O COMPUTADOR COMO INSTRUMENTO DE ANTI- ARTE

Valdemar W.Setzer

www.ime.usp.br/~vwsetzer
Departamento de Ciência da Computação
Instituto de Matemática e Estatística da USP

 

Resumo

Neste ensaio, baseado em uma palestra proferida no Museu de Arte Contemporânea da USP em 3/4/96, discutimos o papel do computador como instrumento de criação artística. Para podermos enfocá-lo corretamente nessa ou em outras aplicações, é necessário caracterizar brevemente o que ele é e como empobrece as informações por ele processadas. Em seguida, fazemos uma caracterização da arte, confrontando-a com a ciência, e examinamos as maneiras de usar um computador como instrumento artístico, a fim de determinar em que áreas da arte é válido usar essa máquina. Segue-se uma breve incursão no problema do uso de computador no ensino de atividades artísticas e concluímos com considerações sobre a educação da atitude social e o papel da arte e do computador nesse processo.

0. Introdução

Como veremos adiante, o computador é uma máquina abstrata. Parece portanto natural que a arte tenha começado a se utilizar dele, pois ela tem se afastado cada vez mais da esfera dos sentimentos, através do senso estético, e do figurativismo, tendo se dirigido para a das abstrações dos pensamentos formais, tentando aproximar-se da atividade científica, que tanto sucesso aparente tem revelado neste século. A tendência desta à eliminação do subjetivo também pode ser encontrada em tendências artísticas. Não é à toa que Willy Correa de Oliveira escreveu um livro com o título "Beethoven - Proprietário de um Cérebro" (Perspectiva, S.Paulo 1979) e não "... possuidor de um coração" - ou pelo menos de ambos...Veremos como o computador é um instrumento ideal para o desenvolvimento dessa tendência de encarar a arte como ciência. Teremos que iniciar com uma breve descrição do que vem a ser um computador.

1. O computador

Todas as máquinas que não são computadores têm como finalidade principal transformar, transportar ou armazenar matéria ou energia. Por exemplo, um torno serve para transformar um pedaço de madeira ou metal em um objeto de secções circulares, um veículo serve para transportar objetos ou pessoas, uma bateria para armazenar energia elétrica. Mesmo uma máquina protética como o telescópio serve para transformar a energia luminosa, ampliando a imagem.

Por outro lado, o computador também exerce aquelas três ações, mas não mais com matéria ou energia, e sim com dados. Vamos caracterizar aqui dados como informações introduzidas em computadores, isto é, como um subconjunto próprio do que podemos entender como "informações." De fato, a antipatia ou simpatia que sentimos por uma pessoa pode ser encarada pessoalmente como uma informação sobre ela e sobre nós próprios; no entanto, é impossível descrever-se com exatidão esse tipo de informação, que envolve sentimentos. É possível armazenar em um computador uma descrição verbal desses sentimentos, o que já representa um empobrecimento dos mesmos, mas se se desejar processá-los transformado-os pela máquina, eles terão que ser tratados como símbolos formais, por exemplo, introduzindo-se uma graduação numérica entre - 3 (muito antipática) e +3 (muito simpática) - o que representa um empobrecimento ainda maior. É interessante notar que o computador é uma máquina puramente sintática, onde todos os dados - e os programas - estão descritos de maneira puramente estrutural, sem nenhuma semântica.

É importante fazer aqui uma distinção necessária entre o armazenamento de textos, imagens e som, que são pura e simplesmente reproduzidos, talvez com alguma edição da sua forma (por exemplo, alinhamento de parágrafos, saliência de contrastes em fotos, eliminação de ruídos), e o processamento de dados. Consideraremos este último como um tratamento que se dá aos dados, transformando seu conteúdo, isto é, a semântica que associamos aos mesmos. Por exemplo, traduzir textos de uma língua para outra, extrair características de estilo de autores em pesquisas de lingüística computacional, gerar desenhos a partir de programas como no conhecido caso dos fractais, etc.

Uma de nossas teses é que o processamento de dados empobrece a informação. De fato, dados não têm nada a ver com a realidade, sendo na verdade representações simbólicas de pensamentos abstratos formais, lógico- simbólicos, e como tal eles não precisam ter consistência física. (Note-se que o conhecimento atual que se tem do pensar não permite que se afirme ser ele físico; o máximo que se sabe é que certas áreas do cérebro são ativadas em certos tipos de pensamentos, sentimentos e ações, mas não se pode afirmar que os neurônios, ou seja lá o que for fisicamente, geram essas atividades interiores ou a consciência, e muito menos a auto-consciência. É possível conjeturar que a atividade neuronal seja conseqüência dessas atividades "anímicas," isto é, não-físicas, e não sua causa; é uma pena que o materialismo que impera na ciência de hoje impede que se faça essa hipótese que, cremos, abriria um enorme campo de pesquisa.) A propósito, é justamente a imponderabilidade dos dados e sua alienação em relação ao físico que permitiu que os computadores fossem construídos cada vez menores, o que não pode acontecer com todas as outras máquinas. De fato, estas podem ser caracterizadas como máquinas concretas, ao passo que os computadores são máquinas matemáticas, e portanto abstratas, virtuais. Assim, todo processamento de dados deve utilizar-se exclusivamente de pensamentos formais expressos sob a forma de um programa de computador. Esse processamento lógico-simbólico, por ser extremamente restrito e unilateral, acaba por restringir enormemente o espaço de tratamento das informações, que devem ser expressas sob forma de dados; daí o empobrecimento das informações que são representadas por esses dados. Note-se que essa restrição é até de natureza matemática: não é possível colocar no computador as noções de infinito e de contínuo, apenas aproximações das mesmas.

A caracterização do computador como máquina abstrata fica mais clara ao notar-se que todas as linguagens de programação são estritamente formais, isto é, passíveis de serem descritas matematicamente. O próprio funcionamento lógico do computador pode ser descrito por formulações lógico- matemáticas. As outras máquinas não têm essa característica, pois atuam diretamente na matéria (aí incluída a energia), e esta escapa a uma descrição matemática. (A recente descoberta da possível subdivisão do quark levou muitos físicos a conjeturar que nunca saberemos o que é a matéria - para nós isso sempre foi evidente, pois do ponto de vista material a matéria não faz sentido, do mesmo modo que não o fazem a origem e os limites do universo. É preciso mudar o atual método científico para obtermos conhecimento sobre esses fenômenos e sobre a vida, o pensamento, a consciência, o sono, a morte, etc.)

