Por que os engenheiros do ITA têm tanto sucesso profissional?

Por Valdemar W. Setzer (ELE 63) - www.ime.usp.br/~vwsetzer

Assistindo a excelente palestra do Reitor Reginaldo Santos em 13/7/10 na Regional São Paulo da AEITA (Associação dos Engenheiros do ITA), ocorreu-me formular a mim mesmo a pergunta do título acima. (A propósito, não está mais do que na hora de mudar a denominação para Diretor? Afinal, o ITA não é uma universidade para ter um reitor, é uma faculdade de engenharia, e todas as faculdades no Brasil têm é um diretor!)

Sou conhecido em grande parte pelas minhas ideias e concepção de mundo pouco ortodoxas; vejam por exemplo meus artigos em meu site. Pois vou expor aqui mais uma delas, respondendo minha pergunta. Porém, em primeiro lugar, deixem-me colocar a resposta que provavelmente é a padrão: os engenheiros do ITA têm tanto sucesso profissional devido à sua excelente formação acadêmica.

Pois para mim não é nada disso. Vou direto à minha tese, que tem duas partes: 1. A concorrência do vestibular faz com que os alunos do ITA tenham um nível intelectual muito alto; 2. O "efeito H8" (para os não iteanos: H8 é o codinome dos prédios onde moram os alunos do ITA).

A primeira causa do sucesso dos iteanos não precisa ser discutida. Seria apenas interessante caracterizar o que denominei por "nível intelectual". Usando a classificação das inteligências de Howard Gardner, trata-se do conjunto dos níveis das inteligências lógico-matemática e linguística. No nosso mundo infelizmente excessivamente técnico e intelectualizado, essas capacidades intelectuais são fundamentais para um sucesso profissional. Tenho a impressão de que elas se manifestam principalmente na capacidade de aprender, em qualquer área intelectual.

Ora, como o próprio Gardner enfatiza, e também Daniel Goleman, não são essas as inteligências mais importantes para o sucesso profissional, e sim o que o primeiro chamou de "inteligência interpessoal" e o segundo de "inteligência emocional", e o que denomino de "inteligência social". Desenvolvi minha própria teoria a respeito. Essa inteligência é trimembrada, isto é, tem as três partes seguintes, cada qual com suas funções próprias, mas que se interceptam e deveriam funcionar harmonicamente, como na nossa constituição física cabeça, tronco e membros (a ordem abaixo tem uma relação profunda com a ordem desses três últimos):

1. Percepção e sensibilidade sociais. A percepção social significa estar aberto ao outro e perceber suas características. A sensibilidade social significa perceber especificamente as necessidades e habilidades do outro.

2. Compaixão e "com-alegria". Ambas têm a ver com a habilidade de sentir com o outro. Se este está sofrendo, sofrer junto com ele; se está contente, alegrar-se com ele.

3. Responsabilidade e ação sociais. Já é muita coisa ter percepção e sensibilidade sociais, e também sentir com o outro. Mas isso não leva a nada se não resulta em um impulso de agir socialmente em benefício do outro, o que chamo de ter responsabilidade social. E também não é suficiente ter esse impulso: é necessário levá-lo à ação e realizar algo social no mundo. É com essas habilidades que, percebendo-se certas necessidades dos outros, faz-se algo para satisfazê-las; atenção para o fato de que as necessidades podem ser físicas (por exemplo um local adequado de trabalho), culturais (p.ex. possibilidade de aprender) ou individuais (p.ex. possibilidade de criar). Percebendo-se as habilidades do outro, cria-se um ambiente para que ele possa exercitá-las. Sentindo-se algum sofrimento, alguma tristeza no outro, tentamos fazer algo para minorá-los ou revertê-los em alegria.

