CARTA AO JURISTA E FILÓSOFO MIGUEL REALE COM COMENTÁRIOS SOBRE O ARTIGO
"NOVAS VARIAÇÕES SOBRE RELIGIOSIDADE"

publicado em "O Estado de São Paulo" No. 40604, 18/12/04, pg. A2

Caro mestre Miguel Reale,

Sempre leio com interesse seus artigos no jornal "O Estado de São Paulo", mas o último, com o título acima, provocou-me o impulso de comentá-lo.

Em primeiro lugar, gostaria de chamar a atenção para o fato de que as palavras ligadas com religiosidade, inclusive ela própria, perderam totalmente o significado que tinham na antigüidade, e são objeto de enorme confusão. Provavelmente isso deveu-se em parte ao fato de a Igreja Católica ter, no concílio de Constantinopla, em 869, eliminado o "espírito" da constituição humana suprasensorial. Em lugar de ser constituído da trindade corpo, alma e espírito, o ser humano passou por decreto, ou melhor, por dogma, a ser formado apenas pelos dois primeiros, com a alma tendo algumas características de espírito. A Igreja Ortodoxa, no entanto, continuou com a trindade, e isso deve ter sido uma das causas da sua cisão. Assim, quando se fala de alma ou de espírito, não se sabe muito bem do que se está falando. Mas isso se aplica também à religiosidade e à fé. Por isso, vou inicial e brevemente conceituar essas palavras, para podermos saber do que estamos falando.

Claramente, referindo-nos a esses conceitos, estamos no âmbito daquilo que não é sujeito às leis físicas da natureza, que denominarei de âmbito "não-físico". Não é difícil admitir, como hipótese de trabalho, a existência de processos não-físicos no universo, nos seres vivos e no ser humano em particular. No primeiro caso, o surgimento da matéria e da energia no universo físico obviamente não pode ser explicado fisicamente. Tanto que não é incomum lerem-se cientistas referindo-se à "criação" do mundo. Mas também não o podem certos conceitos derivados de nossa experiência física, como os limites do universo físico. No caso do ser humano, basta um exame de nossos processos interiores, para se chegar à sensação de que a minha hipótese acima é válida. De fato, tome-se em cada mão um objeto trivial diferente, como uma folha de papel, um clip, um lápis, etc. Observe-se atentamente o objeto que está em cada mão. Agora fechem-se os olhos, produza-se uma certa calma interior, e aí escolha-se conscientemente um dos dois objetos para ser visualizado interiormente, por meio de uma imagem mental, em uma concentração do pensamento que deve durar pelo menos alguns instantes (um treino do pensamento pode levar essa concentração mental – eliminando-se qualquer outro pensamento – a prolongar-se por vários segundos ou minutos). Certamente qualquer pessoa terá a sensação de que nada a impele a visualizar um dos dois objetos em particular. Ela pode até reconhecer que tem uma atração especial, por exemplo, pelo lápis que estava em uma das suas mãos, pois é o que usa muito quando trabalha ou escreve; nesse caso, ela pode decidir visualizar o outro objeto. Enfim, nessa simples experiência qualquer pessoa terá a sensação de ser absolutamente livre em sua escolha. Ora, essa liberdade do pensamento não pode advir de processos físicos, pois estes estão sujeitos às leis físicas, que são inexoráveis. Talvez essas leis levem em alguns casos à aleatoriedade, mas nesse Gedankenexperiment ninguém terá a sensação de que o pensamento surge aleatoriamente; a sensação nítida é que ele é determinado pela decisão de pensar em um ou outro objeto. De fato, estamos aí no âmbito do autodeterminismo, em geral não coberto pela ciência, que trata apenas de determinismo e não-determinismo (como por exemplo no caso dos autômatos formais). A observação do próprio pensamento está ligada à autoconsciência; já a consciência, que o ser humano tem parcialmente em comum com os animais, é considerada um dos problemas mais difíceis da ciência contemporânea. No entanto, raramente lê-se algo sobre o que só o ser humano tem, a autoconsciência, pois apresenta dificuldades muitíssimo maiores dentro do atual paradigma científico.