Mas não são só as linguagens de programação que são formais. Qualquer linguagem de comandos, mesmo icônica, de um software qualquer, também é matematicamente formal. Por exemplo, qualquer comando de um editor de textos produz uma ação do computador que é uma função matemática sobre o texto sendo trabalhado ou sobre o estado do computador. Portanto, para se programar ou usar um computador, é necessário formular os pensamentos dentro de um espaço estritamente abstrato, matemático, apesar de aparentemente não ser o tradicional, pois os símbolos e as funções são em grande parte diferentes. Programar ou usar um computador são funções estritamente matemáticas, como fazer cálculos ou provar teoremas. Assim, a programação ou uso de um computador exigem o mesmo grau de consciência e abstração que a atividade matemática. Isso não se passa com todas as outras máquinas, que exigem uma certa coordenação motora automática, semiconsciente (por exemplo, só se aprende a andar de bicicleta quando não é mais necessário pensar sobre os movimentos e o equilíbrio).

Para enfocarmos o problema específico do computador na arte, devemos agora caracterizar o que entendemos por obra de arte. Já que o computador representa de certa forma o pináculo do pensamento científico e matemático, incorporado em uma máquina, parece oportuno cartacterizarmos a arte contrapondo-a à ciência, como já o fizeram Bacon, Descartes, Newton, e muitos outros.

2. Arte e ciência

Em primeiro lugar, devemos colocar que vamos nos ater exclusivamente às criações humanas. Essa ressalva se impõe pois muitos pensadores consideraram a natureza como um artista. Platão faz essa distinção em "O Sofista":

"Vou supor que coisas que são feitas pela natureza são obras de arte divina, e coisas que são feitas pelo ser humano são obras de arte humana."

De fato, gostamos de afirmar "a natureza é um artista, e não um cientista" para explicar por que pessoas preferem morar em uma rua arborizada. Cada árvore pode ser encarada como uma obra de arte produzida pela natureza, provocando em nós um senso estético ausente de uma obra científica. No entanto, as obras de arte da natureza carecem de individualidade. Todas as plantas de uma mesma espécie, em uma mesma região geográfica, terão forma semelhante (se bem que nunca idêntica). Todas as belíssimas teias feitas por uma mesma espécie de aranha seguem os mesmos padrões, determinados pelo rígido "programa" seguido pelo animal.

Talvez o corpo humano seja a única obra de arte da natureza com individualidade não decorrente unicamente de determinadas combinações genéticas e influências do meio ambiente, como se vê por exemplo pela expressão fisionômica; isso pode levar à conjetura de que o ser humano não é um ser puramente natural, como podem ser classificados os minerais, os vegetais e os animais. De fato, quando os humanos primordiais fizeram suas pinturas rupestres, já mostraram que não eram totalmente naturais - talvez nunca o tenham sido! Quem sabe daí advém a dificuldade em se determinar a origem natural do ser humano... Contrariamente à arte da natureza, cada obra de arte humana deve ter uma característica individual. Certamente nossa casa é diferente de todas as outras do mundo, pois eu e minha esposa encomendamos ao nosso arquiteto, o saudoso Bernardo Blanco, um projeto que não seguisse o padrão de caixa retangular de tijolos e concreto, como se vê comumente, e sua criação artística foi realmente individual.

Além de necessariamente expressar um aspecto individual do seu criador, a obra de arte deve ter uma característica fundamental, que a distingue da obra científica. Seguindo Goethe [1], formulamos a seguinte caracterização:

A ciência é a idéia tornada conceito; a arte é a idéia tornada objeto. Isto é, ambas têm a mesma origem, mas uma é expressa por meio de abstrações, e é captada pelo nosso pensamento, e a outra é concretizada em algo que pode ser captado pelos nossos sentidos. Isso é claro nas artes mais "físicas" como, pela ordem estabelecida por R.Steiner [2], a arquitetura, escultura e vestuário (nos povos em que este ainda é uma expressão de um estado de ânimo). No entanto, também pode ser reconhecido em artes mais espirituais, como música (os sons são elementos físicos) e a poesia (também depende de se escutar - mesmo que interiormente - os sons das palavras).

Obviamente, estamos aqui fazendo uma distinção fundamental entre ciência e técnica ("technology"). Uma máquina ou um instrumento é algo concreto, mas a ciência que se encontra por detrás deles é um edifício puramente conceitual.

Assim, a arte e a ciência complementam-se. Segundo Steiner, "O dito de Goethe que arte é uma espécie de conhecimento é verdadeiro, pois todas as outras formas de conhecimento, tomadas em conjunto, não constituem um conhecimento completo do mundo. Arte - criatividade - deve ser adicionada ao que é conhecido abstratamente se quisermos atingir um conhecimento universal" [2].

É uma grande tragédia da humanidade estar-se dando importância quase que apenas à ciência e ao pensamento científico. Basta ver-se que tipo de educação as crianças e jovens estão recebendo no mundo todo, para ver-se que a educação artística é ínfima - se existente - em comparação com a educação científica. Educa-se para o pensar abstrato formal e não um pensar "intuitivo" como o que se passa na atividade artística. Com isso estamos condenando a humanidade a ter uma visão unilateral indevida do mundo, uma visão desumana, pois esse é o tipo de ciência feito hoje em dia. Pode-se observar como a ciência tem se orientado em grande parte para a produção técnica, com a finalidade de aumentar o poder ou o capital, e não para o conhecimento. Todos os desastres provocados pela técnica talvez possam ser remontados à desumanidade da atividade científica de hoje, que encara os seres vivos como meros minerais mais complexos, usando com aqueles um método que deveria ter validade apenas no âmbito do inanimado - e mesmo aí tem resultados dúbios do ponto de vista de conhecimento. Possivelmente, os atuais desastres econômicos no mundo todo podem ser remontados ao tratamento das questões sociais com pensamentos científicos, sem o emprego simultâneo de um "pensamento artístico" que, cremos, é essencial para se lidar com quaisquer dessas questões, como veremos no item 6.

