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Motivação e breve histórico da propriedade intelectual

A idéia básica subjacente ao conceito de propriedade intelectual é que o autor ou criador do novo bem determina, dentro de limites socialmente aceitos e legalmente protegidos, as condições sob as quais o bem pode ser usado por terceiros. Este conceito parece ser um direito natural do autor, a sua formalização, porém, só veio a ser relevante com a invenção da impressão. Uma instância escrita deste conceito está no Alvará do Rei, com o qual Luís de Camões publicou, em 1572, Os Lusíadas [7].

Ev el Rey faço faber aos que efte Aluara virem que eu ey por bem & me praz dar licença a Luis de Camoes pera que poffa fazer imprimir nefta cidade de Lisboa, hua obra em Octaua rima chamada Os Lufiadas, que contem dez cantos perfeitos, na qual por ordem poetica em verfos fe declarão os principaes feitos dos Portuguefes nas partes da India depois que fe defcobrio a nauegação pera ellas por mãdado del Rey dom Manoel meu vifauo que fancta gloria aja, & ifto com priuilegio pera que em tempo de dez anos que fe começarão do dia que fe a dita obra acabar de empremir em diãte, fe não poffa imprimir ne vender em meus reinos & fenhorios nem trazer a elles de fora, nem leuar aas ditas partes da India pera fe vender fem liceça do dito Luis de Camoes ou da peffoa que pera iffo feu poder tiuer, fob pena de que o contrario fizer pagar cinquoenta cruzados & perder os volumes que imprimir, ou vender, a metade pera o dito Luis de Camões, & a outra metade pera quem os acufar. [...] E efte meu Aluara fe imprimirà outrofi no principio da dita obra, o qual ey por bem que valha & tenha força & vigor, como fe foffe carta feita em meu nome por mim afsinada & paffada por minha Chancellaria [...]. Gafpar de Seixas o fiz em Lisboa, a xxiiij : de Setembro, de M.D.LXXI. Iorge da Cofta o fiz efcreuer.

Até onde sabemos, a conceituação formal e a proteção legal da propriedade intelectual apareceram no início do século 18, quando na Inglaterra foi editado o ``Statute of Anne'' em 1709 [2, pg. 177]. A intenção era oferecer incentivos a inovadores através da concessão de monopólios restritos. A lei do ``copyright'' incentivaria autores enquanto a lei das patentes incentivaria os inventores de idéias com valor comercial.

Este princípio foi incluído na Constituição dos Estados Unidos no fim do século 18. O artigo I, seção 8, clausula 8 dá poderes ao Congresso Americano para

``promote the Progress of Science and useful Arts, by securing for limited Times to Authors and Inventors the exclusive Right to their respective Writings and Discoveries''

Como se vê, a motivação básica, nesse ambiente legal, para o estabelecimento da propriedade intelectual é o desejo de incentivar a produção intelectual. Oferece-se, em contrapartida, a concessão de certos direitos exclusivos limitados.

No caso dos autores, o mecanismo que se encontrou para materializar esta política foi a restrição dos direitos de terceiros de fazerem cópias da obra protegida. Uma visão histórica mais detalhada e muito interessante da questão da propriedade intelectual pode ser encontrada no livro de Lesk [15].

A prática desta política por quase três séculos mostrou que existem pelo menos duas áreas de dificuldades associadas a ela. Por um lado, a tecnologia de fazer cópias evoluiu constante e substancialmente com o tempo, dificultando a imposição da lei e podendo chegar a torná-la inefetiva. Por outro lado, a cópia tem inúmeros papéis positivos e altamente desejáveis para o progresso das sociedades em geral e para a preservação e incremento das suas culturas. Para manter um equilíbrio entre os incentivos à produção intelectual, a pressão da facilidade de fazer cópias e o interesse da sociedade de ser bem suprida de bens de informação essenciais, a lei é atualizada de tempos em tempos de acordo com a situação vigente.

De fato, as duas áreas de dificuldades mencionadas desembocaram em alguns aspectos que vem se perpetuando com o passar do tempo. Por um lado, a questão da proteção à propriedade intelectual transformou-se numa verdadeira corrida entre a legislação e a tecnologia. À medida que o progresso da tecnologia amplia as facilidades de fazer cópias, a legislação é alterada para levar em conta a nova realidade tecnológica. Quanto à segunda dificuldade, a lei define exceções e restrições à aplicação do ``copyright'' procurando manter um equilíbrio entre os interesses do autor, ou do seu representante, e da sociedade. Caem nesta categoria as disposições de ``fair use'' e limitação temporal dos direitos exclusivos, restritos apenas à primeira venda, no caso da tradição americana. Estas limitações tem a finalidade de preservar a função social da cópia e de garantir a disseminação da produção intelectual em situações em que o valor econômico imediato em jogo é relativamente pequeno (caso das ciências, por exemplo).

