A CENSURA E OUTRAS QUESTÕES DA INTERNET
Valdemar W. Setzer

[Artigo enviado em 21/5/97 ao jornal "O Estado de São Paulo", que nem se dignou a acusar o recebimento, quanto menos a publicar...]

Na edição de 19/5/97 esta seção ["Espaço Aberto"] publicou interessante artigo do Prof. Sílvio Meira, da UFPe. Nela, o Prof. Meira protesta contra possível decisão da Corte Suprema dos EEUU, que talvez introduza restrições à divulgação, pela Internet, de material pornográfico. Não pense o leitor que iremos nos posicionar contrários ao nosso colega. Queremos aqui chamar a atenção para o fato de que a questão não é tão trivial quanto ele coloca, merecendo mais reflexão e discussão, e aproveitamos para abordar outros problemas da Internet.

O Prof. Meira afirma, com razão, que existe uma liberdade total na Internet (se bem que, se não nos enganamos, já existem leis restritivas na Alemanha). Isso é uma absoluta novidade em termos de comunicações. Ele também afirma que "hoje já existem várias formas de impedir o acesso a determinados web sites da Internet." Só que ele não diz que esses meios devem ser introduzidos pelo próprio provedor do "site" (como sistemas de senhas de acesso) ou então instalados no computador do usuário por este próprio (como os chamados "filtros"). No primeiro caso, é ingenuidade crer que um provedor vá restringir de livre e espontânea vontade o acesso às informações que ele coloca à disposição. Essa situação lembra bem o caso das TVs. Enquanto deixarmos por conta das emissoras, elas nunca irão censurar-se, pois em geral elas não vendem programas, mas sim telespectadores aos anunciantes. Assim, quanto mais gente assistir aos seus programas violentos e com cenas de sexo melhor para elas. Só se os telespectadores se organizassem e boicotassem esses programas eles deixariam de ser transmitidos. Do mesmo modo, não se pode esperar que todos os locais públicos da Internet com material impróprio a crianças e jovens sejam providos de senhas. Além disso, que impediria uma criança de criar sua própria senha? Quanto aos filtros, se os pais não põem quase restrições ao que seus filhos vêm na TV, como se pode esperar que eles introduzam filtros em seus micros para impedir seus filhos de fazerem determinados acessos?

Liberdade é hoje em dia essencial ao ser humano. Só que ela só faz sentido se usada com critério e responsabilidade. Temos uma grande dúvida se a humanidade chegou ao ponto de poder contar com algo que involva uma liberdade irrestrita. Nesse sentido, a Internet pode ser uma manifestação de uma das possíveis atitudes negativas dos seres humanos: adiantar o futuro antes que estejamos maduros para isso. A atitude negativa oposta é muito mais freqüente: voltar ao passado, isto é, pensar, sentir e agir como se ainda estivéssemos em épocas anteriores. Manifestações disso abundam: racismo, nacionalismo, sexismo, fanatismo religioso, diminuição da consciência (como na propaganda), etc. Queremos deixar bem claro que admiramos profundamente a liberdade introduzida pela Internet. Ela parece maravilhosa, e deveria levar a uma maior responsabilidade e consciência. Mas temos dúvida se ela já é adequada à nossa constituição humana presente. Seria necessário mais experiência e reflexão para se chegar às conclusões do Prof. Meira, isto é, que é benéfico manter sua total liberdade.

Abordemos ainda brevemente dois outros problemas, ligados às crianças e jovens, já que a preocupação é com eles. A Internet, se usada educacionalmente, introduz uma espécie de Educação Libertária, isto é, o aluno ou criança em seu lar ou escola tem total liberdade de, através da rede, fazer o acesso a informações. No entanto, essas podem não ser próprias para sua maturidade e ambiente. Toda educação, no lar e na escola, tem sido tradicionalmente altamente contextual, isto é, teoricamente apropriada a quem a recebe. Os pais em geral escolhem os livros que seus filhos deveriam ler, escolhem os ambientes onde levá-los, etc. Os professores sempre dão aulas levando em conta a maturidade dos alunos, o que eles ensinaram ontem e na semana anterior, o que os outros professores estão ministrando, etc. Se uma criança ou jovem usa a Internet educacionalmente, entra em um sistema sem nenhum contexto em relação a ele. Elimina-se assim um aspecto fundamental da educação: a orientação, isto é, o fato dos adultos saberem melhor do que as crianças o que é bom e adequado para elas. Nossa recomendação é que se um pai acha indispensável que seu filho aprenda a usar a Internet (o que para nós é uma falácia), que pelo menos ele esteja permanentemente ao lado da criança ou jovem, orientando-o no uso.

Finalmente, mais um problema: a Internet exige um enorme esforço de auto-controle. O lixo informativo nela armazenado está crescendo exponencialmente. É preciso muito critério para uma pessoa concentrar-se e buscar apenas o que lhe é útil, não ser atraído por baboseiras perniciosas, e despender apenas o tempo necessário para obter as informações procuradas (quantos dos leitores cibernautas não vararam a noite ligados à Internet, sem um proveito mínimo?). Do ponto de vista de educação de nossos jovens, isso exigiria deles um auto-controle que deveria ser próprio de adultos.

Esses dois casos, liberdade exagerada e necessidade de auto-controle, forçam crianças e jovens a se comportar como adultos. Usando o título de um magnifico livro do Prof. Neil Postman, do Depto. de Comunicações da Univ. de New York, diríamos que o uso da Internet (e de computadores em geral, mas isso é um outro tema) por crianças contribui para o "desaparecimento da infância" - e da juventude também. O que tende a levar a futuros adultos aleijados emocional e psiquicamente. Um futuro socialmente ainda mais trágico do que o presente nos aguarda.

Valdemar W.Setzer foi Prof. Titular do Depto. de Ciência da Computação da USP, onde se aposentou. É consultor da PCA Engenharia de Software.
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