A nossa frase no espírito de Goethe ainda revela um ponto fundamental: o objeto de uma "verdadeira" arte deveria expressar uma idéia, isto é, uma realidade espiritual, e não ser meramente uma combinação casual de elementos aleatórios. Talvez seja a essa realidade espiritual que Kandinsky quis referir-se na terceira parte do que ele chamou de "Necessidade Interior" que caracteriza a criação artística, produzindo uma arte "verdadeiramente pura [que serve ao] divino." Segundo ele, "Cada artista, como servidor da Arte, deve exprimir, em geral, o que é próprio da arte (elemento de arte puro e eterno que se encontra em todos os seres humanos, em todos os povos e em todos os tempos, ..., e não obedece, enquanto elemento essencial da arte, a nenhuma lei do espaço nem do tempo.)" e, mais adiante, "a preponderância do terceiro elemento numa obra é que constitui o indicador da grandeza dessa obra e da grandeza do artista." [3]

É óbvio que a pintura de uma paisagem, um "portrait" ou uma natureza morta expressam uma realidade, mesmo que seja sob a forma de nossas sensações como no impressionismo. Por outro lado, cremos que o expressionismo na pintura tinha a intenção de exprimir algo interior existente mas invisível, como por exemplo um estado emocional. Talvez a música de J.S.Bach seja tão especial pelo fato de ser a que mais se aproxima da sensação daquela realidade arquetípica não-física que os gregos chamavam "a música das esferas." Daí para diante, a música torna-se cada vez mais uma expressão de uma criação individual, "terrena." Não estamos esquecendo a capacidade de criação abstrata e experimental-científica de Bach - veja-se sua "têmpera" das escalas. Mas não podemos considerar que sua música tenha sido toda calculada - como alguns gostariam que tivesse sido -, pois ele não teria tido tempo para isso. Lembremos que ele próprio afirmou ser sua música "inspirada."

Uma das caracterizações fundamentais das obras artísticas em contraposição às obras técnicas é o fato destas seguirem regras formalmente definidas. Obviamente existem regras na arte - afinal, a confecção de qualquer objeto deve seguir regras impostas pela natureza física do material. No entanto, essas regras não devem ser formais ou "definidas." Kant escreveu na "Crítica ao Julgamento," parte I (Crítica da Razão Estética):

"Qualquer arte pressupõe regras que são estabelecidas como as fundações que inicialmente permitem um produto ser representado como possível."

E, mais adiante,

"Belas Artes somente são possíveis como produtos de um gênio, ..., um talento que produz aquilo ao qual não se pode dar regras definidas."

Essa não-definição total das regras seguidas na confecção de um objeto de arte é que permite que a intuição (essa capacidade interior que escapa a uma caracterização científica... pensamentos vindos do nada?) manifeste-se sem regras que podem ser conceitualizadas, formalizadas. A intuição deve estar presente tanto na criação científica como na artística, no entanto numa ela manifesta-se através de regras formais, e na outra deve haver algum elemento informal, não passível de descrição exata, proveniente da interação física entre o artista e o material. Recordemos que este, no caso da música e da poesia, é o som. No caso de um romance, é a imagem interior ("Vorstellung") que o escritor faz o leitor criar, imagem esta baseada nas experiências sensoriais, emocionais, morais, etc. do último. Note-se ainda o uso por Kant da palavra "gênio," que ele atribuiu à "natureza no indivíduo," o que podemos interpretar como a manifestação da individualidade do artista. Em Platão ("Ion") encontramos também a menção do gênio, pois ele descreve a arte como produto da inspiração divina do gênio captado pelo ser humano. Mas, nesse caso, o "gênio" espiritual não se encontrava dentro do indivíduo e nem era "natural" como no materialismo de Kant, mas inspirava-o de "fora." Lembremos que Homero sempre invocava a divindade para inspirá-lo a escrever a obra: "Cante, ó deusa, a ira de Aquiles filho de Peleus, que trouxe incontáveis desgraças sobre os Aqueus..." e "Conte- me, ó Musa, sobre aquele genial herói que viajou longe e amplamente depois que saqueou a famosa cidade de Tróia." Isto é, o antigo grego não tinha a percepção interior que qualquer pessoa tem hoje em dia, de produzir seus próprios pensamentos. Steiner escreveu de Homero: "A poesia épica aponta para a divindade superior, aquela considerada feminina por que transmite forças frutificantes." Logo em seguida, falando sobre a evolução do teatro desde Ésquilo até Aristófanes: "somente gradualmente, na Grécia, à medida que a conexão humana com o mundo espiritual caía no esquecimento, a ação divina representada no palco tornou-se puramente humana" [2].

A propósito de regras, uma outra característica que encontramos nas artes é que as regras que elas seguem são razoavelmente rígidas e, em boa parte, pré-existentes no material do objeto e nos eventuais instrumentos empregados, ao passo que na ciência elas são determinadas em grande parte pelo seu criador. De fato, uma teoria matemática é um campo totalmente aberto, desde os axiomas até a extensão dos teoremas; uma teoria física pode ter um grande espaço de manobra, pois é um modelo abstrato, podendo-se imaginar elementos sem limite clássico, isto é, que não correspondem à nossa experiência sensorial, como o spin do elétron ou as ondas de probabilidade da Mecânica Quântica. Mesmo experiências físicas podem ter um grande espaço de manobra - parece-nos que os aceleradores de partículas mudam as condições da matéria, fabricando-se manifestações (por exemplo, partículas) que talvez não existem em estados normais. Compare-se com o espaço de manobra de um pianista, cujo instrumento de percussão é extremamente limitado na produção de cada som. No entanto, que obras de arte e que sensibilidade podem ser transmitidas por um mestre no "touché," como acabamos de presenciar na audição de Pogorelich! É justamente a manifestação de liberdade em um espaço limitado que revela o grande artista. A esse respeito, vale a pena meditar sobre a poesia de Goethe que transcrevemos e (mal-) traduzimos no apêndice.

O elemento informal e intuitivo na arte leva-nos a dizer que na criação artística deve haver um elemento inconsciente, que nunca poderá ser conceituado totalmente. Já a criação científica deve poder ser expressa por meio de pensamentos claros, universais e não-temporais - isto é, independentes da particular interpretação do observador, talvez até certo ponto (dependendo da área) formais, matemáticos. Imagine-se uma descrição do Altar de Isenheim através dos seus pixels e seus comprimentos de onda - ele perderia totalmente o senso estético e não produziria mais a reação interior provocada no observador pelas cores, formas e motivos, isto é, não teria o efeito terapêutico para o qual foi criado por Grünewald. Insistimos que também na observação deve haver um elemento individual, o que não deve ocorrer no caso da ciência.

