NÃO É POSSÍVEL ACABAR COM A VIOLÊNCIA NA TV

Valdemar W.Setzer
Depto. de Ciência da Computação,
Instituto de Matemática e Estatística da USP
vwsetzer@ime.usp.brwww.ime.usp.br/~vwsetzer

Texto original de entrevista publicada pelo jornal Calendário de Cultura e Extensão da Universidade de São Paulo, agosto de 2000, pp. 9-12. As perguntas, numeradas, foram elaboradas por Juliana Resende, da BR Press, que, para formulá-las, baseou-se em meu artigo "TV e violência, um casamento perfeito", disponível em meu "site". Versão de 25/8/00.

1) O conceito de que a TV é, por natureza, um veículo que necessita transmitir violência (devido à "irrealidade" das imagens) para atrair audiência não poderia justificar a falta de qualidade da maioria dos programas que brigam pelo Ibope?

Sim, de certa maneira a TV "necessita" transmitir violência. Cenas violentas simplesmente são as melhor transmitidas, pois os telespectadores estão normalmente em estado de sonolência, semi-hipnótico, como já foi demonstrado por pesquisas neurofisiológicas. Assim, seu pensamento consciente está praticamente inativo. Recomendo a um telespectador tentar acompanhar conscientemente qualquer programa, fazendo suas observações interiores com seu pensamento, criticando o que é visto ou dito, etc. Ele ficará exausto em pouco tempo, fora nem conseguir acompanhar a velocidade de mudanças de imagens, de tempo e de tema, e terá que "desligar" novamente seu raciocínio. A excessiva movimentação das imagens é feita conscientemente pelos diretores de imagem para que o telespectador não passe do estado de sonolência para o sono profundo (o que acontece freqüentemente com certas pessoas que têm uma "proteção natural" contra TV…), o que seria um desastre para os índices de audiência. Uma das maneiras de atrair a atenção é mudar constantemente as imagens. Outra, já que o telespectador está fisicamente passivo e com o pensamento abafado, é apelar para os sentimentos, daí as novelas e dramalhões, e também as cenas excitantes (esportes rápidos) e a violência. Em particular, como a imagem e o som são grosseiros, e a TV atinge principalmente os sentimentos, o resultado é que violência é o que mais atrai a atenção do telespectador e o que é melhor transmitido por esse veículo, que é incapaz de transmitir a delicadeza, a sutileza e calma. Como Neil Postman chamou a atenção em seu fantástico livro Amusing Ourselves to Death, a TV faz com que tudo se torne um "show" de movimento e gritaria, como a educação, a política, a religião, e até a ciência, como se via no programa "O Mundo de Beeckman".

Quanto à qualidade dos programas, é preciso ter uma mentalidade grosseira e mercenária para transmitir algo que se sabe que vai fazer mal às pessoas. Mas isso assume aspectos de crime se é dirigido a crianças e jovens, ou sabe-se que crianças poderão estar assistindo. O argumento de que os pais é que deveriam controlar é falacioso, pois esse controle acontece apenas em casos raríssimos. Justamente para evitar o problema do controle eu simplesmente não tive TV até minha filha menor tornar-se adulta. Minha filha mais velha me deu dois lindos netinhos; na casa dela a TV está escondida, e quando os pais assistem algo, o que ocorre raramente, é sempre depois de as crianças estarem dormindo. Considero os pais que colocam TV, videogame ou computador no quarto dos filhos verdadeiros criminosos da educação; espero que isso seja feito por ignorarem os prejuízos que esses aparelhos produzem em seus filhos (os que lerem esta entrevista não terão mais essa desculpa...).

É preciso entender que a TV não vende programas, vende audiência para os anunciantes, isto é, o leitor destas linhas, quando estiver assistindo a um programa, deve ter consciência de que está se vendendo, virou mercadoria. Se os produtores de TV têm mentalidade grosseira e mercenária, e precisam vender audiência, que se esperaria de seus programas? Vão transmitir o que mais prende a atenção da audiência e o que é melhor transmitido pelo aparelho, isto é, violência. Se eles transmitirem o contrário, como um calmo carinho, sem grandes emoções, os telespectadores adormecerão ou mudarão de canal.

