Entrevista para o jornal eletrônico O Estado RJ Online

Perguntas formuladas por Andréa França

Valdemar W. Setzer
Depto. de Ciência da Computação, Instituto de Matemática e Estatística da USP
www.ime.usp.br/~vwsetzer

(Este texto foi enviado para o jornal em 21/12/10; ver o texto publicado em 11/1/11)

1- Até que ponto as tecnologia pode prejudicar o desenvolvimento de uma criança?

Podem prejudicar irremediavelmente. Por exemplo, todos os meios eletrônicos têm um efeito parecido com as drogas psicotrópicas: prejudicam a força de vontade, tanto de adultos como de crianças e jovens. No caso destes últimos, o resultado é catastrófico, pois eles deveriam estar desenvolvendo sua capacidade de determinar seus objetivos e esforçar-se para consegui-los. É muito simples qualquer leitor verificar esse efeito em si próprio, por exemplo com a TV: note como não é necessário fazer esforço nenhum para continuar assistindo-a; ao contrário, é preciso exercer uma tremenda força de vontade para desligá-la. É esse abafamento da força de vontade que leva muitas pessoas a passarem horas jogando jogos eletrônicos ou usando a Internet em atividades sem nenhum valor. A TV não é um veículo educativo, e sim condicionador. Por isso houve um casamento perfeito entre a TV e a propaganda; 2/3 dos gastos desta no Brasil vão para a TV, porque funciona. Após assistir um comercial de um produto várias vezes, a pessoa incorpora aquela mensagem em seu subconsciente e posteriormente quer ter aquele produto e não sabe porque. Assim, temos mais um efeito dos meios eletrônicos: prejuízo para a liberdade. Essa é mais uma capacidade que as crianças e jovens deveriam desenvolver paulatinamente até que, aos 21 anos, possam exercê-la plenamente. Se o jovem acostuma-se a ser condicionado, e agir a partir desse condicionamento, como desenvolverá sua capacidade de agir livremente?

Esses são apenas dois efeitos negativos para o desenvolvimento de crianças e jovens. Veja-se meu artigo, em meu site, "Efeitos negativos dos meios eletrônicos em crianças e adolescentes" para uma descrição de 19 deles, com farta referência bibliográfica mostrando que minhas conclusões conceituais foram comprovadas por estudos científicos. Cito aqui mais um: está mais do que provado que, em média, quanto mais uma criança ou adolescente usa um computador (incluindo a Internet), pior o seu desenvolvimento escolar. O argumento que se usa para justificar isso é a perda de tempo com esse meio. Pois eu vou muito mais a fundo, e mostro que a influência sobre a maneira de pensar prejudica a imaginação e, portanto, a criatividade. Um dos aspectos dessa última é a capacidade de resolver problemas.

2- Quais os efeitos negativos e positivos da tecnologia?

Na pergunta anterior citei 3 efeitos negativos. Há muitos mais, como pode ser estudado em meus artigos em meu site, especialmente o citado acima. Há também efeitos positivos; eu não os abordo pois só se fala deles, e eu sou um dos pouquíssimos que fala dos efeitos negativos. É preciso reconhecer que não há neste mundo nada 100% negativo ou 100% positivo. Por exemplo, a TV com vídeo poderia ser usada na escola quando é necessário fazer alguma ilustração, como o caso da vida dos animais. Mas essa ilustração tem que levar em conta o efeito negativo da TV de colocar normalmente os telespectadores em estado de sonolência; portanto, a apresentação deve ser bem curta, de poucos minutos, para em seguida discutir-se o que foi visto e então rever o vídeo e discuti-lo novamente. Aí o conteúdo é gravado no consciente, e não no inconsciente como no uso comum que se faz da TV. Um outro exemplo: em uma das minhas inúmeras palestras, uma pessoa me disse que tinha um filho que aprendeu inglês jogando jogos eletrônicos. Certamente esse é um efeito positivo. Mas a pergunta que cabe nesse caso é a seguinte: existem outros meios mais sadios de se aprender inglês e sem os terríveis efeitos negativos dos jogos eletrônicos? Um exemplo de um desses efeitos trágicos é que os jogos violentos são os mais preferidos pelos jovens (principalmente do sexo masculino), e está mais do que provado cientificamente que violência na TV e nos video games gera agressividade a curto, médio e longo prazo, tanto no laboratório como na vida real; ela pode manifestar-se desde uma agressão verbal até o homicídio (que, felizmente, é muito raro, pois há uma repulsa natural de se matar outra pessoa). Os jogos eletrônicos violentos são muito piores do que a TV pois eles condicionam pelas ações, e não só pelas imagens, como é o caso da TV. Estados de abafamento da consciência, como o estresse, a falta de sono, o nervosismo e a raiva, podem levar uma pessoa a agir conforme foi condicionada por esses meios. Isso é particularmente trágico no caso de crianças e adolescentes, que ainda não desenvolveram a autoconsciência e o autocontrole. Um outro desenvolvimento essencial de crianças e jovens são a sensibilidade social e a compaixão. Está mais do que provado de que jogos e programas violentos na TV dessensibilizam jovens e adultos, isto é, prejudicam aquelas capacidades sociais essenciais para a humanidade. Em particular, a sensibilidade social é essencial para qualquer sucesso profissional, como mostrou muito bem Daniel Goleman em seu livro Inteligência Emocional.