O elemento emocional foi realçado por Freud, quando afirmou em sua "Introdução à Psicanálise," Aula 23, e no ensaio "Além do Princípio do Prazer," que a arte é emoção ou expressão subconsciente e não imitação ou comunicação (dentro de seu típico raciocínio unilateral da teoria da sublimação da emoção e do desejo através da arte). Comparando-se com a arte como comunicação de uma realidade espiritual, de Kandinsky, vê-se bem o contraste entre materialismo e espiritualismo; neste pode haver algo superior a ser comunicado.

É interessante insistir que a idéia expressa em um objeto de arte é objetiva, mas a necessária sensação e emoção que ela desperta é subjetiva. Por exemplo, ouça-se uma terça maior seguida de uma menor, ou uma sétima seguida de uma oitava. Estamos seguros que qualquer pessoa terá sensações diferentes em cada caso, que ficam claras pelo contraste entre cada intervalo e o seguinte. Mas provavelmente quase todas as pessoas dirão que a terça menor é "mais triste" e a sétima produz uma tensão aliviada pela oitava. Cada um sente essas emoções diferentemente, mas há claramente algo universal por detrás delas, como as sensações que temos do amarelo limão (alegre, radiante, abrindo-se) e do azul da Prússia (triste, introspectivo, fechando-se). A esse respeito diz Kandinsky [3]: "O elemento de arte puro e eterno ... é o elemento objetivo que se torna compreensível com a ajuda do subjetivo."

Consideramos também uma distinção essencial entre obra artística e científica o fato da primeira dever sempre ter contextos temporais e espaciais ligados à sua criação. Como contraste, uma teoria científica não depende do tempo, desde que seja consistente e corresponda às observações, se for o caso. Um exemplo simples é o do conceito de uma circunferência, como por exemplo o lugar geométrico dos pontos eqüidistantes de um ponto. Essa definição formal não dependeu das condições de seu descobridor. Ela é impessoal e eterna. O fato de podermos captá-la com nosso pensamento levou Aristóteles a conjeturar, por um raciocínio puramente lógico, precursor de nossa maneira de pensar hodierna, e que não poderia ter ocorrido em Platão, pois este tinha sido um iniciado nos Mistérios (veja-se a fantástica "A Escola de Atenas," de Rafael para uma representação da diferença entre os dois), que temos dentro de nós também algo de eterno.

A dependência espaço-temporal da criação artística aliada ao elemento de expressão individual semiconsciente do artista faz com que haja sempre um elemento de imprevisibilidade na criação. O artista deve observar sua obra durante o processo de criação, para influir no mesmo e chegar a algo que não podia inicialmente prever. Isso pode ser um processo puramente interior, como no caso de um compositor que não precisa ouvir os sons de sua obra; no entanto, a sensação auditiva ao ouvi-la tocada nunca é a mesma que a que pode imaginar interiormente. Poder-se-ia argumentar que a pesquisa científica também tem elementos de imprevisibilidade. Isso pode ocorrer até na matemática: um teorema pode ser descoberto, e o seu autor ou outros ainda não saberem como se poderá prová-lo (um exemplo recente foi a prova do último teorema de Fermat, formulado no século XVII). Uma grande diferença reside no fato do resultado ser, como já dissemos, de um lado um conceito, de outro um objeto. Além disso, uma vez estabelecido um conceito científico, toda vez que se refizer a experiência ou a teoria correta o resultado será o mesmo (dentro das eventuais aproximações experimentais); no caso da criação artística, o objeto de arte deverá sempre mudar, pois a sua simples presença deve influenciar o criador, que terá outras inspirações na hora de repetir a criação (lembremos da frase de Freud de que simples imitação não é arte). Damos e esse fator o nome de "dinamismo da criação artística."

Resumindo, a arte em nossa opinião deve ser expressa através de objetos físicos (eventualmente sonoros) ou da imaginação desses objetos (como no caso de um romance); deve exprimir uma idéia, que é uma realidade não-física; não deve poder ser totalmente criada ou descrita por meio de elementos puramente formais, contendo sempre um elemento subconsciente; deve ter um caráter individual ligado ao seu criador e ao observador; deve permitir uma certa liberdade dentro de regras informais impostas pelo material e pela ação do artista; deve envolver emoções do artista e do observador; deve ter contextos temporais e espaciais ligados à sua criação, que deve ser dinâmica, e o processo de criação deve ter um elemento de imprevisibilidade.

Antes de discorrermos sobre nossa opinião em relação ao uso de computadores na arte, será ainda necessário examinarmos a maneira como eles podem ser usados na atividade artística.

3. O uso de computadores na arte

O computador pode ser usado de três maneiras em atividades ligadas à arte: como máquina de armazenar dados, como instrumento passivo na criação artística, e como instrumento ativo na geração de imagens, sons, etc.

Na primeira categoria, o computador não é usado de maneira essencialmente diferente de outros meios de armazenamento, como por exemplo livros ou fitas. A única diferença reside no fato do livro ser um meio físico, e o computador ser virtual. Assim, no caso de livros o leitor tem um contato tátil e visual completamente diferente do que no caso de um texto armazenado no computador e examinado através de uma tela. Existem inúmeros relatos de pessoas que se sentiram atraídas por determinados volumes em uma livraria ou biblioteca, e que se tornaram importantes em suas vidas, ou ao folhear um livro abriram inconscientemente uma página cujo conteúdo atraiu-lhes uma atenção especial. Duvidamos que o computador possa causar essa ligação intuitiva no mesmo grau que o contato proporcionado pelo objeto físico. Na confecção deste artigo, fizemos questão de imprimir as várias versões, pois o texto impresso permite uma visão de conjunto da qual sentimos falta ao usar um editor de texto. Fora essas desvantagens, pode-se citar uma porção de vantagens no armazenamento virtual: busca automática, eficiência no armazenamento, na cópia e transmissão, etc.