2) Se a TV não é capaz de ensinar quase nada, então os Telecursos são perda de tempo?

Acho que são perda de tempo e de muito dinheiro, e portanto são uma enganação. Veja como sistemas audio-visuais não vingaram nas escolas. Se eles não deram certo, como é que se poderia esperar que dessem certo no lar? Posso admitir que certos jovens aprendam alguma pouca coisa, mas não terá a continuidade que ocorre nas salas de aula, e provavelmente aprendem com os textos que acompanham os telecursos, e não com as imagens recebidas. Os cursos a distância pela Internet não estão tendo o sucesso esperado; a sua evasão é enorme. Um fator essencial da educação é que ela deve desenvolver capacidades e habilidades sociais, artísticas, manuais e intelectuais. A TV não educa, transmite dados que nem podem ser absolvidos como informação pois em geral nem passam pelo consciente da pessoa. Informação é dado compreendido pela pessoa que o recebe. Se o receptor não pode pensar no que está recebendo, grava tudo em seu subconsciente sem elaborar o conteúdo. Como a TV exige uma atitude de passividade por parte de telespectador, ela não pode desenvolver nenhuma habilidade. O que ela faz é um condicionamento, e é fácil verificar isso. Em 1999, foram gastos 11 bilhões de dólares em propaganda no Brasil. Pois a metade disso foi para a TV! Grandes empresas não gastariam centenas de milhões de dólares em propaganda pela TV se isso não funcionasse, isto é, se não induzisse o telespectador a comprar o produto anunciado. (A propaganda é a arte de induzir as pessoas a comprar o que não necessitam ou o que é mais caro; o simples anúncio de que um produto existe é promoção, não é propaganda - esta, caracterizada por anúncios bombásticos, dizeres que o produto é o melhor do mercado, etc. ). Portanto , a TV condiciona, não educa. Um outro fator essencial da educação é que ela exige a participação do educando, e deve ser altamente contextual, isto é, levar em conta o aluno e a classe: o que foi aprendido antes, a maturidade, o momento social, etc. Isso inexiste na TV e no computador, incluindo a Internet.

Do ponto de vista educacional, admito o uso de vídeo como ilustração a certos assuntos, como geografia, botânica, zoologia, etc. Mas isso deveria ser feito em períodos muito curtos, de poucos minutos, seguindo-se discussão sobre o que foi visto, revendo-se as imagens novamente, etc. Porém, idealmente isso só se aplica no nível do ensino médio, talvez no mínimo a partir da 7a. série do fundamental.

3) Se as propagandas ficam gravadas no subconsciente das pessoas, mensagens educacionais também não ficariam?

Sim, as propagandas ficam gravadas no subconsciente, e é por isso que funcionam tão bem.

"Mensagens educacionais" não existem. Se é para ser educação, não pode ser uma simples mensagem, deve haver participação das crianças ou, já na juventude, discussão, comentários, esclarecimento quanto à razão e a justiça desses pontos de vista. Essas "mensagens educacionais" são na realidade condicionamentos que se impingem nos telespectadores, e portanto roubam-lhes a liberdade. Não acho que se possa atingir objetivos nobres por meios ignóbeis, isto é, para mim os meios não justificam os fins, devem é identificar-se com eles.

4) Se a maior arma das emissoras para atrair audiência é o sentimento, qual seria, na sua opinião, uma saída para elevar o nível de programação da TV aberta brasileira?

É impossível elevar o nível da programação da TV, aqui ou em qualquer lugar. Isso foi tentado pelo primeiro governo socialista da França, acho que de Miterrand. A grita foi geral. Uma telespectadora disse, em entrevista ao "France Soir": "Para o inferno a cultura! Existem outros meios de transmitir cultura!" É isso aí, a TV simplesmente não é um meio adequado para se transmitir cultura. Se houver um programa realmente cultural, todos os telespectadores irão adormecer, ou mudar de canal. Note-se como concertos são transmitidos: a imagem fica saltando rapidamente de um violinista para os braços do maestro, para o flautista, para o timpanista, etc. Mas nesse caso o importante é a música, não o visual! Se a imagem parar, o telespectador vai adormecer ou achar que o programa é cacete demais. Vejam-se programas de museus: a imagem nunca pára num quadro ou objeto, para o telespectador poder apreciá-lo calmamente. O mesmo com programas históricos ou geográficos. Essa mudança constante de imagem é uma imposição do aparelho, pois em caso contrário ele induziria não sonolência, mas sono profundo.

