RELIGIÃO E DARWINISMO
COMENTÁRIOS A UMA ENTREVISTA COM AZIM SHARIFF

Valdemar W. Setzer
Depto. de Ciência da Computação da USP
www. ime.usp.br/~vwsetzer
1/1/09

Este ensaio contém comentários às afirmações de Azim Shariff, publicadas em entrevista publicada na Folha de São Paulo em 25/12/08. Os trechos originais da entrevista são apresentados na íntegra, envoltos em parênteses angulares triplos (<<< e >>>), seguidos de meus comentários sem esses parênteses.

Agradeço imensamente ao amigo Edson Dognaldo Gil por ter me encaminhado a entrevista, que provocou estas reflexões. O original da mesma está em

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe2512200801.htm

 

 

<<<ENTREVISTA

AZIM SHARIFF

A religião incentiva o comportamento altruísta

Para psicólogo que trabalha sob óptica da evolução, crença em Deus promove ajuda mútua, mas só em certas condições

O GRANDE conflito opondo ideologias laicas e religiosas hoje está na biologia, com o movimento criacionista tentando impor às escolas o ensino de conceitos do Gênesis bíblico como alternativa à teoria de Darwin. Um grupo de psicólogos que trabalha numa frente menos conhecida, enquanto isso, cria controvérsia por outro motivo: eles tentam usar a evolução para explicar por que a religião surgiu. Segundo o canadense Azim Shariff, porém, é justamente porque ela promove o bem.>>>

Vou tratar o problema educacional do criacionismo vs. evolucionismo mais adiante.

Existe explicação evolucionista para quase tudo no mundo; obviamente, as religiões não ficariam imunes a esse tipo de especulação.

<<<RAFAEL GARCIA
DA REPORTAGEM LOCAL

Em parceira com o psicólogo Ara Norenzayam, Shrarif publicou neste ano um estudo na prestigiosa revista "Science".

Os dois defendem a teoria de que a religião surgiu em sociedades humanas arcaicas porque promove a cooperação dentro de grupos de pessoas.

Experimentos comportamentais, porém, mostram que isso ocorre mais apenas quando o ato altruísta contribui para a reputação das pessoas. Em entrevista à Folha Shariff falou sobre seu trabalho.>>>

Se alguém faz um ato de altruísmo para obter qualquer vantagem pessoal ou para sua comunidade, como por exemplo aumento da reputação, o ato não é altruísta.

<<<FOLHA - Best-sellers como os do jornalista Christopher Hitchens e do biólogo Richard Dawkins apontam a religião como fonte de conflito. Seus estudos, porém, indicam que a crença religiosa dá vantagem evolutiva a grupos humanos, porque incentiva a cooperação. O que acontece, então, é justamente o oposto?

AZIM SHARIFF - Eu não diria que é o oposto. Hitchens e Dawkins estão adotando um ângulo uniformemente negativo sobre religião. >>>

De certo ponto de vista, com toda a razão, pois as religiões instituídas são todas dogmáticas, e não se dirigem à compreensão, e sim aos sentimentos. Nenhum ser humano da atualidade, com uma certa cultura, quer ser mandado; todos querem compreender por que devem seguir uma certa lei ou norma, isto é, querem entender por que elas são justas, e segui-las com plena consciência. Além disso, é preciso reconhecer que a idéia de Deus, central a todas as religiões ocidentais, e às orientais um pouco mais recentes, virou mera abstração, e até uma grande confusão. Por exemplo, Einstein era contra a idéia de um Deus pessoal, que premia e pune. Ele estava de acordo com a constituição do ser humano moderno, que quer assumir responsabilidades e não sentir que suas ações são impostas. Além disso, Dawkins mostra muito bem que, se forem seguidas as escrituras de várias religiões, não pode haver desenvolvimento moral. Veja-se, por exemplo, a matança, até mesmo com uma política de terra arrasada, presente no Pentateuco. O que era adequado para aquela época não é mais para os dias de hoje. Infelizmente, as religiões pouco evoluíram em sua visão de mundo.