A segunda maneira de usar computadores em arte é o emprego da máquina como instrumento passivo. Um exemplo típico é o do uso de programas de desenho gráfico, como o popular CorelDRAW. Aqui precisamos fazer duas considerações fundamentais. A primeira diz respeito ao fato de que o uso de materiais físicos, no caso um pincel, as tintas e a tela, proporciona uma atividade inconsciente. Não se pode saber de antemão o que resultará exatamente da criação artística, como já descrevemos no item anterior. Não é possível calcular a mistura de tintas, e só ao colocá-la na tela ou papel é que se poderá ver o seu efeito. Além disso, é muito difícil repetir uma mistura, a não ser que se usem tintas de fabricação industrial rigorosa e as combinações sejam medidas com precisão científica (e não artística!). A pressão que se coloca no pincel e que influencia o resultado não pode ser determinada com precisão, e o papel ou tela também introduzem variáveis imponderáveis (grau de absorção, etc.), o que influencia o resultado. Essas imponderabilidades não ocorrem no programa de desenhar. As cores (ou melhor, ilusão óptica delas) são em geral determinadas por projeção praticamente pontual discreta de três básicas (vermelho, azul e verde, que, aliás, não funcionam como básicas na mistura de tintas - o que Goethe chamou de "cores químicas"), podendo-se determinar exatamente a combinação das mesmas (expressa por meio de intensidades graduadas de 1 a 256 - que empobrecimento!). É óbvio que a sensação que uma cor produz no artista não é formal, mas o importante é o tipo de atividade que ele deve exercer: no caso das cores do computador, a sua escolha acaba sendo totalmente formal e consciente.

Gostamos de pintar aquarelas, do tipo "wet-on-wet." Nessa atividade, uma das sensações mais extraordinárias é produzir uma transição uniforme entre duas cores. É preciso colocar ambas no papel, a alguma distância, e passar o pincel entre elas dezenas de vezes, molhando-o de vez em quando nas tintas, para que se consiga uma transição razoavelmente uniforme. Compare-se a vivência que isso proporciona, com o hipotético uso de um programa de desenhar: neste, basta selecionar as cores desejadas, acionar um ícone de transição de cores, selecionar as regiões das cores originais, e imediatamente obtém-se o efeito desejado. Não houve todo o processo do artista, buscando em um longo tempo uma aproximação do resultado esperado. Esse processo produz toda uma atividade interior, que é subtraída no uso do programa. Além disso, obviamente, faltam num desenho feito com uma máquina todas as nuances que se encontra em algo feito à mão, isto, é, houve um empobrecimento da representação (recorde-se o que dissemos no item 1).

A segunda consideração diz respeito ao fato do computador ser uma máquina matemática, como expusemos no item 1. Todos os comandos dados pelo usuário do programa de desenhar são formais, e sua execução pela máquina pode ser descrita por meio de uma função matemática. Isto é, o usuário é obrigado a pensar formalmente ao usar esses comandos - que podem eventualmente constituir uma linguagem icônica, mas que não deixa de ser formal. Compare-se, novamente, com o uso de um pincel, onde a atividade é motora, inconsciente - a conscientização total dos movimentos de nossos membros leva à paralisia; por exemplo, um pianista não pode pensar em que dedos ele está usando, pois nesse caso não tocaria nada.

Assim, o uso de um computador como instrumento passivo exige conscientização e formalização da criação artística, perdendo-se o contato físico, não conceitual, com o objeto sendo criado.

A terceira forma de usar um computador em arte é fazer um programa para gerar imagens ou sons (quem sabe, no futuro, até fazer uma escultura ou construir uma casa). Um exemplo conhecido disso são os fantásticos desenhos produzidos por funções fractais; programas para produzir desenhos com essas funções provavelmente estarão logo no mercado. Nesse caso, não há apenas a substituição de um instrumento informal por outro formal; o próprio processo de criação torna-se totalmente formal. A criação deve ser expressa de maneira estritamente matemática, como é o caso de um programa. Com isso, elimina-se totalmente o elemento inconsciente. É também eliminado o elemento individual, no sentido de qualquer pessoa poder entender totalmente como a obra foi produzida - basta examinar detalhadamente o programa. É eliminado ainda o elemento temporal e espacial ligado à criação. Em outras palavras, a atividade artística tornou-se atividade científica. A propósito, é muito importante compreender-se o que significa produzir um programa para fazer uma obra de "arte" segundo um certo estilo. Um computador pode produzir desenhos e música que se assemelham aos de Mondrian e de J.S.Bach, mas estes tiveram que desenvolver seus estilos para poder ser depois analisados, expressos grosseiramente em elementos puramente formais e programados em um computador para gerar algo que aparentemente é semelhante. Sem Bach, não haveria programas que imitam sua música. Além disso, segundo o que dissemos antes, a criação do computador não exprime nenhuma idéia além da contida no estilo, desde que este seja expresso matematicamente, o que em nosso entender representa um empobrecimento.

Deve-se ainda considerar que, como dissemos, a criação artística dever ser razoavelmente imprevisível, dependendo da interação entre o autor e sua obra durante a criação. O resultado do computador é sempre previsível. O uso de geradores de números pseudo-aleatórios não elimina a previsibilidade, pois o que o programa fará com o número gerado é sempre previsível, tendo sido projetado pelo programador.

4. Julgamento

Como máquina de armazenamento de obras de arte, o computador tem suas vantagens, principalmente para as pessoas que preferem música "enlatada" em lugar de concertos ao vivo, reproduções em livros em lugar dos originais, cinema em lugar de teatro. Obviamente, ele pode ser útil no acesso a uma representação ou descrição de obras às quais o interessado não tem acesso direto.

Na segunda modalidade, mostramos que há um empobrecimento da atividade de criação artística. Além disso, pela ordem das caracterizações da criação artística expostas no fim do item 2, o resultado é virtual e não concreto (ou, se tornado concreto - uma impressão em papel, por exemplo -, não foi produzida diretamente pelo autor, e sim pela máquina; nesse sentido temos um problema em comum com a fotografia e o cinema), como em vários tipos de atividades artísticas; foi criado parcialmente e pode ser descrito totalmente por elementos puramente formais (pois está armazenado sob forma de dados); usam-se (parcialmente) regras puramente formais, abstratas, em sua construção (os comandos do software), restringindo a liberdade do autor a um espaço matematicamente bem definido, e não há imprevisibilidade em uma parte do resultado, já que ele é fruto de ações pré-programadas da máquina (executadas através dos comandos).