5) A linguagem rápida dos videoclipes e da MTV não contribuem para aguçar os reflexos do telespectador? Não podem funcionar como "despertadores" de consciência ou sentimentos, ou até mesmo ações?

Como aguçar reflexos, se o telespectador está fisicamente passivo? E se aguçasse reflexos, como no caso do videogame, que reflexos são esses? São reflexos de se ajudar alguém ou atirar nele?

6) Recentemente o Brasil assistiu, estarrecido, o seqüestro do ônibus no Rio de Janeiro, seguido de um assassinato em frente às câmeras. Até onde vai o jornalismo e onde começa o "show de horrores" para atrair audiência? Comente.

Um jornalismo calmo, sadio e verdadeiramente informativo faria os telespectadores adormecer. Quanto mais horrores, mais despertos eles ficarão. O que você acha que os mercenários produtores de TV vão escolher, para manter a audiência? Note-se que as TVs educativas, onde poder-se-ia esperar a ausência desse mercenarismo, também têm a preocupação de conquistar audiência, pois se não o fizerem não justificam os seus gastos. Com isso, têm que se adaptar às necessidades do aparelho: movimento, emoções fortes, violência.

7) Como o sr. avalia o trabalho do grupo Tver?

Não o conheço. Tenho TV, mas nunca a assisto. Se for um programa, por favor, indique-mo para eu poder assiti-lo e formar uma opinião.

Conheço o movimento TV BEM - Instituto de Defesa do Telespectador, do vereador Betinho Duarte, de Belo Horizonte (betinho@ongnet.psi.br). Mas ele também não chega ao meu ponto, de recomendar que não se tenha TV. Esses movimentos não percebem que a TV é prejudicial em si, ou não têm coragem de assumir a atitude radical necessária. Acontece que em educação muitas vezes não há meios termos: quantos pais deixam suas crianças pequenas beber álcool, tomar drogas, dirigir carros? Se algo é prejudicial para as crianças, deve ser evitado ou proibido (pelos pais), e ponto final.

8) Se as TVs, por si só, não vão mudar sua programação, então, o código de ética - ou a auto-regulamentação - proposto pelo governo é uma balela?

Completa. Se, como eu disse, as estações vendem audiência a seus programas, vão sempre transmitir o que der mais audiência. Como violência e sexo é o que mais atrai a atenção do telespectador é isso que será transmitido.

No relatório "Cadernos UNESCO Brasil", de 1998, constata que 93% das crianças incluídas no estudo tinham acesso a um aparelho de TV. Essas crianças passam "50% mais tempo ligadas a esse meio de comunicação do que em qualquer outra atividade não escolar, incluindo elaboração de deveres de casa, convívio com a família ou amigos, ou leitura." Crianças ficam "fascinadas pelos heróis agressivos disseminados pela mídia. Alguns deles, como "O Exterminador" de A.Schwarzenegger, tornaram-se ídolos conhecidos por 88% das crianças em todo o mundo. ... Quase um terço do grupo que vive em ambientes agressivos acredita que a maioria das pessoas do mundo são más, enquanto pensa assim um quinto das crianças inseridas em ambientes de baixos índices de agressividade."

9) O sr. tem resultados sobre o movimento pelo desligamento das TVs que ocorreu nos EUA?

Conheço o movimento, que já é antigo, mas não sei dos resultados. Só que esse movimento sugere que as pessoas desliguem o aparelho num determinado dia; nem sei se já evoluíram para uma semana. Ora, se é bom desligá-lo por um dia ou uma semana, obviamente muito melhor seria desligá-lo definitivamente. Notem como os americanos, especialistas em vender, não se arriscam a fazer uma campanha em grande escala para simplesmente não se ter TV. O vereador Betinho e outros movimentos querem melhorar os programas, o que está absolutamente fadado ao insucesso.

10) A TV é uma droga? Se sim, pode, de fato, influenciar no subconsciente de alguém que cometa um assassinato?