Com essa simples experiência interior, a qual espero que todos consigam realizar, posso supor que muitas pessoas, senão todas, deveriam poder admitir a hipótese de que, dentro de si próprias, portanto em cada ser humano, há algum processo não-físico. É interessante que essa experiência partiu do processo do pensar, esse processo único e especial. Por exemplo, é o único processo em que a atividade pode confundir-se com o objeto da mesma: podemos pensar sobre pensar (em contrapartida, por exemplo, digerimos o alimento ingerido, e não a digestão). Se a área científica conhecida hoje como Teoria da Cognição pudesse fazer a hipótese de trabalho de que há processos não-físicos ligados ao pensamento, e que este pode ter características não-físicas, daria um imenso salto em sua pesquisa, atualmente embotada e limitada pela concepção positivista, ou materialista, que denomino de "dogma central da ciência contemporânea": existem apenas processos físicos no universo. Chamo-o de "dogma" pois é algo que não pode normalmente ser discutido com os cientistas. Uma frase muito típica nesse âmbito é: "O pensamento tem que ser físico, pois não há nada que não seja físico."

Para uma profunda análise do pensamento nessas linhas veja-se o livro de Rudolf Steiner A Filosofia da Liberdade, (São Paulo: Editora Antroposófica), injustamente ignorado pela ciência e filosofia contemporâneas desde o começo do século XX. Nesse livro, Steiner chama a atenção para mais uma característica fundamental do pensamento. Para isso, proponho mais uma experiência. Por favor, olhe para a entrada da sala onde está. O que o senhor percebe aí visualmente? Pulo algumas linhas para que a minha resposta não influencie a sua.

 

 

 

 

 

 

 

Certamente o senhor terá dito: percebo uma porta. Em muitas palestras que dou, todas as pessoas têm respondido exatamente isso, e ninguém duvida dessa resposta. Mas isso está errado! O que se percebe visualmente são impulsos luminosos, provenientes das cores diferentes da madeira, do batente, da maçaneta, das dobradiças, da parede, etc. Não se percebe uma "porta", pois este é um conceito. Conceitos não podem ser percebidos visual ou sensorialmente, pois são pensamentos. São "objetos" mentais no mundo platônico das idéias, isto é, não são objetos físicos. E como se chega, a partir do processo visual, a um conceito como o de "porta"? Por meio do pensamento! O pensamento é, segundo Steiner, um órgão de percepção de conceitos não-físicos. Portanto, seguindo um raciocínio aristotélico, ou spinozista ("Se duas coisas não têm nada em comum, uma não pode ser a causa da outra.", em sua Ética, 1ͺ parte, prop. 3), deve ter em si algo de não-físico. Pode-se também encarar o pensamento como uma ponte entre a percepção sensorial interior e o conceito – ou entre conceitos. Steiner chama a atenção de que o pensamento completa a percepção sensorial, que é sempre parcial e instantânea; por exemplo, vê-se uma árvore sempre de um determinado ângulo e num determinado momento. Ao associar-se a percepção interior de uma árvore ao conceito de árvore, estamos completando o processo, chegando à essência o objeto, ao kantiano das Ding an sich. Kant disse que, pelo fato de o pensamento ser mecânico, jamais conseguiríamos atingir a essência das coisas. Para Steiner, Kant – e toda a ciência moderna, que é essencialmente kantiana – estava errado; o ser humano, por meio do pensamento, pode justamente atingir a essência das coisas. Isso é devido ao fato de essa essência não ser física, e o pensamento ser um processo em geral parcialmente não-físico.

Estou ciente de que cientistas da cognição iriam objetar que não existe um mundo platônico das idéias, e que ao associarmos a nossa percepção visual ao conceito "porta" estamos é fazendo acesso a um símbolo gravado fisicamente em algum lugar em nosso cérebro. Não posso provar que eles estão errados, mas eles também não podem provar que o estou. Por um lado, eles não podem mostrar-me onde no cérebro localiza-se, e como, um conceito qualquer, como o de porta. Nem se sabe onde e como "armazenamos" algo trivial como o número 2! A propósito, como estaria armazenado no cérebro o "numeral' para 2, o seu conceito, independente de qualquer representação – já que ele não tem representação? A hipótese daqueles cientistas é mera especulação científica, e não um fato. Por outro lado, um auto-exame de meu próprio pensamento leva-me a considerar que minha hipótese é a válida, como mostrei acima. Vejamos outro argumento além da questão da vivência da liberdade do pensamento, como já descrevi. Por exemplo, se nosso cérebro fosse uma máquina complexa, do ponto de vista evolutivo não teria havido nenhuma razão para que a memória do objeto que vi em minha mão não seja tão nítida quanto a da percepção visual. No entanto, qualquer pessoa poderá constatar que a memória visual em geral não é tão nítida quanto a da percepção visual ativa. Digo "em geral" pois a lembrança de um desenho geométrico pode ser tão nítida quanto a sua percepção visual – aí estamos já no âmbito de uma representação física muito próxima do conceito não-físico. Atenção: jamais alguém viu uma circunferência perfeita – algo totalmente objetivo, independente da pessoa que a pensa, eterno e que, portanto, deve estar fora dela, naquele mundo platônico, não-físico, das idéias.