<<<Se você procura algo mais próximo da verdade, será mais equilibrado. Obviamente, não vai descobrir que a religião é uma coisa totalmente boa, da mesma forma que ela não é totalmente ruim. Nós mostramos que ela promove algum bem, mas apenas quando condições específicas são cumpridas.>>>

Só que as religiões instituídas em geral não procuram a verdade. Quem procura a verdade não pode ter preconceitos e ser dogmático. O primeiro preconceito de qualquer religião é achar que é dona da verdade, isto é, as outras religiões necessariamente contêm falsidades. Isso pode não ser propagado por sacerdotes que procuram comportar-se como seres humanos modernos, mas é uma consequência lógica, pois as interpretações e pontos de vista são conflitantes. Um exemplo: o judaísmo e o islamismo não conferem ao Cristo Jesus um caráter de divindade; no segundo caso, certamente não no mesmo grau que todas as religiões cristãs.

<<<Nossa pesquisa em geral causa reação de desapontamento tanto entre pessoas contra quanto a favor da religião, porque ela não diz que ela é má, como Hitchens, e não diz que a religião é boa, como aqueles que pregam suas religiões. Nós descobrimos, de fato, que a religião incentiva o comportamento pró-social, mas não pelas razões que as pessoas religiosas gostariam de acreditar.>>>

Algumas religiões contêm preceitos morais adequados para a vida moderna, como por exemplo “não matarás”, “não roubarás”, etc. que, se seguidos fielmente, levam a um comportamento pró-social. Infelizmente, isso é imposto como dogma; muitas pessoas intuitivamente reconhecem a validade de tais preceitos, e por isso os seguem com confiança. Mas esse enfoque, ao meu ver, é errado para os dias de hoje. Preceitos morais deveriam ser estabelecidos por cada pessoa, a partir de um conhecimento do que o ser humano e a natureza são. Por exemplo, o reconhecimento da existência de uma individualidade superior em cada ser humano, que vive para poder aperfeiçoar-se – e esse aperfeiçoamento é justamente moral, pois só com conhecimento podem-se, por exemplo, construir bombas para matar seres humanos –, deveria levar necessariamente ao “não matarás”. Isso se deve ao fato de não termos direito e nem conhecimento suficiente para dizer que um ser humano, por pior que seja socialmente, deve ser destruído. Isso não significa que a sociedade não deve proteger-se e confiná-lo.

<<<FOLHA - Vocês citam estudos mostrando que o comportamento cooperativo, pró-social da religião, existe mais quando o altruísmo ajuda a melhorar a reputação da pessoa. Isso revela algo cínico ou egoísta?

SHARIFF - Sim, mas as razões conscientes que temos para nossas ações pró-sociais são muito limitadas. Não temos acesso total às nossas próprias motivações. As pesquisas das ciências cognitivas sobre moral apontam que normalmente agimos por motivos egoístas. Humanos são feitos assim.>>>

Sim, e isso está levando à destruição da natureza e dos indivíduos. No último caso, não só física, mas também psicológica e psíquicamente. Só que o ser humano forma justamente a única espécie que tem a possibilidade de sublimar o egoísmo e agir altruisticamente. É interessante que nessa resposta Shariff não nega o altruísmo, levantado pelo entrevistador, de modo que necessariamente ele reconhece que o altruísmo existe. Digo isso pois, do ponto de vista estritamente científico, o altruísmo deve ser necessariamente negado – talvez por isso ele não emprega essa palavra. Da matéria não pode advir altruísmo; é necessária a atuação de algo não-físico para que advenha um real altruísmo. No entanto, a ciência feita pelos cientistas de hoje é praticamente 100% materialista, isto é, parte do princípio, em geral verdadeira fé, que só existem matéria e energias físicas no universo. Assim, ela não parte da hipótese da existência de fenômenos não-físicos nos seres vivos e no universo. Veja-se meu artigo Ciência, religião e espiritualidade, em meu site, para detalhes sobre isso.

<<<Normas culturais não existem por motivos egoístas, mas são egoístas da perspectiva do grupo. Qualquer ação nossa é motivada em certa medida por auto-interesse. O fato de a religião cooptar esse auto-interesse não a torna pior do que qualquer outra motivação que tenhamos para fazer o bem.>>>

Aqui ele está sendo incoerente, pois afirma que não existe ação altruísta. Mas, então, por que não negou a existência do altruísmo antes? Provavelmente para ele o altruísmo é uma aparência, e não uma realidade.

<<<FOLHA - Seu estudo dá a entender que a crença em um Deus moral e capaz de punir foi boa no passado porque ajudou sociedades com uma espécie de "vigilância" em prol da cooperação. É isso que aconteceu?