Sim, a TV tem o efeito de droga pois altera o estado de consciência e vicia. O título de um dos primeiros livros contra a TV, The Plug-in Grug ("A droga que se liga na tomada"), de Marie Winn, dedicado a demonstrar que a TV, e em especial "Vila Sésamo", não tem efeito educativo, aponta justamente para essa característica. Em artigo no Journal of the American Medical Association (June 10, 1992), B.S. Centerwal demonstra estatisticamente que o número de homicídios aumenta proporcionalmente ao número de aparelhos de TV instalados 15 anos antes em áreas que não os tinham. Esse foi o primeiro estudo sobre indução de violência a longo prazo. Ele diz que, hipoteticamente, se não houvesse TV nos Estados Unidos, haveriam naquela época dez mil homicídios por ano a menos. Já houve inúmeros trabalhos científicos demonstrando que programas violentos aumentam a agressividade imediata e a médio prazo. John Naisbitt, em seu último livro, de 1999, High Tech, High Touch, menciona um relatório da American Academy of Pediatrics de que "aproximadamente mil [!] estudos científicos confirmam uma correlação entre comportamento agressivo em crianças com violência nos meios de comunicação."

Não é difícil entender por que existe esse condicionamento para a violência a médio e a longo prazo. Tudo o que o ser humano vivencia, consciente ou inconscientemente, é gravado em sua memória consciente ou subconsciente. Portanto, todas as cenas de violência, de desrespeito ao ser humano e à natureza, ficam gravadas. Em um momento de inconsciência ou de emergência, essas imagens podem induzir a uma determinada ação. É por isso que a propaganda funciona. O livro de Jerry Mander Four Arguments for the Elimination of Television começa justamente com uma consideração de como a propaganda pela TV induz o comportamento das pessoas. Se a propaganda faz isso, por que a violência não haveria de fazê-lo?

Gostaria de aproveitar a pergunta e falar sobre o efeito dos videogames violentos. Estes são muito piores do que a TV em termos de induzir atitudes violentas. Recomendo o capitulo "The Nintendo-Military Complex", do livro de John Naisbitt citado acima, onde ele faz um relato impressionante de como esses joguinhos foram desenvolvidos em cooperação com os militares, para substituir exercícios reais de guerra, e como eles influenciaram os jovens que cometeram massacres em escolas americanas. Por exemplo, ele cita o caso de uma escola na cidade de Paducah, em Kentucky, onde em 1998 um jovem de 14 anos entrou numa classe e matou 8 crianças. Acontece que esse jovem jamais tinha atirado com uma arma antes, e aprendeu a atirar com videogames, em casa e em fliperamas. Em geral, como as pessoas levam algum tempo a cair, o "normal" é dar vários tiros em cada uma. E como ele atirou? De uma maneira que ninguém inexperiente faria: deu um só tiro em cada criança, na cabeça ou na parte superior do tórax. Deu 8 tiros, e acertou todos os 8. Naisibitt entrevista um militar, que estudou o caso, que chamou a atenção para o seguinte: quando alguém aprende a caçar, sempre é ensinado a nunca apontar uma arma para um ser humano. Os policiais e militares andam com armas, mas raramente as usam. Mas o que faz o jogador de um videogame violento? Sai atirando sem parar, desde o começo até o fim. Como o jovem de Paducah, aprendem a acertar e não desperdiçar um só tiro, pois perderiam pontos. O citado militar chama a atenção para o fato de que policiais altamente treinados acertam menos de um tiro em cada cinco, de 6m de distância. Interessante é a observação de Naisbitt, de que está havendo uma solução tipicamente americana para esse problema americano: os pais das vítimas estão acionando indústrias da mídia em 130 milhões de dólares, alegando que ele imitou uma cena do filme "Baketball Diaries" e os videogames Doom e Quake. Quem sabe se essa atitude se espalhar essas indústrias vão ter que deixar de ser tão mercenárias, como está acontecendo com a indústria do fumo...