Bem, está na hora de eu abordar algumas questões de seu artigo. Em primeiro lugar, observe que usei uma expressão crucial: hipótese de trabalho. De fato, admito a hipótese de que existem processos não-físicos no universo, nos seres vivos e no ser humano. Isso não é , pois fé não está sujeita a revisão e não requer comprovação, justamente características fundamentais de uma hipótese. Essa minha admissão poderia ser denominada como parte de um espiritualismo científico (devo agradecer-lhe imensamente por ter, por meio de seu artigo, inspirado-me a chegar a essa denominação). Essa expressão justifica-se pois trata-se de usar a mesma atitude científica de formular hipóteses de trabalho, de querer compreender as coisas e processos, bem como descrevê-los conceitualmente. Trata-se de uma área que é um superconjunto próprio da ciência moderna: ela aceita todos os fatos científicos, mas expande enormemente os conceitos, as teorias e as experiências. Atenção: usei a expressão fatos científicos, e não julgamentos científicos. Por exemplo, o decaimento radioativo é um fato mas, a partir de experiências com ele, afirmar-se que a Terra tem cerca de 6 bilhões de anos é um julgamento – baseado em uma extrapolação grosseira que nenhum engenheiro teria coragem de fazer em seus projetos. Portanto, nem todos os julgamentos científicos que se fazem hoje em dia têm que ser aceitos pelo espiritualismo científico. Por exemplo, a teoria neo-darwinista da evolução, isto é, mutações casuais mais seleção natural, é um desses julgamentos. Uma hipótese dentro do espiritualismo científico seria de que nem todas as mutações foram e são casuais; outra é de que a seleção natural é em alguns casos a manifestação da influência do não-físico sobre o físico, isto é, não é "natural". Nesse sentido, não estou de acordo com sua afirmação de que "o cientista contrapõe indevidamente à teoria da evolução, que ele descobre..." Os cientistas não a descobriram, pois ela é uma teoria, e não um fato; não se pode provar que ela era pré-existente, portanto pode-se afirmar que foi inventada. Ela pode, em muitos casos, senão todos, não corresponder aos fatos passados. É um fato que ela é uma teoria extremamente simplista – daí seu enorme poder de persuasão. Só que a natureza é extremamente complexa: costumo afirmar "Desconfie de qualquer explicação simplista da natureza."

Talvez seja interessante colocar aqui uma das propostas que tenho de como o não-físico pode influenciar o físico, um problema que persegue há séculos a filosofia que admite a existência de processos não-físicos. Dada uma determinada célula de um organismo vivo, nos próximos instantes ela pode seguir um de três caminhos: permanecer como está, começar a se dividir (mitose ou meiose) – contribuindo assim para a regeneração, o crescimento ou reprodução do organismo –, ou começar a morrer (apoptose – este, um processo com intensa pesquisa na atualidade, sem que se tenha chegado a alguma teoria satisfatória sobre por que e quando ele ocorre). Pois bem, a escolha de um desses caminhos não requer energia. Assim, nessa escolha o modelo não-fisico do organismo pode influenciar seu desenvolvimento levando, por exemplo, às formas externas cônicas de algumas espécies de pinheiros ou esféricas formadas pelas folhas de algumas palmeiras.