SHARIFF - Sim, essa é a teoria que estamos trabalhando. Antigamente, nas sociedades humanas, quando não havia grandes sistemas judiciários, a vigilância era limitada. As pessoas tinham que monitorar a reputação de todas as outras, e era muito mais fácil para os trapaceiros evitarem ser pegos. O que a religião fez foi "terceirizar" toda essa vigilância para um ser onisciente, que poderia vigiar e punir todo mundo. A partir de então, as pessoas não trapaceariam, ou seriam incentivadas a não fazê-lo, porque não teriam como escapar de Deus da mesma forma que escondiam suas trapaças das pessoas comuns.>>>

Não. Como um bom materialista, para ele o ser humano nunca mudou, o que mudou foi a cultura. Ele não consegue admitir que o ser humano mudou – e isso pode ser visto claramente, por exemplo, em certas iniciativas ecológicas, como a proteção às baleias. Duvido que haja alguma razão material para que não se as destruam – afinal, elas estão no fim da cadeia alimentar. Um outro exemplo é a noção de liberdade individual. Grandes humanistas de alguns séculos atrás (ou até de muitos, como o caso de Platão, veja-se por exemplo sua Republica), não se importaram com a escravidão, tendo-a achado algo natural. Hoje nossa individualidade superior desenvolveu-se a tal ponto que reconhecemos intuitivamente em cada ser humano algo da mesma natureza que a nossa própria individualidade; como prezamos hoje em dia a liberdade, reconhecemos que os outros também prezam a sua. Isso de modo algum era o caso na antiguidade.

Um outro ponto é que para ele claramente a divindade era na antiguidade uma invenção, uma superstição, uma historinha, não tendo nenhuma realidade. Isso está de acordo com a mentalidade materialista de hoje. No entanto, é possível partir de um outro ponto de vista, admitindo-se como hipótese de trabalho a existência de fenômenos e processos não-físicos, e até mesmo de seres que não tem manifestação física. Leia-se em meu artigo citado considerações sobre o monoteísmo, onde mostro que ele não existia, por exemplo, no judaísmo original. Só para citar um exemplo, o primeiro Mandamento diz “Não terás outros deuses diante de mim”, o que pode perfeitamente ser interpretado como reconhecendo a existência de vários seres divinos, mas que só um deles estava associado e guiava o povo israelita.

<<<FOLHA - Como a psicologia evolutiva busca evidências para saber o que aconteceu no passado, já que não pode viajar no tempo para saber como as pessoas pensavam?

SHARIFF - É verdade que as alegações em psicologia evolutiva são difíceis de comprovar. O que tentamos fazer é usar evidências de diversas outras áreas da ciência. Nós combinamos psicologia social experimental moderna com evidências antropológicas que analisam como os grupos desenvolveram crenças e rituais no passado, e se isso contribuiu para sua durabilidade.>>>

Muito interessante. Ele está confirmando que as teorias da psicologia evolutiva são meras elucubrações mentais. Ele está tentando desenvolver uma teoria materialista para o desenvolvimento de crenças e rituais. Dessa maneira ele se choca frontalmente com a humanidade da antiguidade, que considerava a divindade como algo real e atuante. Acontece que naquela época o ser humano não tinha desenvolvido sua intelectualidade como a possuímos hoje, de modo que não conseguia exprimir suas vivências por meio de conceitos, como fazemos com nossas teorias. Eles as exprimiam em forma de imagens, como é o caso de todos os mitos – até mesmo na Idade Média, como o de Parsifal e o Graal, como por exemplo na versão de Wolfram Von Eschenbach (ver o livro de minha esposa Sonia Setzer a respeito, anunciado em minha home page). Uma análise materialista dessas imagens simplesmente não faz sentido e não capta a realidade que elas representam.

