O Estado de São Paulo, 18/7/2010
Não sei se vocês se lembram de quando lhes falei, acho que
no ano passado, num caderninho rabugento que eu
mantenho. Aliás, é um caderninho para anotações diversas,
mas as únicas que consigo entender algum tempo depois são as
rabugentas, pois as outras se convertem em hieróglifos
indecifráveis (eu sei que o recomendado é hieróglifo
, mas
sempre achei que quem diz hieróglifo
está tentando
descolar alguma coisa dos dentes), assim que fecho o
caderno. Claro, é o reacionarismo próprio da idade, pois,
afinal, as línguas são vivas e, se não mudassem, ainda
estaríamos falando latim. Mas, por outro lado, se alguém não
resistir, a confusão acaba por instalar-se e, tenho certeza,
a língua se empobrece, perde recursos expressivos, torna-se
cada vez menos precisa.
Quer dizer, isso acho eu, que não sou filólogo nem nada e
vivo estudando nas gramáticas, para não passar vexame. Não
se trata de impor a norma culta a qualquer custo, até
porque, na minha opinião, está correto o enunciado que,
observadas as circunstâncias do discurso, comunica com
eficácia. Não é necessário seguir receituários abstrusos
sobre colocação de pronomes e fazer ginásticas verbais para
empregar regras semicabalísticas, que só têm como efeito
emperrar o discurso. Mas há regras que nem precisam ser
formuladas ou lembradas, porque são parte das exigências de
clareza e precisão - e essas deviam ser observadas. Não
anoto, nem tenho qualificações para isto, com a finalidade
de apontar o erro de português
, mas a má ou inadequada
linguagem.
E devo confessar que fico com medo de que certas práticas
deixem de ser modismo e virem novas regras, bem ao gosto dos
decorebas. É o que acontece com o, com perdão da má palavra,
anacolutismo que grassa entre os falantes brasileiros do
português. Vejam bem, nada contra o anacoluto, que tem nome
de origem grega e tudo, e pode ser uma figura de sintaxe de
uso legítimo. O anacoluto ocorre, se não me trai mais uma
vez a vil memória, quando um elemento da oração fica meio
pendurado, sem função sintática. Há um anacoluto, por
exemplo, na frase A democracia, ela é a nossa opção
. Para
que é esse ela
aí? Está certo que, para dar ênfase ou
ritmo à fala, isso seja feito uma vez ou outra, mas como
prática universal é meio enervante. De alguns anos para cá,
só se fala assim, basta assistir aos noticiários e programas
de entrevistas. Quase nenhum entrevistado consegue enunciar
uma frase direta, na terceira pessoa - sujeito, predicado,
objeto - sem dobrar esse sujeito anacoluticamente (perdão
outra vez). Só se diz o policiamento, ele tem como
objetivo
, a prevenção da dengue, ela deve começar
, a
criança, ela não pode
e assim por diante. O escritor, ele
teme seriamente que daqui a pouco isso, ele vire regra.
E os verbos em izar
? Não sei se vocês já notaram que há
muito tempo, principalmente por escrito, ninguém vê,
enxerga, discerne, descortina, ou qualquer outro sinônimo
decente. Agora só se visualiza, mais nada e, em Itaparica,
ouvi de um menino turista a comunicação, feita ao pai dele,
de que estava visualizando de binóculo. Vender
tem sofrido
uma sabotagem inclemente por parte de comercializar
e não
duvido nada que venha a ser banido, assim como foram pôr
e
botar
. Hoje em dia, o verbo colocar
perdeu o sentido
mais preciso que tinha e substitui os dois outros, inclusive
em usos tradicionais. A galinha coloca ovo, dando a
impressão, para quem aprendeu o uso mais específico desse
verbo, de que a galinha faz a postura (aliás, talvez devesse
dizer colocação
) ajustando cuidadosamente o fiofó num
canto do ninho escrupulosamente escolhido. O mesmo tipo de
impressão se tem, quando se ouve no noticiário que alguém
colocou fogo num barraco. Atear fogo, nem pensar. Virá o dia
em que alguém vai colocar pra quebrar. E já ouvi também (ou
vi escrito; com esse negócio de internet, não sei mais o que
li onde) ajustabilizar
e ausentabilizar
, este último, a
julgar pelo som, um verbo que haverá de ter lá sua
serventia, usado em relação ao Congresso Nacional.
Prejudicar
, com longa e honrada folha de serviços
prestados ao povo brasileiro, também está no caminho célere
do ostracismo. Ninguém mais é prejudicado, agora todo mundo
é penalizado. Quem estiver pensando em usar a palavra no
sentido antigo melhor fará se a substituir por comiserar
,
enquanto esta ainda se encontra disponível, pois, no futuro,
comiserado
poderá ser a designação aplicada por alguma ONG
a companheiros de miséria no Terceiro Mundo. Personalizar
,
palavra com mais de cem anos de batente, agora está de aviso
prévio e marchará para o esquecimento a que lhe votam os
cada vez mais numerosos aficionados de customizar
. Os
verbos em ionar
também desfrutam de grande voga e um
deles, posicionar
, já mandou dispor
para o
espaço. Nenhum general dispõe mais suas tropas assim ou
assado, não mais se dispõem as peças de um jogo de
tabuleiro. E se arruma bem menos que no passado. Acho que
qualquer técnico de futebol contemporâneo ficaria ofendido,
se alguém comentasse que ele arrumou seu time assim ou
assado, porque ele posiciona, tudo é posicionado. Da mesma
forma que colocar
, fica, por alguma razão, mais chique.
Finalmente, para não perder o costume, faço mais um réquiem
para o finado cujo
. Tenho a certeza de que, entre os
muito jovens, a palavra é desconhecida e não deverá ter mais
uso, dentro de talvez uma década. A gente até se acostuma a
ouvir falar em espécies em extinção, mas, não sei por que,
palavras em extinção me comovem mais, vai ver que é porque
vivo delas. E não é consolo imaginar que o cujo e eu vamos
nos defuntabilizar juntos.