O espiritualismo científico leva a uma determinada atitude de religiosidade: uma admiração profunda pela manifestação, na natureza, do que transcende os processos físicos. Por exemplo, ao olhar as citadas formas de um pinheiro ou de uma palmeira, fico extasiado com a manifestação de um processo não-físico, um modelo, uma idéia, que influencia o crescimento de cada galho ou folha a fim de que a forma geométrica aproximada seja atingida e preservada. Ou será que algum cientista materialista teria coragem de supor que cada galho ou folha conta misteriosamente aos outros o quanto cresceu para que os outros o alcancem, compare-se com os outros para interromper seu crescimento se ele foi exagerado, etc.? – lembremos que aparentemente existe uma grande aleatoriedade nos seres vivos, o que não combina com sua forma, tão precisa. Desde D’Arcy Thompson que os cientistas estão às voltas com a origem da forma dos seres vivos; já se pode afirmar que no DNA e nos genes é que ela não está – apesar de eles de alguma forma interferirem no processo. A citada atitude de extasiar-me com a forma dos seres vivos, reconhecendo nelas uma manifestação de um modelo (e, repito, todo modelo abstrato é mental e ideal, isto é, não-físico), leva-me a outra atitude de religiosidade: a de veneração. Quando observo a natureza, essas duas atitudes levam-me a outra, também de religiosidade: o reconhecimento da sabedoria que existe no mundo físico, desde o puramente material (por exemplo, se algumas constantes físicas fossem um pouco diferentes do que são, não existiríamos) até o dos organismos vivos. Para apreender-se completamente a sabedoria da natureza, é necessário não só um enfoque intelectual, mas também artístico. Em especial, tenho uma profunda admiração pela maior sabedoria presente no universo físico, o corpo humano, essa maravilhosa obra de arte com uma perfeição técnica que ultrapassa qualquer pensamento baseado exclusivamente no mundo físico. Comparar o corpo físico humano a uma máquina parece-me o supra-sumo de falta de veneração, no caso, fruto de falta de sensibilidade para com o que é transcendente. A infinita sabedoria que observo na natureza leva-me à hipótese de que nela quase tudo, ou talvez tudo, é intencional, isto é, tem sua origem no mundo não-físico das idéias, mesmo durante as tentativas da evolução, não sendo fruto do acaso.

Por falar em acaso, o espiritualismo científico leva-me a não acreditar em nada (perdão, a única coisa em que acredito é que não acredito em nada...). E a primeira coisa em que não acredito é no acaso. Parece-me que o acaso é simples falta de conhecimento das causas e efeitos profundos. Por exemplo, se tomo conscientemente uma decisão de seguir um de dois caminhos possíveis, externamente pode parecer que minha escolha foi devida ao acaso, mas eu sei que foi uma decisão consciente e não foi uma atitude aleatória. A admissão da existência de processos não-físicos leva a uma enorme ampliação da pesquisa de causas e efeitos. De fato, a tendência geral é considerar-se, por exemplo, um acidente grave ou fatal com uma pessoa como obra do acaso; com isso encerra-se totalmente a pesquisa. Por outro lado, admitir-se que não há acasos leva a uma busca do que levou a pessoa àquela situação naquele preciso instante. Todos devem conhecer casos em que um grande número de coincidências levaram uma pessoa à situação de um acidente. Permito-me citar um recente, de meu conhecimento. Trata-se do caso de um ex-aluno meu, Roger, que estava no acidente de agosto de 2004, em Guarulhos, SP, em que uma laje desabou em uma danceteria. Ele estava justo embaixo do vértice do V formado pelo rompimento da laje acima dele, tendo perdido uma perna. Um primo seu morreu, e outro saiu totalmente ileso, pois poucos instantes antes tinha recebido uma ligação em seu celular de um irmão do Roger que não tinha ido à danceteria e sim a um casamento, mas iria a ela em seguida; esse segundo primo, para ouvir a ligação melhor, foi ao banheiro ao lado, o que o salvou. Roger conta que antes do acidente toda vez que encontrava alguém em cadeira de rodas ou aleijado sentia uma espécie de "nostalgia" (sic), como se aquele acidente fizesse parte esperada do curso de sua vida... Aliás, Roger permitiu-me que relatasse que, no acidente, teve uma experiência típica de quase-morte: presenciou interiormente o desenrolar instantâneo de toda a sua vida, o que é denominado nos círculos que conhecem esse fenômeno de "visão do panorama", relativamente comum em pessoas que passam por um choque de perigo de vida. A visão do panorama não tem explicação física, sendo uma vivência tão íntima e intensa, saindo do cotidiano físico, que as pessoas que a experimentam passam em geral a admitir a existência de algo não-físico no universo. Essa, aliás, a explicação para a antiga cerimônia do batismo: o mestre mergulhava o discípulo na água até ele quase sufocar, provocando uma experiência de quase-morte (hoje em dia temos outra constituição e isso seria extremamente perigoso, não sendo a forma correta de se vivenciar o não-físico).