<<<Nós argumentamos que sociedades que adotam crenças em deuses poderosos costuma [sic] ser maiores, e duram mais, você precisa olhar para a história e ver se ela apóia essa tese. E ela suporta, porque você pode generalizar isso para todos os grupos ao longo do tempo. Um estudo que mencionamos é sobre comunidades laicas e religiosas nos EUA. Descobrimos que em comunidades religiosas, costuma durar mais do que as comunidades laicas.>>>

E não poderia ser diferente, pois qualquer comunidade adota princípios que a protegem. A pergunta que deveria ser feita é se essas comunidades conseguem sobreviver forçadamente, isto é, adotando princípios que não correspondem à natureza humana de hoje. Por exemplo, adotando atitudes sociais dogmáticas, que limitam a liberdade dos seus membros. No fundo, isso seria uma volta ao passado. Aliás, todos os grupos religiosos fundamentalistas parecem claramente buscar uma volta ao passado, o que é um contrasenso. O ser humano evolui (atenção, não no sentido darwinista!) e o passado não pode ser mais forçado de volta, sob pena de alguma degeneração. Nesse sentido, seria interessante observar, por exemplo, se as comunidades religiosas que persistiram por muito tempo, até os dias de hoje, deram alguma contribuição intelectual, científica, artística ou social para o mundo, o que seria de esperar de uma sociedade que fosse realmente encaixada no mundo atual.

<<<Olhando o registro histórico, também vemos que grupos que enfrentaram desafios para estabelecer a colaboração próxima são mais propensos a adotar crença religiosa, o que facilita esse tipo de cooperação.>>>

Isso ocorreu enquanto as pessoas percebiam ou sentiam que havia algo de real por detrás das religiões, ou as tradições eram ainda suficientemente fortes para impor idéias e atitudes. Tudo isso desapareceu. O ser humano mergulhou tão fundo na matéria, que normalmente considera hoje qualquer coisa imaterial como uma “historinha”. Aliás, esse mergulho foi uma necessidade da humanidade, pois se ela não tivesse se afastado dos mundos divinos não poderia ter desenvolvido a liberdade, já que seria sempre guiada. (Uma palavrinha sobre a “normalidade”: nem tudo o que é “normal” é correto ou mesmo sadio: é normal ter cáries, mas isso não é sadio.)

<<<FOLHA - Cristianismo, islamismo e judaísmo cresceram por possuírem essas características?

SHARIFF - Absolutamente, sim. Mesmo com a maioria das religiões do mundo não possuindo esses grandes agentes punitivos, as religiões que o possuem têm a maioria dos fiéis. Parte disso é pelo modo como elas funcionam. Há outras coisas sobre o cristianismo e o islamismo, é que são religiões profetizantes, com iniciativas de disseminação missionária que as permitem crescer mais rapidamente do que outras religiões. É um processo de evolução da religião. Hoje nos EUA partes do cristianismo estão mudando de acordo com as novas condições sociais em que se encontram.>>>

Acho que ele quis dizer “catequizantes”, e não “profetizantes”. O judaísmo é profetizante (ou era, em suas origens), mas jamais foi catequizante. Aliás, isso se deu pois os israelitas consideravam-se o “povo escolhido”, o que fazia sentido na antiguidade remota, mas depois tornou-se mero preconceito. Por exemplo, eles deveriam perguntar-se “escolhido para quê, na época atual?”

Shariff é incapaz de fazer a hipótese de que essas religiões tiveram certas missões na humanidade, e foram instituídas para cumpri-las. É também incapaz de admitir que houve nelas uma inspiração divina, que nem sempre é positiva – afinal, muitas religiões falam de uma entidade não-física, o diabo, que tenta influenciar os seres humanos. A propósito, se não houvesse mal no mundo não haveria bem, e portanto não poderíamos ter liberdade de escolha. Estaríamos ainda na época da maravilhosa imagem do Paraíso bíblico, onde o ser humano não tinha consciência – a propósito, portanto naquela época não poderia ter “pecado”, como é comumente interpretada a causa da queda na matéria.

<<<Veja, por exemplo, o catolicismo, que sempre teve boa parte de sua sustentação em rituais, em um Deus particularmente rigoroso e no medo do inferno.>>>

Esse não era em absoluto o caso do cristianismo original, como o dos primeiros cristãos e dos assim chamados “pais da igreja”. Somente com a instituição do catolicismo é que passou a ser assim, o que foi uma deturpação muito grande do original. Só admitindo-se essa deturpação pode-se compreender atitudes absolutamente anticristãs como os massacres das seitas heréticas (maniqueus, cátaros, bogomilos, albigenses, etc.) e os perpetrados pela inquisição, bem como a catequese forçada de nossos índios.