Uma de minhas teses é a seguinte: os efeitos positivos dos meios eletrônicos são ultrapassados infinitamente pelos efeitos negativos.

3- Nos dias de hoje é muito comum os pais darem aos filhos pequenos laptops e celulares. Você acha correto essa atitude?

No caso dos laptops essa atitude é um crime que se comete contra a infância e a juventude. Se os meios eletrônicos não existirem em casa (como foi o meu caso com a TV; na época em que meus filhos eram pequenos os outros não existiam), o uso pelas crianças e jovens será muitíssimo menor. Ou, se existirem, não devem ser usados pelas crianças e adolescentes. Os dois casos extremos da pior situação é quando há esses aparelhos no dormitório dos filhos, ou eles poderem usar um celular ou laptop fora de casa para se conectarem com a Internet, jogarem jogos ou até verem TV. Nesses casos, não existe nenhum controle por parte dos pais. O prejuízo para a atenção e a capacidade de concentração na aula é tão grande que muitas escolas proíbem os alunos de trazer telefones celulares para a escola. Como pode ser visto em meu artigo sobre o projeto "Consideraçãoes sobre o projeto 'um laptop por criança'", várias escolas americanas proibiram que seus alunos trouxessem seus computadores para a escola, devido ao prejuízo para o aprendizado. Infelizmente, nosso governo ignorante preocupa-se muito mais com sua popularidade e com a política do que com ações educacionais efetivas, e continua a tentar concretizar esse projeto absurdo. O que crianças e jovens mais gostam de fazer? Brincar e se divertir, o que é muito sadio. O que eles farão com seus laptops? Vão brincar e se divertir; nenhuma criança ou adolescente vai usar um computador para coisa séria, a não ser que seja forçado a isso. No entanto, o único princípio educacional por detrás desse projeto é que, dando-se um laptop para cada criança, esta vai automaticamente aprender mais. Só que esse princípio é falso.

É óbvio que não sou contra dar-se um telefone celular para um jovem, desde que seja bloqueado qualquer acesso que não seja o telefônico, para comunicação com os pais.

Várias pessoas acham irreal minha proposta de não se dar às crianças e adolescentes acesso aos meios eletrônicos. Notem que estou falando em dar. É lógico que é impossível evitar totalmente o uso desses meios, pois eles podem ser usados em casa de amiguinhos ou no laboratório de informática de escolas que não têm consciência do crime educacional que estão cometendo. No entanto, não tendo em casa, e escolhendo uma escola com um bom método educativo e, portanto, que não use computadores no ensino (a não ser para ilustração, analogamente à TV, como sugeri), como é o caso das escolas Waldorf, é possível evitar bastante os prejuízos que necessariamente advêm do uso dos meios.

Muito do uso de meios eletrônicos na educação é pura mania de modernismo, e não se baseia em métodos e filosofias educacionais comprovadamente efetivos.

4- Quais os perigos da Internet para as crianças? Como os pais devem se portar diante dela?