Qual a semelhança entre um videogame e a TV? É que ambos forçam um desligamento do pensar consciente. No caso do primeiro, um tal pensar, sendo muito lento, faz com que o jogador perca pontos, isto é, o joguinho força ações automáticas. Pelo contrário, o normal de um adulto é pensar nas conseqüências de seus atos antes de agir. E qual a distinção entre os jogos e a TV? É que esta condiciona subliminarmente, gravando imagens no subconsciente do telespectador, que fica passivo. Já o videogame condiciona através de atos inconscientes, o que é muito pior. Uma imagem pode redundar em várias ações diferentes, mas o joguinho treina e condiciona as ações que serão depois praticadas.

Os pais que deixam seus filhos usar joguinhos violentos deveriam ser considerados, em minha opinião, como cúmplices de qualquer ação criminosa feita pelos seus filhos.

11) Conte sua experiência de não ter TV em casa. O sr. ainda não possui um aparelho?

Eu não tive TV até minha filha menor tornar-se adulta, o que se deu em no começo da década de 90, uma época em que os programas não eram tão exageradamente ruins quanto agora. Depois disso comprei uma, pois meu filho fazia equitação e precisava examinar seus saltos usando vídeo, mas arrependi-me, pois algumas vezes tive que discutir com meus filhos para que não assistissem, principalmente bobagens. Francamente, o mais fácil é não ter, pois aí não há necessidade de se lutar contra o aparelho. Ou, se é para ter, o aparelho deve ficar trancado, e somente ser ligado para se ver algo muito especial, trancando-se-o novamente em seguida (os leitores podem tentar isso e ver como terão dificuldades em desligá-lo, tendo assim uma idéia de como ele agarra as pessoas). Agora eu tenho um, mas não me lembro quando foi ligado a última vez - acho que foi para meu filho assistir um jogo de futebol de seu time preferido (mas que idiotice, ainda se fosse para jogar, mas ficar vendo uma imagem virtual de um bando de pessoas "pensando com os pés", correndo atrás de uma bola e fazendo de seus pés martelos em lances violentos...). Cheguei a ter TV a cabo, que eu assistia enquanto fazia exercício com bicicleta ergométrica, mas como isso me deu uma inflamação na próstata (bicicleta não é para homens), passei a correr na rua e senti um alívio imenso de não ver mais TV, pois eu tinha 8 canais na memória do controle, os estrangeiros e a TV Cultura, e às vezes tinha que ficar continuamente passando pelos 8 sem achar nada que não fosse profundamente idiota, só com cosmético e sem conteúdo. Aliás, aí fiquei conhecendo o "Castelo Rá-Tim-Bum". Acho incrível considerar-se esse programa próprio para crianças. Enfim, cancelei a TV a cabo pois pagava sem aproveitá-la.

Na época em que minhas crianças eram pequenas, nunca uma delas reclamou de não termos TV, pois simplesmente não fazia parte do seu ambiente. Elas eram fantasticamente criativas, sempre inventando novas brincadeiras, ao ponto de as crianças da vizinhança adorarem vir brincar em nossa casa. Crianças, quando não deturpadas por TV, videogames e computador, são extremamente fantasiosas e criativas (e não ocorre o "mamãe, o que faço agora?"). O que significa ser fantasioso? Significa criar uma imagem interior. Ser criativo significa concretizar essa imagem interior produzindo algo no mundo. Pois bem, esses 3 aparelhos já vêm com as imagens prontas do exterior, de modo que não há nada para ser fantasiado interiormente. Compare-se com ouvir uma história ou ler um livro: em ambos os casos, é necessário imaginar o ambiente e os personagens (se for um livro filosófico ou científico, é necessário associar conceitos), o que se faz através de pensamento ativo. Em minhas palestras sobre meios eletrônicos eu costumo dizer: "Os senhores querem desenvolver seu pensamento? Então leiam. Querem prejudicar seu pensamento, perdendo a capacidade de pensar? Pois vejam TV ou joguem videogames." (O computador prejudica o pensamento não por eliminá-lo, mas por forçar um pensamento extremamente unilateral, o lógico-simbólico, algorítmico, um pensamento que denomino de "maquinal".)

12) Quais são seus critérios para escolher assistir a um programa de TV?