Finalmente, mostramos que na modalidade de uso do computador como instrumento ativo, gerando imagens ou som (e mesmo "poesia," que deveria ser a arte mais espiritual, e portanto ainda mais reservada a seres humanos) a partir de um programa construído para isso, na verdade se tem uma atividade científica, abstrata, e não artística. Além disso, essa modalidade foge quase que totalmente às citadas caracterizações da criação artística, como pode ser facilmente verificado.

Assim, podemos afirmar que, em nossa concepção, apenas a primeira modalidade - o uso do computador como meio de armazenamento - é válida do ponto de vista artístico. Nas outras duas formas, o uso do computador tem um efeito precisamente contrário ao desejado pela atividade artística. Assim, em lugar de dar maior liberdade à criação o computador na realidade empobrece a atividade artística, encaixando-a parcial ou totalmente numa atividade abstrata. Como dissemos na introdução, não é de se estranhar que se tenha usado o computador como instrumento de arte. Em lugar de fazermos a arte voltar a ser humana, exprimindo as mais elevadas realidades espirituais, estamos tornando-a ainda mais abstrata e formal, deixando de preencher os requisitos que expusemos como essenciais para caracterizar uma obra como arte e reduzindo-a ao nível subnatural das máquinas.

Um ponto adicional é o fato do computador alienar o artista do instrumento de arte. De fato, os instrumentos artísticos tradicionais, como pincel e instrumentos musicais, são simples e seu funcionamento pode ser totalmente vivenciado e compreendido. Já o computador sempre será um instrumento misterioso, de funcionamento não- compreensível, impedindo a integração íntima do artista com o meio que ele está empregando, o que nos parece ser um fator essencial na criação artística.

Portanto, consideramos o computador como instrumento de criação artística passivo ou ativo como instrumento não de arte, mas de anti-arte.

Como tivemos oportunidade de escrever em um artigo publicado já em 1976 num congresso da Academia de Ciências do E.S.Paulo [4], o computador é o instrumento ideal para a propagação do cientificismo, isto é, o uso da ciência como religião, a crença de que a ciência resolverá todos os problemas da humanidade, que só os especialistas é que entendem algo do mundo, etc. Cremos que é bem essa tendência que tenta empurrar o computador como instrumento artístico. O computador dá a tudo um ar de modernismo e de pesquisa científica (esquecendo-se do ditado "garbage in, garbage out"), validando qualquer pesquisa

Uma outra tendência que poderia explicar o uso do computador na criação artística é a entrega pessoal do consumidor à propaganda enganosa dos fabricantes de computadores e de programas. O uso dessas máquinas em empresas não se compara em extensão com o potencial do uso no lar. Como pouquíssimas donas de casa quererão organizar-se a ponto de fazer um banco de dados com suas receitas culinárias, o jeito dos fabricantes é apelar para aplicações como atividades de lazer (na caso, as artísticas) e para a educação.

Isso nos leva a abordar rapidamente um problema que nos é muito caro: o uso do computador em educação, aqui sob o ponto de vista de educação artística.

5. O computador e a educação artística

O maior defeito do ensino em todos os níveis consiste, em nossa opinião, dele ser excessivamente abstrato. Em lugar de se colocar o jovem em contato com a realidade e a imaginação, que poderiam atraí-lo, apresenta-se-lhe tudo sob a forma monótona de abstração intelectual, sem fantasia e sem conexão com a realidade. Por exemplo, como se ensina o que é uma ilha? "Um pedaço de terra cercado de água por todos os lados." Com que idade todos nós sofremos essa barbaridade de aprender algo da realidade sob a forma de uma definição totalmente morta? (Não só morta como errada, pois não há água nos lados de cima e de baixo, e se a ilha for redonda, considerando-se a periferia há topologicamente dois lados, o de dentro e o de fora.) Qual poderia ser uma maneira adequada, cheia de vida e que desperte fantasia, para crianças de cerca de 8 anos? Pode-se, por exemplo, contar uma estória, como a de alguém que naufragou, nadou até uma praia, comeu bananas e coquinhos, e depois foi andar para casa; mas para todos os lados havia outras praias ou pedras no mar, etc. etc. Pode-se desenhar com giz colorido essa ilha mostrando artisticamente com cores vivas as ondas, a vegetação, os pássaros, etc. Pode-se fazer uma ilha numa bacia com água e areia ou barro, pedacinhos de plantas, etc. deixando as crianças lambuzarem-se bastante. Com tudo isso, através de um ensino impregnado de arte pode-se criar na criança uma imagem interior de uma ilha viva. Toda definição é uma pura abstração e "mata" o objeto sendo definido; parafraseando Steiner [2], diríamos que o ensino através de abstrações mostra uma "imagem morta da vida." E com isso mata-se a imaginação e a criatividade das crianças, que nascem todas artistas mas que são castradas em sua capacidade artística pela TV, por joguinhos eletrônicos e pela intelectualização precoce no lar e na escola (inclusive com o uso de computadores).

O computador veio introduzir ainda mais abstração no ensino, e força a criança a adotar atitudes intelectuais de adulto. Como colocou Neil Postman como título de um de seus magníficos livros [5], temos aí o "desaparecimento da infância" que, segundo ele, e sem nem considerar os efeitos dos computadores em educação, do jeito que as coisas vao completar-se-á até o fim do século.

O ensino está claramente voltado para o conhecimento e habilidade intelectuais científicos. Isso é uma tragédia, pois como dissemos no item 1, deixa-se de educar para a visão artística do mundo, que é complementar à científica e, cremos, essencial para o desenvolvimento da sensibilidade, inclusive a social, e para uma evolução sadia da humanidade.

O computador só veio piorar essa situação. Pudera, não houve mudança na mentalidade dos educadores! Eles também querem ser moderninhos, e devem ter uma mentalidade bastante cientificista, pois senão não ensinariam uma definição idiota e errada de ilha (ainda bem que nunca definiram o que é uma árvore: "um pedaço de pau fincado na terra a 90 graus blá blá...", o que não impede nossas crianças de desenvolverem um conceito correto de árvore através da vivência direta), não dariam notas aos seus alunos tratando-os como meras abstrações ou, no máximo, cabeças ambulantes. (Como é mesmo o moto de uma de nossas maiores indústrias educacionais? "As melhores cabeças" - como se as pobres crianças não tivessem sentimentos e volição, e nem mesmo outras partes físicas... Além disso, a referência clara é ao pensamento científico, isto é, sem vida.)