Há um livro somente sobre isso, cuja tradução eu recomendei à editora: trata-se de "Como Proteger seus Filhos na Internet", de Gregory Smith. Leia-se em meu site a minha resenha sobre ele, cujo título é "Como proteger seus filhos e alunos DA Internet". Smith cita muitos casos de ocorrências trágicas devido ao uso da Internet por crianças e adolescentes. Seu ponto principal está absolutamente correto: toda criança ou adolescente é ingênua e, portanto, sujeita ao que ele chama de "predadores". Ele recomenda duas ações: a instalação de programas de controle e monitoramento de acesso à Internet, e que se faça um contrato com o jovem, assinado por ele e pelos pais, constando o que ele pode ou não fazer na Internet bem como as penalidades se o contrato não for respeitado; Smith dá um exemplo de um tal documento. Acho que a partir de uns 12 anos de idade isso já pode ser feito. Mas, como ele diz, as penalidades (como, por exemplo, ficar sem usar a Internet durante uma semana), devem ser cumpridas rigorosamente. Quero chamar a atenção para o fato de que é facílimo controlar o uso do computador pelos filhos em casa: é só não dar a eles a senha de acesso ao sistema operacional (Linux, MAC-OS, Windows). Gregory Smith recomenda instalar um programa que permite o uso do computador, por cada usuário que tenha sua própria senha, somente em horários pre-determinados. O número de jovens que exageram o uso do computador e da Internet é imenso; isso ocorre com adultos, imagine-se então com crianças e adolescentes! Um dos problemas de uso dos celulares com acesso à Internet é que não é possível instalar neles programas de controle de acesso e de monitoramento.

Na verdade, o único meio de proteger 100% as crianças e adolescentes é ficar ao lado deles ao usarem a Internet. Reconheço que isso é dificílimo com adolescentes, mas estes já podem entender que os perigos que correm são muito grandes – as estatísticas mostram que a porcentagem deles que já sofreu ataques ou viram coisas indesejadas pela Internet é altíssima. Assim, um esclarecimento dos problemas pode ajudar nesse caso; espero ter contribuído com argumentos em meus artigos e livros. Reconheço também que é dificílimo mudar um hábito, já instalado, de uso da Internet em total liberdade; o correto é começar o controle quando as crianças são pequenas, ou quando os filhos começarem a usar o computador. No entanto, repito que não há necessidade desse uso; todos os problemas são evitados se ele não existir, pelo menos em casa, e fora dela por meio de uso de um aparelho que pertença à criança ou ao adolescente.

5- Você acha que o uso excessivo da tecnologia acaba substituindo a infância das crianças?

Não se trata de substituir a infância, trata-se de eliminar. Um dos efeitos negativos mais trágicos de todos os meios eletrônicos é acelerar o desenvolvimento inadequado do intelecto e da sexualidade. Esse desenvolvimento deveria ser gradual, acompanhando o desenvolvimento geral da criança e do adolescente. Essa aceleração produz resultados catastróficos, pois causa um desequilíbrio geral no pensar, no sentir e no querer. Por exemplo, o jovem pode ter sua capacidade de imaginação prejudicada, pode fechar-se na adolescência preocupando-se demais consigo próprio, pode perder a capacidade de concentração etc. A respeito do último ponto, acho incrível professores e pais acharem uma maravilha o costume das crianças e jovens de hoje de conseguirem fazer várias coisas ao mesmo tempo. Isso significa agitação interior e prejuízo para a concentração mental, uma das capacidades essenciais que a educação deveria justamente desenvolver. Como um jovem acostumado com essa agitação vai conseguir prestar atenção numa aula calma? Ou como ele vai conseguir concentrar-se e ler ou estudar um livro?

Uma das minhas bases para as conclusões sobre os efeitos negativos dos meios eletrônicos em crianças a adolescentes é a pedagogia Waldorf, que tem tido sucesso desde sua introdução em 1919 por Rudolf Steiner. Há cerca de 25 escolas dessas no Brasil, e dezenas de creches e jardins de infância. Justamente uma de suas bases fundamentais é o conceito e a prática de que existe idade adequada para tudo, e que a aceleração de qualquer desenvolvimento prejudica a necessária harmonia física e psicológica. Qualquer escola Waldorf digna desse nome não usa meios eletrônicos até o ensino fundamental, e mesmo aí o uso é extremamente restrito. Visite-se uma dessas escolas para se ver o resultado positivo desse tipo de educação, que respeita o desenvolvimento de cada aluno. É preciso ir preparado para se ver resultados educacionais absolutamente surpreendentes e, ao visitar um jardim de infância, não se querer voltar a ser criança...

Não há mais nenhuma dúvida que estamos destruindo irremediavelmente a natureza que é a base para nossa vida. É muito importante pais e professores se conscientizem de que os meios eletrônicos significam uma destruição da infância e da juventude, isto é, da própria futura humanidade.