Eu nunca assisto. Se houvesse algo muito especial, talvez eu assistisse, mas francamente isso praticamente nunca ocorre. Se eu jogasse na bolsa, talvez usasse para ver as cotações, mas esse não é o caso. Os noticiários são ridículos: uma vez eu li que o total falado pelos locutores em um desses noticiários dá uma coluna de um jornal, ou coisa semelhante. Prefiro muito mais ler as notícias no dia seguinte, no jornal - para que saber de algo pouco depois de ter acontecido, ou acompanhar "ao vivo"? Às vezes ouvintes de minhas palestras dizem: "Mas eu não tenho tempo de ler jornal!" Ao que retruco: "Então sua vida está profundamente errada." Aliás, não consigo imaginar-me perdendo tempo vendo TV. Há tanta coisa para ler, escrever, tanto para conversar com minha esposa! Nunca retirei um filme numa video-locadora. Se é para ver um bom filme, prefiro ir ao cinema: a imagem é muito maior e rica em detalhes, existe todo o ritual de sair de casa, etc. A imagem da TV é muito grosseira, tendo somente 150.000 pontos; por isso nas novelas e nos filmes para a TV os atores aparecem sempre só de rosto - se fosse focalizados de corpo inteiro, a expressão do rosto se perderia, e é por aí que eles transmitem os seus sentimentos.

13) É possível eliminar a TV do cotidiano do brasileiro, 50 anos após sua criação e êxito como o maior veículo de comunicação de massa? Se não, como amenizar seus efeitos negativos?

Em princípio, sou contra proibições. Acho que isso é uma questão educacional, isto é, as pessoas deveriam conscientizar-se de que a TV deve ser jogada fora (não se deve dá-la para os amigos, talvez para os inimigos…) ou, no máximo, mantê-la trancada, como sugeri acima. Ela não deve de modo algum ficar na sala de estar, pois as pessoas não terão energia interior suficiente para não ligá-la. Na sala de jantar, então, nem se fala. Imaginem os distúrbios digestivos que ela causa! E o pior lugar, como eu disse, é no quarto das crianças e jovens.

É impossível amenizar os efeitos negativos da TV. Já li várias recomendações de que os pais devem assisti-la junto com seus filhos, comentando e criticando os programas. Mas isso simplesmente não funciona com crianças pequenas, pois se estaria tratando-as como adultas. Aliás, a aceleração do desenvolvimento é um dos aspectos mais perniciosos da TV, do videogame e do computador. Em educação, não se pode queimar etapas. Vejam-se o livro "O Desaparecimento da Infância" de Neil Postman quanto a esse efeito dos meios de comunicação, e meus artigos em meu "site" quanto aos outros dois meios.

14) A internet é a TV do futuro?

Não me parece haver sentido em uma TV realmente interativa, pois ela é um veículo de comunicação de massa (e, portanto, massificante!). A interatividade individual, incluindo imagem de vídeo, é fornecida pela Internet. O fato da TV comercial passar a ser transmitida via Internet provavelmente não mudará suas características.

Acho que está havendo uma grande onda em torno da Internet. Espero que um dia esta passe a ser o que realmente é: um instrumento útil para se transmitir e obter dados (estas repostas foram passadas pela Internet). Espero que as pessoas deixem de usar a Internet como lazer. Aliás, que mundo cão em que vivemos! Considerar que assistir TV é um lazer mostra a degeneração a que chegamos. Lazer deveria ser uma atividade construtiva social, artística e intelectualmente, e não destrutiva nesses 3 âmbitos, como a TV, o videogame e o computador o são. Em particular, somos normalmente obrigados a pensar pensamentos desagradáveis, devido ao trabalho, ao ambiente agressivo das cidades e do trânsito, etc. O que deveríamos fazer no lazer é exercer atividades que nos levassem a uma verdadeira higiene mental, isto é, pensar pensamentos de bondade, de justiça, de beleza, de carinho. Em lugar disso, as pessoas submetem-se à violência da TV e dos joguinhos, e a pensamentos de máquina (isto é, que podem ser dados à máquina sob forma de comandos, e interpretados por ela), no caso dos computadores, poluindo assim seus pensamentos ainda mais. Que mundo cão!

Gostaria, finalmente, de me colocar à disposição para dar palestras ou participar de debates em qualquer local, sobre esses e outros assuntos (ver lista de palestras em meu "site", www.ime.usp.br/~vwsetzer, onde podem ser encontrados inúmeros artigos sobre vários temas de interesse geral).