A respeito de notas, alguém pode dizer-nos o que pode significar a reprovação de uma criança de 8 anos? Ela não se esforçou como adulto? Não estudou como adulto? Não foi responsável como adulto? Não "sabe" igualmente todas as matérias, como se fosse uma máquina de armazenar informações sejam estas interessantes ou não? Se tivesse havido uma mudança de mentalidade, e o ensino tivesse se tornado mais humano, os professores de primeiro grau deveriam ser os primeiros a rejeitar o uso do computador na educação. A mesma mentalidade que leva um mau educador a atribuir uma nota totalmente destituída de sentido real (por exemplo, o que significa nota 5, conhecimento de "metade" de toda a matéria como pedida na prova ou conhecimento de "metade" de cada assunto?), e que quantifica algo não quantificável como o são o conhecimento, o interesse e a habilidade, inclusive a mental, essa mentalidade que trata os alunos como abstrações e não como seres humanos e encara a educação como ciência, em vez de encará-la como arte, é que obviamente leva os que se denominam de educadores a empregar o computador na educação. Do ponto de vista de educação artística o resultado para nós é evidente: será mais um ataque para a eliminação da criatividade e da sensibilidade artísticas das crianças e jovens. Em lugar de educar para as nuances de um pincel, com o qual se deve ensinar a acariciar o papel, educa-se para a grosseria da movimentação de um "mouse," produzindo-se um embrutecimento da sensibilidade tátil (e visual) e da coordenação motora, canalizada para um movimento infinitamente mais pobre do que a carinhosa manipulação de um pincel. Em lugar de se criar cores, misturando-se tintas nas cores básicas (vermelho, amarelo e azul), força-se a criança a fazer uma escolha lógica em uma palheta virtual, ou mesmo combinar 3 números. Seria interessante imaginar um teste de Turing às avessas [4]: um computador distinguiria um ser humano de um outro computador? Parece-nos que não, pois ao usar o computador o ser humano é obrigado a pensar como máquina...

Essas nossas críticas à educação não se fundamentam em meras teorias: elas baseiam-se no conhecimento teórico e prático que temos da Pedagogia Waldorf [6], onde não há notas, não há reprovações e o ensino primário e secundário, mesmo o científico, é impregnado de arte. Recomendamos fortemente a visita a uma das 12 Escolas Waldorf no Brasil (cerca de 600 no mundo todo) para verificar o que estamos afirmando aqui - a realidade diz infinitamente mais do que uma descrição intelectual! Estamos seguros que os nossos leitores acharão que as escolas Waldorf formam artistas; a verdade é que elas formam jovens normais, o ensino clássico é que castra a criatividade artística e não desenvolve a técnica artística. Uma boa fonte de experiências de pais e mestres pode ser encontrada na lista eletrônica Waldorf (informações com seu moderador, lefty@apple.com).

Já que nos alongamos na crítica ao uso dos computadores no ensino elementar (somos a favor de seu uso no segundo grau, para ensinar o que é um computador e como ele pode ser usado com software de uso geral; para mais detalhes, ver [7]), vamos encerrar declarando pela primeira vez por escrito, em bom tom, que consideramos o uso do computador no ensino elementar ou na educação no lar como um crime contra a infância e a juventude. É o crime de forçar uma atitude adulta precoce; é o crime de, em lugar de se desenvolver a sensibilidade e a criatividade artísticas, contrabalançando o excesso unilateral de intelectualismo a que nossas crianças estão infelizmente sujeitas, forçar-se ainda mais a intelectualização que fará com que tragédias como o stalinismo e o nazismo, e outros racismos e sectarismos que estamos presenciando agora, não sejam nada comparados com o futuro produto da mentalidade que estamos criando em nossos jovens: a de que o ser humano é uma máquina imperfeita e que o computador tem características humanas e é muito mais perfeito. Justamente a atividade artística sadia é que é um excelente antídoto para o pensamento abstrato e a grosseria de sentimentos imposta por ele. Mas em lugar de se introduzir a atividade artística e trabalhos manuais como ensino essencial para uma formação humana equilibrada, introduz-se um arremedo disso: a abstração da arte feita com computador, que causa exatamente o efeito contrário ao que nossos jovens estão urgentemente precisando.

6. Conclusões

Neste ensaio partimos de observações fenomenológicas do computador e de seu uso como instrumento artístico. Cremos que essa abordagem é absolutamente essencial hoje em dia. Por exemplo, se a TV fosse assim examinada, chegar-se-ia à conclusão de que os programas são do jeito que são por absoluta necessidade do aparelho e pela atitude passiva interior e exterior que ele impõe no telespectador, isto é, não se pode esperar por uma melhoria da qualidade dos mesmos. Com a abordagem citada, vimos que o computador impõe um pensamento abstrato típico da atividade científica, mas não da artística. Assim, quando usado na arte em qualquer aplicação que não seja o simples armazenamento de textos, figuras ou som (com eventuais pequenas mudanças de forma e não de conteúdo), o computador tende a descaracterizar a atividade artística, roubando- lhe alguns de seus aspectos fundamentais: na arte feita com computador ou há um empobrecimento decisivo da atividade e expressão artísticas, ou nem se pode mais chamar o resultado de arte, pois é decorrente de atividade conceitual científica. No entanto, mesmo usando-o como instrumento de simples armazenamento e comunicação, cremos que se deve atentar para o grande perigo do computador criar uma ilusão de que a "realidade virtual" (pode haver expressão mais inconsistente?) que ele apresenta é "melhor" do que a observação da "realidade real" (com perdão do pleonasmo...) da obra de arte propriamente dita; isso significaria certamente um empobrecimento da sensibilidade artística.

Vimos que a educação para o pensamento e atividade científicos típica dos nossos dias deveria ser urgentemente compensada com intensa educação artística, como o tem feito a Pedagogia Waldorf desde 1919. Isso deve-se ao fato dos enfoques artístico e científico serem complementares, revelando diferentes aspectos reais e essenciais do mundo.

