Tupi or Not Tupi, That's Not the Question

(Pulicado no Computação Brasil da Sociedade Brasileira de Computação no dia 5 de Novembro de 2002, página 8.)

Escrever textos sobre sistemas de computação em uma língua diferente de inglês nunca foi fácil. Duas coisas agravam ainda mais a situação quando se trata de traduzir termos técnicos para o português do Brasil.

O primeiro problema é o complexo de inferioridade do brasileiro em relação à sua língua que o faz pensar que tudo que é dito em português "soa mal" por mais preciso e elegante que seja enquanto que tudo que é dito em inglês "soa bem" por mais milk-shakeônico que seja. Por exemplo, franceses e espanhóis traduzem o termo "mouse" para as suas línguas enquanto que os brasileiros acharam que seria ridículo traduzir para "rato". Como se o termo "mouse" em inglês tivesse alguma elegância ou superioridade. O segundo problema é que, desde 1995, muitos termos de sistemas de computação cairam na boca do povo leigo. Daí, termos que já eram consagrados no português (como por exemplo, "núcleo" para se referir à parte do SO que é executada em modo protegido, sendo a tradução padrão de "kernel") caíram na boca de milhões de pessoas que por preguiça ou desconhecimento, passam a usar o termo em inglês ao invés do termo já consagrado em português.

Este é um problema que não se limita à área de computação. Quando saí do Brasil para meu doutoramento em 1995, nós  "navegávamos pela teia" enquanto que todas as pizzarias de São Paulo tinham "entrega a domicílio". Quando voltei em 2000, encontrei um país onde os jovens brauzeavam a web e não pude encontrar mais nenhuma pizzaria com entrega a domicílio; agora todas tem motoboys que fazem o delivery. Recentemente, no programa televisivo Bola na Rede, o Kajuru (aquele comentarista esportivo), disse que é um absurdo o Juca Kfouri falar em "sítio da Internet", que o correto é "site da Internet". Uma completa inversão de valores. Mas se a situação da língua de Camões é em geral preocupante, em se tratando dos textos específicos de computação a situação é muito pior: grande parte dos textos sobre computação escritos pelos nossos estudantes, educadores, profissionais de TI e jornalistas estão repletos de usos desnecessários de palavras em inglês e de más traduções de falsos cognatos.

Seria ótimo se nos esforçássemos em tomar um cuidado especial para com a nossa língua. Termos que já têm traduções consagradas para o português devem aparecer em português. Termos novos que podem ser traduzidos facilmente, devem ser traduzidos. Se houver perigo de mal entendidos, é aconselhável que, na primeira ocorrência do termo, se coloque, entre parênteses em itálico, o termo equivalente em inglês. Por outro lado, se for realmente muito difícil traduzir um determinado termo sem comprometer o entendimento do texto ou se o termo estrangeiro é de uso padrão no português, aí devemos usar o termo em inglês, em itálico. Em alguns casos extremos, como nos neologismos "software", "byte" e "middleware", o itálico é desnecessário.

Para ajudar nesta empreitada, há aproximadamente um ano tenho coletado uma série de erros comuns encontrados em textos de computação e montei, com auxílio de colegas, uma página na teia com dicas para traduções de termos de computação para o português ( http://www.ime.usp.br/~kon/Alunos/traducao.html ). Na verdade, foram meus próprios alunos que me incentivaram a escrever esta página e foram eles que me trouxeram boa parte das sugestões para ela. Notei que a maioria dos estudantes se sente motivado pelo desafio de escrever um texto computacional em bom português de forma elegante e esteticamente bonito, ao invés de um amontoado milke-shakeônico de termos nas duas línguas. Muitas vezes, são os próprios professores que não incentivam que os seus alunos façam isso. É preciso incentivar e valorizar.

Vamos agora a alguns casos concretos. Primeiro, existem falsos cognatos como requirements, conservative e eventually que são erradamente traduzidos para requerimentos, conservativo e eventualmente quando o correto seria requisitos, conservador e mais cedo ou mais tarde, respectivamente. Alguns desses falsos cognatos foram traduzidos pela via mais fácil durante tanto tempo que estão até sendo incorporados à língua portuguesa, como é o caso de checar (to check ) e suportar (to support), sendo que este último ainda agride os meus ouvidos. Nada mais esdrúxulo do que uma frase como "A biblioteca suporta C++ e Java" ao invés de "A biblioteca oferece interfaces em C++ e Java".

Outra classe de erros provém do uso de palavras que simplesmente não existem, como escrever "computação pervasiva" ao invés de "computação ubíqua". Já fui até criticado por um amigo por usar o termo ubíqua (tradução do ubiquitous proposto por Mark Weiser) pelo termo ser supostamente estranho. Quer dizer que ubíquo é estranho e a palavra pervasiva, que não existe na língua portuguesa, não é?

A última classe de erros é a que mais me incomoda e consiste na simples não tradução de termos em inglês. Parece que algumas empresas julgam que um folder recheado de termos em inglês lhes confere alguma vantagem, a empresa parece mais up to date. Afinal, oferecer "soluções de e-commerce de alta performance" é muito mais atraente do que simplesmente oferecer "soluções de alto desempenho para comércio eletrônico". Já os estudantes, professores e profissionais de TI muitas vezes fazem isso por preguiça ou, simplesmente, por não considerar tão importante assim respeitar a nossa língua. "Cluster" pode ser traduzido seguramente para aglomerado (como fazem os astrônomos) ou agrupamento; "host" pode ser traduzido para máquina, hospedeiro ou computador, dependendo do contexto; "data mining" deve ser traduzida para mineração de dados, principalmente se você é da terra de Milton; "deployment" é implantação, "eXtreme Programming" fica tão bonito como Programação eXtrema, prá que usar o termo em inglês e contribuir para o empobrecimento da nossa língua e a franksteinização dos textos de computação?

Por outro lado, é bom não se esquecer que uma língua ativa é algo vivo, dinâmico. Uma tradução "errada" ou uma falta de tradução depois de repetida por muitos anos acaba, por bem ou por mal, se tornando uma tradução "correta". Termos já consagrados em sua forma inglesa há muitos anos não podem ser substituídos por neologismos em português, ou então passamos a ser taxados de ridículos. Mas de uma forma geral, é muito raro alguém pecar por excesso de preciosismo lingüístico, o oposto é que é muito comum. O português é sim uma língua diferente do inglês e com origens bem distintas e vive la différence!

Para terminar, saliento que não tenho absolutamente nada contra escrever artigos em inglês, muito pelo contrário. O inglês americano é a língua internacional da computação (apesar dos protestos de alguns britânicos corajosos) e sempre que tivermos um artigo com potencial para produzir um impacto internacional, devemos redigi-lo em inglês de forma a maximizar o número de possíveis leitores. Seria provinciano e contra-producente achar que devemos dar prioridade absoluta ao português em nossos textos. Primeiro escolhemos a língua e depois tentamos produzir o texto de melhor qualidade técnica e literária dentro da língua escolhida.

Felizmente, parece que há uma grande vontade da comunidade acadêmica brasileira em olhar para esta questão com mais cuidado. Alguns pesquisadores falam em organizar um grupo para sugerir um glossário ou catálogo oficial de termos de computação em português. Independentemente de termos ou não algo oficial, o mais importante é que cada um se esforce para escrever textos de qualidade ao invés de seguir o caminho fácil, mas empobrecedor, de rechear nossos textos com termos estrangeiros. E não deixem de ler a nova versão do clássico de Monteiro Lobato, "O Site do Pica-Pau Amarelo" e de visitar o belíssimo site arqueológico da Serra da Capivara.