Pois bem, pergunto: nós aprendemos essas habilidades, constituintes da inteligência social, nas salas de aula do ITA? Não, nós as aprendemos no H8! A convivência social, diária, durante 5 anos em idade praticamente adulta, foi absolutamente extraordinária. Todos tivemos que aprender a tolerar as idiossincrasias de nossos colegas e a nos ajudar mutuamente. Um exemplo pessoal: eu fui morar com um colega bem mais adiantado; depois de algum tempo, achando algumas coisas estranhas, percebi que ninguém tinha conseguido morar com ele (por isso havia uma vaga em seu quarto, num daqueles apartamentos de então com apenas 2 quartos, e não de três), e isso me levou a fazer mais empenho em consegui-lo. Foi no H8 que desenvolvemos as habilidades sociais acima citadas, foi nele que desenvolvemos nossa inteligência interpessoal ou emocional. É óbvio que havia ainda a convivência diária fora dele, mas usei-o apenas para dar um rótulo. Vou ainda englobar no "efeito H8" a "disciplina consciente" que certamente ajuda no desenvolvimento da responsabilidade social dos alunos, e a convivência com os professores, que também moravam no campus. Essa convivência produzia um respeito mútuo que, por exemplo, não encontro em vários colegas da USP que simplesmente desprezam os seus alunos.

Agora chego a um ponto absolutamente essencial. Se estou correto, e o mais importante desenvolvimento que fizemos no ITA foi o social, para que fomos massacrados com um trabalho intelectual infernal? É óbvio que esse trabalho também nos desenvolveu intelectual e cientificamente mas, se esse aspecto, segundo minha óptica, é secundário, por que nos forçaram a estudar e a trabalhar intelectualmente feito burros de carga de teorias e fórmulas? Não sei como está a situação hoje, mas na minha época no ciclo fundamental tínhamos uma prova de matemática a cada semana. Pois eu não sou capaz de dizer o que aprendi em cada uma dessas disciplinas, a menos de coisas muito vagas (p. ex. "sequência de intervalos encaixantes"...). Nunca vou esquecer o exame final de Física no fim do primeiro semestre – não o conteúdo, mas o seguinte: para fazê-lo, trabalhei 3 horas no ITA, e depois levei-o para casa em São Paulo e trabalhei mais 4 horas (e o pior é que todos sabíamos do critério de notas do então Departamento de Física: os professores jogavam as provas para o alto, as que caíam no chão recebiam zero, as que caíam em cima da mesa ficavam com 6,5 e as que não caíam tiravam 10...). Em cada semestre da disciplina de Controle tínhamos três aulas por semana, com uma série de exercícios para entregar de cada aula para a seguinte; no fim de cada semestre eu tinha dois fichários de 5 cm de espessura cheios dos exercícios que eu tinha feito (e a única coisa que lembro disso tudo era que havia uma tal de transformada de Laplace...). Para que, senhores, para que tanto massacre?

Certamente poderíamos ter aprendido o essencial, e feito o necessário desenvolvimento intelectual e científico sem todo esse massacre, sem a tensão e a sem a falta de sono que nos perseguia constantemente.

Concluindo, preciso dizer que a humanidade está cada vez mais antissocial. Portanto, o desenvolvimento da sociabilidade dos alunos, em todos os níveis de escolaridade, está ficando cada vez mais premente. O "efeito H8" preenche uma boa parte dessa necessidade. Mas queria deixar duas propostas concretas para melhorar aquele desenvolvimento ainda mais. A primeira é que se discutam atividades que podem ser tomadas para o desenvolvimento social consciente dos alunos, como por exemplo ações sociais conjuntas em prol de necessitados da região. A segunda é fundamental e claramente implementável: que se introduzam disciplinas de atividades artísticas obrigatórias, como Leitura Dramática (introduzi uma disciplina dessas no Instituto de Matemática e Estatística da USP, com enorme sucesso; infelizmente ainda é só uma optativa, vejam artigo em meu site), flauta doce (o instrumento ideal para iniciação musical), canto coral, cerâmica, pintura, etc. A atividade artística equilibra o trabalho intelectual abstrato, e dá energias para enfrentar este último, sendo também uma ferramenta extraordinária para o desenvolvimento social. Costumo brincar com um exemplo de um aluno que chega de manhã à USP todo contente dizendo para si: "Oba, hoje teremos Leitura Dramática". Mas quero ver alguém achar um aluno dizendo "Oba, hoje teremos Cálculo III!" (Nada contra Cálculo III do IME-USP, é só um exemplo fictício!)

Aposto que se essas duas propostas forem implementadas, especialmente a segunda, e que se a exigência intelectual, se continua como era em minha época, passe a ser mais razoável e menos massacrante, o ITA formará engenheiros humanamente mais completos, de ainda muito mais sucesso e de impacto muito maior na sociedade.