao tópico da competição logo adiante.

E assistir um jogo num estádio? Isso é menos mal do que na TV, pois pelo menos não se fica preso a uma imagem virtual, mesmo se transmitida em tempo real. Tem-se constantemente a visão de todo o estádio e de todo o campo, o que não ocorre numa transmissão pela TV. A imagem não ficará mudando constantemente, como é o padrão da TV, uma das maneiras de atrair a atenção do telespectador e não deixá-lo passar do estado normal de sonolência para o de sono profundo. No estádio tem-se a visão do estádio todo, tem-se toda a vibração de milhares de pessoas, tem-se a possibilidade de encontrar e conversar com pessoas, enfim, é uma atividade social. No entanto, essa vibração ocorre devido a um entusiasmo por algo humanamente substancial, algo que signifique um progresso? Não.

Em termos de atividades físicas, parece-me que o futebol é uma das piores. Não se faz um exercício, um esforço continuado, pois em geral ele exige impulsão seguida de repouso. Além disso, como todo jogo com bola, o jogador não controla cada um de seus esforços, como é o caso da musculação e da natação que normalmente pratico, alternadamente, todos os dias. Foi devido à consciência dessa falta de controle e da parcialidade do uso de um dos membros superiores que parei de jogar tênis. Jogo com bola não é para velho! Além disso, não se joga futebol calmamente – vejam-se os berros que os jogadores soltam em cada partida, e a sua tensão emocional frequentemente presente.

O futebol é um jogo competitivo. Eu desenvolvi, com meu companheiro de tênis Horst, um tênis cooperativo: jamais contávamos pontos, só batíamos bola. Como resultado, nossos jogos eram muito mais intensos fisicamente, pois eles não eram interrompidos se a bola repicasse duas vezes no chão ou se caísse um pouco fora da quadra. Nós jogávamos contra a bolinha, que teimava em repicar e sair, e não um contra o outro. Como resultado, nós só nos elogiávamos pelas boas jogadas, e jamais discutimos se uma bola caiu dentro ou fora da quadra. Nenhum de nós queria mostrar que era melhor do que o outro ou capaz de vencê-lo. Muitas vezes jogávamos bolas difíceis para o outro, mas propositadamente, para desenvolvermos nossa técnica. Com nosso jogo, o Horst desenvolveu uma dificuldade de jogar partidas, o modo exclusivamente preferido pelos outros jogadores do clube. Ele dizia: "Os outros só pensam em ganhar a partida!"

É possível jogar futebol cooperativo? Sim. É só não contar pontos e misturar os times depois de cada gol. Mas é isso que se faz? Não, de modo algum! A mentalidade que o jogo impõe é de vencer o adversário. Aqui é necessário fazer uma consideração que considero fundamental: toda competição é antissocial, pois nela alguém necessariamente ganha e fica feliz, às custas de outro que perde e fica pelo menos frustrado. Em quantos jogos de futebol um time, em atitude de compaixão, deixou o outro ganhar para que os jogadores e torcedores desse último ficassem felizes? Em quantas competições de outros esportes isso ocorreu? Observe-se o gesto de um jogador ou esportista que fez um lance ou movimento vencedor. Qual é o seu gesto? Bater no ar com o punho cerrado, um gesto agressivo, o rosto endurecido, o contrário de um gesto amoroso, carinhoso. Esse aspecto antissocial do futebol torna-se realmente um exagero nos compeonatos. Suponhamos um deles com 20 clubes competindo. Apenas um vai ganhar o campeonato, e seus torcedores ficarão contentes e felizes. Mas essa alegria será conquistada à custa da frustração, talvez infelicidade de uma multidão de torcedores dos outros 19 clubes!

A humanidade deveria estar desenvolvendo a solidariedade, a fraternidade. A competição vai justamente contra esse necessário desenvolvimento, que envolve o amor altruísta, sempre construtivo, em lugar do egoísmo, sempre destrutivo. Qualquer competição exacerba o egoísmo. Isso vale não só para o futebol, mas nele a quantidade de pessoas envolvidas emotivamente é muitíssimo maior, isto é, o mal também é maior.

Para um espetáculo comercial popular como o futebol, exige-se a construção de estádios para dezenas de milhares de pessoas. Ora, uma boa parte dessas construções – o gramado e os assentos – ficam quase a totalidade do tempo sem uso. Isso significa um enorme desperdício de dinheiro. Pode-se argumentar que um teatro sofre do mesmo problema. No entanto, um teatro (não me refiro a uma enorme "casa de shows") é um lugar minúsculo comparado com um estádio. Além disso, o teatro é uma arte e, muitas vezes, como em sua origem grega, tem efeitos educacionais. Para os atores, pode ter efeitos terapêuticos.

Além do citado desperdício, é preciso considerar a questão de prioridades. Devem-se construir estádios ou escolas, hospitais, moradias, estradas de ferro, aeroportos etc.? Essa foi, declaradamente, a causa das manifestações populares contra a realização da Copa no Brasil, a mais cara da história.