Portanto, a admissão do espiritualismo científico leva à ampliação da pesquisa e da atitude científicas, e não a uma restrição das mesmas. É uma tragédia que a hipótese contrária, a materialista, impeça os cientistas da cognição de pesquisarem a real essência do nosso pensamento. Por exemplo, eles iriam confirmar a afirmação de Steiner de que o cérebro é necessário pois reflete o pensamento não-físico, permitindo que dele tenhamos consciência. Não é à toa que refletir é um sinônimo de pensar! Muitos dos conceitos atuais de cognição baseiam-se em experiências com tomografia ou ressonância magnética, ou no fato de que pessoas que tiveram lesão em parte do cérebro perderam determinadas capacidades – mas isso de modo algum prova que essas capacidades residem na parte afetada do cérebro e são nela geradas, e sim que essa parte está simplesmente envolvida no processo mental, por exemplo, para refletir à mente parte do fenômeno não-fisico, provendo com isso consciência necessária a seu controle. Steiner dá a esse respeito a seguinte analogia: só olhando-se num espelho uma pessoa tem consciência da forma visual de seu rosto. Se o espelho quebrar, aquela forma continua, mas a pessoa não tem mais consciência da mesma. No caso do pensamento o reflexo produzido pelo cérebro físico, levando à consciência do que se está pensando, permite o controle do pensar, permitindo pensar-se o que se deseja.

Uma das ampliações da pesquisa científica seria a admissão de que nem todos os fenômenos que são objetos da ciência são reprodutíveis. De fato, todas as vivências de um ser humano são nele incorporadas e mudam seu estado. Por exemplo, se o senhor teve paciência de ler este meu arrazoado até aqui, não é mais exatamente a mesma pessoa do que quando começou a lê-lo! A exigência da reprodutibilidade das experiências necessariamente leva a uma ciência parcialmente desumana, pois ignora a não-reprodutibiliadade das vivências individuais. Um outro exemplo é que nem todos os fenômenos podem ser mostrados publicamente em um laboratório: é esse o caso com nossos sentimentos. É simplesmente impossível a uma pessoa fazer uma outra sentir o mesmo sentimento que a primeira está sentindo. Por exemplo, se alguém por algum motivo alegrar-se, pode até mostrar que ficou alegre, mas o seu sentimento de alegria é exclusivamente seu; outra pessoa terá o seu próprio, diferente da primeira. A individualidade e subjetividade dos sentimentos é um dos argumentos que uso para mostrar que o ser humano não é uma máquina (aliás, expressão totalmente errada do ponto de vista lingüístico, pois todas as máquinas foram projetadas e construídas e o ser humano não – o correto é dizer-se que o ser humano é um ser puramente físico, parte do "dogma central da ciência contemporânea"): todas as máquinas são universais; em particular, as digitais. Estas, dada capacidade suficiente de processamento, podem simular qualquer outra máquina digital. As máquinas analógicas de um mesmo modelo têm todas o mesmo projeto e foram construídas da mesma maneira, de modo que é impossível associar a elas uma "individalidade" no sentido humano. Em outras palavras, podemos associar individualidade ao ser humano, mas não a uma máquina (para maiores detalhes, veja meu artigo "AI - Artificial Intelligence or Automated Imbecility? Can machines think and feel?" em meu site). Parte da hipótese da espiritualidade científica é que existe uma individualidade "superior" no ser humano, que não é o seu aspecto físico ou seus instintos, impulsos, desejos e sentimentos individuais, mas um determinado componente de sua organização não-fisica.