<<<Essas coisas estão mudando na [sic] para coisas mais alegres e em um Deus mais amável. A razão para isso acontecer é que os deveres punitivos da religião não pertencem mais ela, devido aos grandes sistemas judiciais seculares que existem hoje. E com as religiões se tornando mais legais com as pessoas, seu poder de disseminação aumenta ainda mais.>>>

É possível que a secularização das leis seja um fator de deslocamento da importância das religiões, e seu “abrandamento” e portanto elas terem se tornado mais “palatáveis”. Mas eu tenho uma outra interpretação para a enorme disseminação atual das religiões: o ser humano não se contenta mais com o materialismo, e procura intensamente por algum espiritualismo. Infelizmente, em lugar de adotar e desenvolver um espiritualismo que denominei de “científico” no meu artigo citado, isto é, o que é baseado em hipóteses de trabalho e não na crença, que não tem preconceitos, que é expresso conceitualmente para a compreensão e não por meio de sentimentos, aquele que faz experimentações, enfim, em lugar disso muitas pessoas estão abdicando de sua constituição moderna, adotando religiões que nos remetam ao passado dogmático, preconceituoso e sentimental.

<<<FOLHA - Quando vocês explicam religião pela seleção natural, o que está sendo selecionado é o comportamento das pessoas ou as características genéticas que as tornam mais propensas à crença?

SHARIFF - Eu não acredito que a seleção genética seja especialmente forte no que se refere à disseminação das religiões. O que acredito é que exista um processo de co-evolução entre genes e cultura. Inicialmente você tem seleção cultural nessas religiões. Alguns estudos argumentam que pessoas religiosas costumam ter mais filhos, mas eu não acredito que haja evidências suficientes favoráveis a isso ao longo da história.>>>

Novamente, como materialista ele não é capaz de fazer a hipótese de que o ser humano tem algo de espiritual dentro de si, e que as religiões foram originalmente inspirações divinas, tendo-se mantido depois ainda por algumas percepções não-físicas (como por exemplo as do Buda, dos antigos Mistérios e dos profetas bíblicos) e por tradições que estavam até certo ponto de acordo com a constituição humana não-física.

Quanto aos filhos, os anticoncepcionais apareceram em uma época em que o ser humano já não sentia a atuação da divindade, nem mesmo a si própria, e preceitos contra o seu uso viraram meros dogmas. Nesse sentido, é necessário examinar o quanto cada religião impõe seus dogmas e o quanto cada indivíduo sujeita-se a eles. A questão anticoncepcional devia ser tratada hoje de maneira totalmente diferente da usual, isto é, satisfazendo interesses meramente egoístas ou mesmo de medo. Por exemplo, muitos casais têm medo de ter filhos pelo trabalho e dificuldade em educá-los adequadamente.

<<<FOLHA - Alguns sociólogos dizem que o cristianismo lançou as bases morais para o capitalismo. O consumismo desenfreado com presentes de Natal é hoje um sinal disso?

SHARIFF - Li algumas coisas a esse respeito, mas nunca estudei religiões sob aspecto da economia de mercado. É claro que o Natal é um grande negócio. Se, de fato, ele estimula as pessoas a se tornarem mais ligadas a suas religiões, talvez elas fiquem mais generosas. As pessoas realmente dão presentes às outras no Natal, mas dizer quando isso ocorre por generosidade ou por uma cultura de comercialismo já é mais difícil.>>>

É uma pena ele aparentemente não ter lido o clássico A Ética Protestante, de Max Weber Em minha opinião, houve algo em comum entre o cristianismo e o capitalismo: ambos têm um princípio de liberdade, apesar de aplicados em áreas totalmente diferentes. De fato, enquanto o cristianismo original foi um impulso decisivo para o desenvolvimento da liberdade individual, de tolerância (como no caso contado nos Evangelhos do Cristo Jesus e da mulher samaritana) e não julgar os outros (como no caso da mulher adúltera), o capitalismo aplicou isso no setor econômico, especialmente na produção e comércio de bens. De fato, um empreendedor capitalista pode produzir o que bem entender, até mesmo sem que haja necessidade de seu produto; ele tem liberdade também de fazer propaganda e impor essa necessidade. Há, no entanto, um espírito básico no capitalismo, absolutamente contrário ao cristianismo original, que é o apelo ao egoísmo e à ambição, que são tipicamente materialistas (atenção, várias religiões instituídas hoje em dia fomentam ambos, mas parece-me que elas não são genuinamente espiritualistas, pelo contrário, são é profundamente materialistas). A derrocada do comunismo talvez se deu justamente pelo vencimento da consciência e possibilidade de exercício egoísta do capitalismo, mais de acordo com a normalidade do ser humano de hoje. A propósito, a igualdade no socialismo e do comunismo foi mal colocada por eles: o ser humano só deve ser considerado sob um prisma de igualdade em seus direitos, deveres e acordos. A criatividade individual obviamente é baseada em desigualdade (de habilidades e de conhecimento), e é massacrada se seguir um princípio de igualdade – o correto nessa área, que envolve toda prestação de serviços e o trabalho, é um espírito de liberdade. Já a satisfação de necessidades deveria seguir um princípio de solidariedade, de fraternidade, pois as necessidades individuais diferem de pessoa para pessoa, e não deveríamos ter liberdade total no consumo, pois se alguém consumir demais, uma outra pessoa necessariamente consumirá de menos. Esses aspectos foram introduzidos por Rudolf Steiner em sua “trimembração do organismo social”.