O recente livro de Lessig [16, cap. 10] trata em detalhes destes aspectos e apresenta também uma ampla bibliografia sobre o assunto, que é debatido incessantemente e com vigor pela área acadêmica americana.

Um outro estudo muito interessante é oferecido por Lyman [17], onde se descreve o equilíbrio muito complexo e de certa forma artificial que existe no caso de publicações acadêmicas. Este equilíbrio envolve os interesses do autor, do leitor, das empresas publicadoras, das Universidades, que centralizam a produção e a disseminação do conhecimento acadêmico, das bibliotecas, que armazenam este conhecimento, dos governos, que ultimamente financiam este esquema e da sociedade em geral, mantenedora e beneficiária final deste mecanismo. Lyman mostra como o esquema em funcionamento se adapta à cultura acadêmica de disseminação ampla, generosa e liberal da informação, dentro de um espírito de ``gift culture''.

Outra ordem de dificuldades surge ao definir exatamente o que é protegido e portanto não pode ser copiado. É uma questão muito delicada, que já preocupou Thomas Jefferson (1743-1826), um dos principais intelectuais da Independência Americana e o terceiro presidente dos Estados Unidos. Entre os seus escritos vale a pena destacar o trecho abaixo, bastante citado [1,16] e que resume bem algumas das suas preocupações, cada vez mais atuais:

``If nature has made any one thing less susceptible than all others of exclusive property, it is the action of the thinking power called an idea, which an individual may exclusively possess as long as he keeps it to himself; but at the moment it is divulged, it forces itself in the possession of every one, and the receiver cannot dispossess himself of it. Its peculiar character, too, is that no one possesses the less, because every other possess the whole of it. He who receives an idea from me, receives instruction himself without lessening mine; as he who lites his taper at mine, receives light without darkening me. That ideas should freely spread from one to another over the globe, for the moral and mutual instruction of man, and improvement of his condition, seems to have been peculiarly and benevolently designed by nature, when she made them, like fire, expansible over all space, without lessening their density at any point, and like the air in which we breathe, move, and have our physical being, incapable of confinment or exclusive appropriation. Inventions then cannot, in nature, be a subject of property.''

Antes de prosseguir, gostaríamos de observar que a natureza integralmente compartilhável da informação, explicada na parte intermediária da citação, já havia sido notada por Santo Agostinho (354-430) [27], uns 1400 anos antes de Jefferson:

``Alimento as vossas mentes quando falo. Repartiríeis entre vós o alimento, se o que trouxesse fosse para os vossos estômagos, e não chegaria inteiro a cada um; mas quantos mais fôsseis, em tanto maior número de pedaços dividiríes o que vos desse. Aquilo que digo é inteiro para todos e inteiro para cada um'' (sermão 237).

A tradição americana distingue entre idéias e representação de idéias. As idéias não podem ser protegidas e sua propagação não pode ser restrita. A proteção se aplica à forma de expressão das idéias, às palavras usadas num texto, por exemplo. São cópias desta expressão que o autor pode restringir. Um ponto bastante sutil.

Outro aspecto importante a realçar é que estes princípios não são universais e, embora amplamente aceitas internacionalmente, há uma grande variação nos detalhes, refletindo a dificuldade de se chegar a uma solução natural que seja aceita por todos. De fato, estes mecanismos e até mesmo os princípios envolvidos mudam de país para país. Num mesmo país eles mudam também com o passar do tempo. As mudanças refletem a evolução tecnológica por um lado, mas refletem também os interesses do país ao longo do tempo, dada a sua posição de produtor ou de consumidor no mercado de propriedade intelectual. Um exemplo interessante é a mudança das leis americanas perto da passagem do século 19 para 20.

Deve ser observada que esta seção do nosso trabalho baseia-se principalmente no ponto de vista anglo-saxão. O motivo disto é que a cultura acadêmica americana parece dar grande importância a este tema e praticamente todas as nossas fontes de informação tiveram aquela origem.


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Imre Simon
2000-02-29