Esse componente não-físico único de cada ser humano, que lhe dá a "individualidade superior", é da natureza dos pensamentos, por isso ele pode atingir com seu pensamento os "objetos" do mundo platônico das idéias e reconhecer conceitos como o de porta. A parte não-física dos animais não chega ao nível daquela individualidade humana superior, e é por causa disso que eles não são auto-conscientes, não conseguem pensar e não têm liberdade. Assim, poderíamos dizer que cada ser humano tem algo de divino dentro de si. Parece-me que muitas vezes, quando pessoas dizem "ai, meu Deus!", estão inconscientemente apelando para essa individualidade superior, esse algo de divino, que têm dentro de si. Aliás, já que usei a palavra Deus, que aparece em seu artigo, gostaria de chamar a atenção para o fato de ela hoje em dia não indicar algo claro, e é por isso que procuro evitá-la. Por exemplo, a conhecida reza, que está no Pentateuco, "Shmá Israel, adonai eloheinu, adonai echad" ("ouve, Israel, os seus 'elohim' são o seu senhor, o seu senhor é único") pode ser perfeitamente interpretada como indicando que uma certa divindade, ou categoria delas (os elohim – está no plural, combinada com o possessivo!), é o único senhor divino de Israel, isto é, existem outros, mas um só foi associado àquele povo da antigüidade. Assim, essa questão do monoteísmo deve ser colocada na perspectiva correta de interpretação das escrituras e de tradições. Um outro detalhe é que em português usa-se Deus para duas denominações hebraicas diferentes: os elohim e o Iehová (nas imagens da Gênese, os primeiros é que criam o universo, e o segundo aparece só mais tarde). Algumas traduções da bíblia fazem a distinção, chamando os primeiros de Deus e o segundo de Senhor, e quando em hebraico aparece a combinação "Iehová elohim" traduz-se por Senhor Deus; em outras usa-se explicitamente Jeová para a segunda divindade, e a combinação das duas aparece como Deus Jeová. Isso pode ser interpretado como tendo havido uma intuição de que havia a atuação de seres divinos diferentes.

Muito de seu interessante artigo baseia-se no aparente desconhecimento da possibilidade da existência do espiritualismo científico. Cita Bobbio em "o grande contraste não é entre a fé e a razão filosófica, e sim entre a fé e a razão científica"; o senhor acrescenta "não se compreende que se esteja subordinando a esta algo a que somente podemos aludir em termos humanos, isto é, fora e além das relações cognitivas." Se entendermos "razão filosófica" como nosso espiritualismo científico (que no entanto não é uma vã filosofia, pois abarca todo o enfoque científico clássico, expandindo-o, como descrevi, tendo ainda aplicações práticas em todas as atividades humanas), a frase de Bobbio fica clara: é óbvio que existe um abismo entre a atitude de fé e a razão científica atual, pois têm enfoques incompatíveis, já que a primeira esgota-se no sentimento de que está correta, e a segunda não se baseia de modo algum em sentimentos. Além disso, a primeira não é expressa em conceitos e a segunda o é. Mas não há abismo entre a fé e o espiritualismo científico, apesar de os enfoques serem também diferentes. Ele faz-nos compreender o âmbito dos sentimentos e entender a atitude dos que têm fé. O que está subordinado à razão científica atual é apenas a matéria e as leis físicas; somente com o espiritualismo científico pode-se ampliá-la para tratar e compreender o que não é físico, incluindo a fé e a religiosidade. É por isso que Steiner, usando-o, pode fazer-nos entender conceitualmente muito das antigas religiões, em grandiosas obras que são largamente ignoradas, infelizmente por desconhecimento ou, talvez em sua maior parte, por preconceito materialista. Por exemplo, como citou Andrew Welburn, professor de história da universidade de Londres e do New College de Oxford, em The Beginnings of Christianity – Essene mystery, Gnostic revelation and the Christian vision (Edinburgh: Floris Books; aparentemente existe uma tradução, talvez As Origens do Cristianismo, provavelmente da Ed. Pensamento, esgotada), jamais se deveria ignorar o que Steiner descreveu ao redor de 1910 sobre os essênios e que foi confirmado pelos manuscritos do Mar Morto, descobertos apenas ao redor de 1950 – a propósito, estamos justamente com uma interessante amostra dos mesmos em exposição em São Paulo. Essa confirmação deveria bastar para assumirmos com confiança a hipótese de trabalho de estar correto aquilo que ele afirmou sobre as antigas religiões, em especial sobre o zaratustrismo, o judaísmo, o budismo e sua fusão no cristianismo. Em particular, a razão científica não pode jamais compreender o budismo, pois ele baseia-se essencialmente na libertação do sofrimento individual humano pela interrupção da "roda das reencarnações", um conceito totalmente sem sentido de um ponto de vista estritamente físico. Por outro lado, a fé baseada no judaísmo e no cristianismo sofre do mesmo mal pois, por necessidade da evolução da humanidade – a queda temporária profunda na matéria e no materialismo, a fim de que pudéssemos desenvolver a auto-consciência, a individualidade e a liberdade –, o conceito de reencarnação devia desaparecer, o que foi magistralmente feito por ambos os enfoques religiosos. É importante reconhecer que tanto a razão científica como a fé atuais fazem com que as religiões da antigüidade sejam totalmente incompreensíveis; ambas destroem nossa relação, de pessoas que buscam uma compreensão profunda da história, em particular das religiões e da religiosidade, para com nossos antepassados. Está na hora de transpormos esse abismo que foi erguido entre nós e eles, incluindo suas escrituras.