A comercialização do Natal (festa cuja origem remota é o Festival de Inverno, a volta do Sol no hemisfério Norte, muito anterior ao cristianismo), mostra a perda total de espiritualidade da humanidade. A troca de presentes, como bem apontou Shariff, talvez seja hoje em dia mais uma imposição do capitalismo do que um ato de altruísmo. Não se deve esquecer também que a Igreja Católica deu muita ênfase ao nascimento de Jesus, o que estava bem de acordo com a ingenuidade que ela manteve, corretamente, na população em geral até o fim da Idade Média (por exemplo, nas regiões católicas apenas os padres sabiam ler; nem mesmo os reis o sabiam, como foi o caso de Carlos Magno).

<<<FOLHA - Cientistas têm reagido vigorosamente à intromissão da religião no ensino de biologia, o criacionismo. Religiosos, em contrapartida, podem questionar aquilo que vocês estão fazendo: usar ciência da evolução para explicar a religião?

SHARIFF - Sim. A idéia de olhar para a religião com uma óptica científica é uma coisa que deixa iradas muitas pessoas religiosas mais fundamentalistas. E o fato de estarmos usando para isso os processos darwinísticos, em particular, pode torná-las duplamente iradas. É compreensível que elas fiquem assim, mas isso faz parte do fato de que nós, psicólogos, tentamos explicar o comportamento humano para os humanos. É como se disséssemos "nós sabemos por que você está fazendo isso melhor do que você mesmo sabe". E o fato de que tratamos especificamente de religião certamente incomoda mais.
Tornar a religião um objeto das ciências naturais, não é uma coisa com a qual as pessoas religiosas se sentem confortáveis. Mas não podemos deixar isso nos afetar. Temos que tentar nos comprometer com a verdade o máximo possível. Não tentamos suavizar nossa linguagem, mas não temos uma agenda específica de ateísmo a cumprir.>>>

Jamais vai se compreender as religiões, especialmente na sua forma original, se o enfoque for o puramente científico atual, isto é, materialista.

A contenda educacional sobre o criacionismo e o evolucionismo está totalmente errada. Crianças pequenas, até a antiga 3ª série (aproximadamente 9 anos) necessitam de imagens, de “parábolas”, de historinhas, e teorias conceituais são extremamente prejudiciais pois aceleram indevidamente o desenvolvimento intelectual. Ao contrário, no ensino médio, imagens, “parábolas” e historinhas não satisfazem o jovem, que está à procura de compreensão do mundo, e tem seu pensamento puramente abstrato, independente, começando a se desenvolver. Nessa fase, o criacionismo bíblico literal pareceria ridículo, pois não envolve nenhuma compreensão. Nela, o correto é dar a teoria da evolução neo-darwinista, como parte do ensino de biologia e de filosofia, pois é puramente conceitual e experimental. Mas ela deveria ser apresentada como teoria que é, e não como fato científico, isto é, mostrando-se os problemas que ela contém, como por exemplo a origem da fala humana (não há explicação evolucionista para ela), os elos perdidos, o problema da necessidade de uma infinidade de mutações simultâneas, etc. Eu faria os alunos lerem o artigo de Craig Holdrege, The Giraffe’s Short Neck, que mostra magistralmente que a teoria de a girafa ter desenvolvido pescoço comprido para alcançar folhas mais altas é insatisfatória, a fim de desenvolver nos alunos um enfoque crítico, e não uma crença no evolucionismo. A propósito, a educação escolar e universitária hoje em dia tenta claramente criar um cientismo, isto é, fé na ciência.