Uma palavra sobre as Copas do Mundo, já que a de 2014 foi a do Brasil. Uma clara tendência da humanidade é o desenvolvimento do universalismo, contrário ao nacionalismo. Já não interessa mais a nacionalidade de uma pessoa (nem seu sexo, etnia, religião), mas sim sua capacidade e produção intelectual, artística ou social. Hoje em dia, o nacionalismo é uma aberração. Veja-se a tendência expressa na Comunidade Europeia: acabar com fronteiras (o tratado de Schengen), permitir que cidadãos morem em qualquer pais, estudantes façam parcialmente estudos universitários em qualquer país da Comunidade etc. Ora, tanto nas Olimpíadas como nas Copas, há a exacerbação do sentimento nacional.

O brasileiro sempre foi muito tolerante com os estrangeiros. Além disso, como o Brasil nunca teve problemas de fronteiras, o sentimento nacionalista nunca se desenvolveu como em muitos outros países. É uma lástima que justamente o esporte mais popular acabe gerando um sentimento nacionalista, pois o brasileiro é profundamente nacionalista no futebol.

O nacionalismo é exacerbado pela competição entre países. Mas a própria divisão em clubes provoca uma lamentável divisão entre as pessoas, a ponto de gerar violência entre partidários de clubes diferentes. Para que criar tal rivalidade, também contrária à tendência universalista? Pessoas serem distinguidas por serem partidárias deste ou outro clube é uma total aberração nesta nossa gloriosa época dos direitos humanos, que levou a humanidade a não mais dar importância a aspectos ou deficiências físicas, ao sexo, à religião, à nacionalidade, à etnia, e sim à essência de cada pessoa, que não depende desses fatores.

É interessante notar que a violência entre torcidas não ocorre em outros esportes, nem mesmo nos mais violentos, como o box e os vários tipos de lutas. Talvez isso seja devido ao fato de neles não haverem clubes, e serem individuais. Mas outros esportes que envolvem clubes, como o vôlei e o basquete, também não suscitam violência em suas torcidas – talvez por não envolverem violência entre os jogadores e não serem tão populares ou, quem sabe, a violência e a competição do futebol tem uma influência especial nos espectadores.

Conclusão

Com tudo isso, considero que o futebol representa um retrocesso ao passado, a uma época em que a humanidade não tinha a consciência de valores e da individualidade, e não tinha conhecimento e autoconsciência como os tem hoje. Retrocesso a uma época em que características físicas ou sentimentais, etnias e religiões provocavam rivalidades e até mesmo conflitos entre as pessoas e mesmo guerras. Assim como um fanático religioso parece retornar a um passado que deveria ter sido deixado para trás, um fanático ou mesmo admirador profundo do futebol, especialmente como espectador, parece-me indicar uma volta ao passado, em lugar de adotar atitudes mais condizentes com a humanidade moderna. Preocupam-me especialmente as crianças e adolescentes que são levados a admirar e praticar o futebol. Em lugar de educá-los para o futuro, para a compaixão e para a fraternidade, e para atividades sadias e refinadas, em minha opinião o futebol está literalmente corrompendo as futuras gerações.

Termino com uma citação de Rudolf Steiner, no ciclo do volume GA 350, Rythmen im Kosmos, na 1ª palestra, dada em Dornach, Suíça, em 30/5/1923:

"Agora os seres humanos têm uma mentalidade tal, que para eles o mais importante é tornarem-se seres terrenos. Depois de eu ter-lhes dado tantas palestras, os senhores vão perceber que tais coisas doem no coração. Vejam, no último verão estive também na Inglaterra. Justamente quando estávamos de partida, todo o país estava totalmente excitado, esperando pelos jornais, que deveriam aparecer à noite, com o mais importante acontecimento. Todos esperavam por essa edição noturna. Mas pelo que aguardavam? Pelos resultados do futebol!

Agora acabamos de chegar da Noruega. Quando entramos no trem, havia várias pessoas que nos acompanharam. Mas a plataforma estava repleta de gente. E quando o trem começou a se movimentar, ouviu-se um grito: Viva, viva! E na próxima estação gritaram: viva! Bem, naturalmente isso não ocorreu por nossa causa, mas nos perguntamos o que significava tudo aquilo. Eu ainda pude ficar sabendo. Eram jogadores de futebol, que tinham vindo da Europa central e agora estavam retornando.

Sim, pelo que as pessoas se interessam hoje em dia? De fato, muito mais do que por um acontecimento que tem a ver com o bem estar e aflição de milhões de pessoas, as pessoas se interessam por essas coisas, que pouco a pouco afastam o corpo físico do corpo etérico [um membro não físico dos seres vivos, responsável pela forma, crescimento, regeneração dos tecidos, enfim, todas as funções vitais, que cessam quando ele abandona o corpo físico na hora da morte] , que fazem o ser humano tornar-se um mero animal terreno."