O senhor escreve "O que está errado, pois, é a colocação do problema da fé no domínio do conhecimento." Se esse for o conhecimento que segue os paradigmas da ciência corrente, sua frase está absolutamente correta. Mas não está se o conhecimento for o obtido com o espiritualismo científico.

O senhor afirma "creio por ser absurdo não crer". Com o espiritualismo científico, a crença é substituída por compreensão conceitual, o que está de acordo com nossa constituição humana atual: ninguém com um mínimo de cultura quer acreditar cegamente, nem quer ser sujeito a dogmas; quer, sim, compreender o porquê de certa atitude recomendada ou enfoque mental estarem corretos; quer poder experimentar por si próprio aquilo que admite como hipótese de trabalho – e isso é possível também no âmbito não-físico! Mesmo se não puder fazer sua própria experimentação, o ser humano moderno quer, em uma atitude científica, poder assumir hipóteses de trabalho de uma conceituação logicamente coerente, que apele exclusivamente ao seu intelecto e não aos seus sentimentos, e não contradiga todas as suas experiências do mundo exterior e de seu próprio interior.

Finalmente, o senhor termina citando lógicas não-clássicas, como a paraconsistente do colega Newton C.A. da Costa, dizendo: "Não há, por conseguinte, exagero quando se afirma que, em nossos dias, se alargam os horizontes da razão, não mais presa a limites intransponíveis, como os que foram, por exemplo, fixados por Kant." Infelizmente, o caso das lógicas não-clássicas limita-se a algo puramente abstrato e formal. Processo semelhante levou a mecânica quântica a postular a existência de grandezas sem limite físico clássico, isto é, incompreensíveis para nós dentro de uma visão materialista, como o spin das partículas atômicas – que não tem nada de energia de rotação, como o nome aparentemente indica. Não me parece que é por causa dessas construções mentais que se alargam fundamentalmente os horizontes da razão, pois o paradigma do "dogma central da ciência contemporânea" continua sendo seguido, isto é, a ciência continua materialista. Os horizontes da razão realmente alargar-se-iam, indo a novas direções, se o materialismo fosse suplantado, passando-se a algo como o que chamei de espiritualismo científico. Resta aos cientistas e filósofos terem coragem de dar esse passo fundamental não só para o conhecimento, mas para o futuro da humanidade – já que as conseqüências da ciência e da técnica materialistas, que se tornaram em grande parte desumanas, estão claramente destruindo a nossa Terra e a nós próprios. Para isso, deveriam munir-se da coragem de abandonar sua caverna como a citada por Platão, onde só vêem as sombras (a matéria) das coisas. Coragem para se imergirem nesse novo mundo de idéias, a ponto de perceberem que, admitindo-o e pesquisando nele, não estarão abdicando de nenhuma atitude científica básica e não terão caído em misticismos, nos sentimentos e na fé. Aí poderemos conversar sobre religiosidade.

Valdemar W. Setzer
Depto. de Ciência da Computação, Instituto de Matemática e Estatística da USP

www.ime.usp.br/~vwsetzer
Campos do Jordão, 19/12/04; última revisao em 3/2/08.

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Ver também os artigos posteriores

Por que sou espiritualista

Ciência, religião e espiritualidade (onde o "espiritualismo científico" é retomado e conceituado)

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