<<<FOLHA - Você tem recebido muitas cartas com ofensas?

SHARIFF - Eu não diria que são muitas. Nós recebemos um bocado de reações negativas por parte de pessoas religiosas, mas muitas pessoas não-religiosas reagiram negativamente também. O que achei interessante foi a reação da mídia, que costuma descrever nosso estudo ou como totalmente pró-religião ou como totalmente contrário.>>>

Qualquer tratamento puramente materialista das religiões deve necessariamente ser contrário a elas. Ofensas são uma demonstração típica do enfoque das religiões em geral. Em lugar de se debater idéias calmamente, no campo da compreensão e da realidade dos fatos, apelam-se para os sentimentos.

<<<FOLHA - Como surgiu seu próprio interesse em psicologia da religião? Você é religioso ou nasceu eu uma família religiosa?

SHARIFF - Fui educado como muçulmano, mas perdi meu interesse em religião quando era adolescente. Quando cursei a graduação é que meu interesse em religião ressurgiu. O que acho que foi bom, e que me permitiu permanecer mais neutro em relação ao assunto, é o fato de que eu não tive um interesse especial em religião antes. Eu não amava religião mas também não a desprezava.>>>

Vemos aqui algo muito interessante: a educação religiosa de Shariff não impediu que ele aparentemente se tornasse ateu em sua adolescência, e depois tivesse um enfoque objetivo em relação às religiões. Isso mostra pontualmente que a afirmação, por exemplo de Dawkins no cap. 9 de seu livro The God Delusion (cujo título foi traduzido indevidamente por Deus, um Delírio), de que as religiões prejudicam a formação da criança e do adolescente, está redondamente enganada . Aliás, o próprio Dawkins diz em seu livro que teve uma formação religiosa na infância, o que obviamente não o impediu de se tornar religiosamente materialista! Segundo a Pedagogia Waldorf, seguindo as indicações de sucesso de seu fundador, Rudolf Steiner, toda criança pequena é naturalmente religiosa, e essa religiosidade deve ser cultivada, o que é feito pedagogicamente de maneira consistente. Vou dar aqui um depoimento pessoal. Minha família mudou de residência em 1950, quando eu tinha 10 anos. Na nova casa, havia uma escada de madeira que rangia de noite, provavelmente devido a mudanças de temperatura. Pois naquela idade, ou pouco depois, eu ainda achava que o rangido era devido a anjinhos que estavam subindo a escada. Gostaria de saber quantas crianças “moderninhas” ainda tem esse sentimento natural de religiosidade.

<<<FOLHA - Você acha que a religião serve como parte da explicação para os conflitos no Oriente Médio? Em seu estudo você diz que a religião favorece cooperação dentro de grupos mas não entre um grupo e outro?

SHARIFF - O que acontece é que hoje esses grupos de pessoas acabam tendo contato um com outro muito mais freqüentemente. No passado, talvez uma pessoa só encontrasse alguém de uma religião diferente duas ou três vezes na vida. Mas hoje, especialmente em lugares religiosamente diversos como o Oriente Médio, isso ocorre muito mais, o que gera muito mais tensão.>>>

Existe um componente religioso na tensão no Oriente Médio, já que os terroristas muçulmanos são em geral fundamentalistas religiosos, e o governo de Israel tem uma grande influência política do setor religioso do país, o que é uma lástima. Há também interesses econômicos envolvidos, principalmente devido ao petróleo. Mas acho que existem ainda outros fatores, como por exemplo a agressão produzir mais agressão, e o ódio produzir mais ódio, em um círculo vicioso ininterrupto, como o passado tem mostrado há décadas.

O argumento de Shariff não tem consistência pois, por uma lado árabes e, posteriormente, muçulmanos, e por outro judeus conviveram sem nenhum problema, em contatos diários e durante séculos; foram os católicos que introduziram o ódio interreligioso na Europa e no Oriente Médio. Mas ele tem razão quanto ao aspecto da globalização da informação poder ser um fator importante para os conflitos religiosos, principalmente levando-se em conta o caráter eminentemente condicionador da TV.