No entanto, cremos que a esse dois aspectos educacionais por nós considerados polares (correspondendo à ação e ao pensamento, respectivamente), deve- se somar um terceiro, intermediário, que desenvolvemos recentemente e nos permitiremos expor aqui brevemente. Denominamo-lo de Educação Social. Ela tem três aspectos: educação 1. da sensibilidade social; 2. da capacidade de se ter compaixão; 3. da responsabilidade e da ação sociais.

A sensibilidade social é a capacidade individual de se ter a percepção do interior dos outros seres humanos, mais especificamente de suas necessidades e habilidades. A compaixão é a capacidade de sentir-se o sofrimento e a alegria dos outros humanos (para a alegria, inventamos a palavra "comalegria"). A ação e responsabilidade sociais têm a ver com o impulso de agir-se socialmente em benefício dos outros, e as ações daí decorrentes.

Pois bem, a educação artística parece-nos fundamental para se desenvolver a sensibilidade social. Cremos até que a mentalidade científica e técnica de nosso século vem prejudicando e embotando sobremaneira essa sensibilidade. Por considerarmos esta última um pré-requisito essencial das outras duas, pode-se imaginar qual importância damos àquela educação, que deveria ser feita não só na escola, mas também no lar.

No entanto, cremos que somente sensibilidade artística não é suficiente para desenvolver-se a sensibilidade social; um exemplo clássico é o de Hitler, que tinha uma certa sensibilidade artística (impregnada de sua visão unilateral do universo e de seu autoritarismo). Mas o que ele certamente não tinha era compaixão/"comalegria" e responsabilidade social, que devem complementar a sensibilidade artística para transformá-la em sensibilidade social. Não discorreremos aqui sobre como desenvolver essas duas habilidades pessoais, pois isso foge ao escopo deste ensaio.

O que importa para nosso tema é que o computador usado na educação de jovens ou na auto-educação tem o efeito justamente contrário ao desejado pelas educações artística e social. A miséria coletiva e individual vem aumentando progressivamente no mundo. Cremos que somente a Educação Social poderá formar futuros adultos que se interessarão pelo problema social, colocando-o acima de seu egoísmo, fonte fundamental de muitos de nossos males. Afinal, o problema social não é um problema simplesmente tecnológico ou econômico: no fundo, ele é um problema humano. Não serão as máquinas, e muito menos o computador que irão resolvê-lo; pelo contrário, sem mudança de mentalidade as máquinas e o computador só poderão piorar a presente situação mundial de calamidade social. Como mostramos, essa mudança de mentalidade passa necessariamente pela educação, auto-educação e pelas atividades artísticas, mas sem o computador!

Cremos que essa mudança de mentalidade envolve um ponto absolutamente fundamental. O racionalismo unilateral introduzido por Descartes deve ser frutificado com o exercício das emoções, principalmente do calor humano - por que não ser claro, do exercício do amor altruísta. Para isso, o pensamento deve ser enriquecido com o sentimento, a fim de que a visão que temos do mundo e da humanidade passe a ser mais humana e menos de máquina, e não se tomem mais decisões frias, desumanas. Justamente a arte pode ajudar a desenvolver esse novo pensamento, um "pensamento vivo."

O computador veio contribuir para o aumento do frio racionalismo, esse fruto de um "pensamento morto." A atividade artística feita com ele permanece no âmbito do racionalismo; mas sem ele ela é um caminho para o equilíbrio entre o cérebro das abstrações e o coração das emoções, a fim de se desenvolver e praticar um pensamento vivo. Quem sabe assim pararemos de enterrar viva a humanidade.

Referências

[1] Steiner, R. A obra científica de Goethe. Trad. R.Lanz, Ed. Antroposófica, S.Paulo 1984.

[2] Steiner, R. The arts and their mission. 8 Palestras proferidas em Dornach e Oslo, 1923, Trad. L.D.Monges e V.Moore, Athroposophic Press, Inc. New York, 1964.

[3] Kandinsky, V. Do Espiritual na Arte. Trad. A.Cabral. Liv. Martins Ed., São Paulo 1990.

[4] Setzer, V.W. O computador como instrumento do cientificismo. Anais do Simpósio Anual da Academia de Ciências do Estado de S.Paulo, São Paulo, 1976, pp. 69- 88.

[5] Postman, N. The Disappearance of Childhood. Delacorte Press, New York 1982.

[6] Lanz, R. A Pedagogia Waldorf - Caminho para um Ensino mais Humano. Editora Antroposófica, São Paulo 1986.

[7] Setzer, V.W. Computadores em Educação: Porquê, Quando, Como. Anais do V Simpósio Brasileiro de Informática na Educação, SBC, Porto Alegre, 1994. Uma versão em Inglês, estendida, e que aparecerá como capítulo de livro sendo editado nos EE.UU. por R.Muffoletto, está disponível a partir de nossa "home page" (V. cabeçalho no início deste).

Apêndice

Gesetz und Freiheit
Goethe (Weimar/Jena, entre 1790/1805)
Lei e Liberdade
(Trad. V.W. Setzer - Rev. R.Lanz)
Natur und Kunst, sie scheinen sich zu fliehen
Und haben sich, eh' man es denkt, gefunden;
Der Widerwille ist auch mir verschwunden,
Und beide scheinen mich anzuziehen.
Natureza e arte parecem distanciar-se
E antes que se pense, encontraram-se;
A repulsa também desapareceu-me,
E ambas parecem igualmente atrair-me.
Es gibt wohl nur ein redliches Bemühen!
Und wenn wir erst, in abgemess'nen Stunden,
Mit Geist und Fleiss uns an die Kunst gebunden,
Mag frei Natur im herzen wieder glühen.
Só é possível um honesto esforço!
E se, durante algumas horas comedidas,
Ligamo-nos à arte com espírito e aplicação,
Volte a Natureza livremente a arder no coração.
So ist's mit aller Bildung auch beschaffen:
Vergebens werden ungebundne Geister
Nach der Vollendung reiner Höhe streben
É assim que acontece com toda formação:
Inutilmente espíritos sem amarras
Almejarão da pura altura a perfeição.
Wer Grosses will, muss sich zusammenraffen:
In der Beschränkung zeigt sich erst der Meister,
Und das Gesetz nur kann uns Freiheit schaffen.
Quem busca o grande, de concentração tem necessidade:
O mestre revela-se na sua limitação apenas,
E somente a lei pode nos gerar liberdade.