Em seis dias, os ricos fizeram
mais concessões aos países pobres
do que no meio século passado
Adriana Carvalho
AFP
Delegados de 142 países no plenário em Doha: o isolamento
e a
distância dos políticos ajudaram a tomada de decisões
O isolamento foi a chave para o sucesso da
reunião da Organização Mundial do
Comércio (OMC), que terminou na quarta
feira passada, em Doha, no Catar. Os
delegados de 142 países foram hospedados em hotéis de luxo
e suas
reuniões transcorreram sem a menor interferência dos irritados
militantes antiglobalização, responsáveis pelo malogro
de outros
encontros semelhantes no passado. Mas o isolamento mais decisivo
foi o descrito pelo representante dos Estados Unidos, Robert Zoellick.
"Os diplomatas das nações ricas tomaram decisões aqui
que
certamente vão deixar furiosos os políticos em seus países",
disse
Zoellick. Ele lembrou, corretamente, que o Catar fica a alguns
milhares de quilômetros das capitais ocidentais, o que deu aos
delegados uma sensação de liberdade que eles não tiveram
em outras
ocasiões. Em seis dias isolados no Catar, os países ricos
fizeram mais
concessões aos interesses das nações em desenvolvimento
do que no
meio século passado. Ou seja, desde que 23 países se reuniram
pela
primeira vez, em 1947, para tentar obter uma tarifação mais
justa para
os produtos de exportação, lançando as bases do que
se tornaria mais
tarde a OMC. A delegação brasileira, com a ajuda obcecada
dos
representantes indianos, liderou a bancada das nações em
desenvolvimento e voltou para casa com a pasta recheada de vitórias
históricas.
Entre as viradas de mesa que os países do Hemisfério Sul
conseguiram, a mais sutil foi a mudança drástica do discurso
dos ricos.
Quem poderia imaginar que um diretor-geral do Fundo Monetário
Internacional (FMI) pudesse dar uma declaração como a que
o
alemão Horst Koehler pronunciou na semana passada? "Tornou-se
inaceitável a situação que prevaleceu até agora
com países ricos
usando seus imensos recursos para distorcer os mercados. Só há
uma
palavra para descrever essa atuação dos ricos: cinismo",
disse
Koehler. Cacique de outro pilar vital do capitalismo global, James
Wolfensohn, presidente do Banco Mundial, afirmou que as decisões
tomadas no Catar podem, pela primeira vez, inverter a mão no fluxo
de riqueza gerada pelo comércio mundial. "Os países ricos
precisam
derrubar todas as barreiras comerciais que ergueram para impedir os
pobres de lucrar com o comércio mundial. Basta essa mudança
e em
uma década cerca de 1,5 trilhão de dólares serão
injetados nas
economias das nações em desenvolvimento", disse Wolfensohn
na
mensagem que enviou aos delegados de 183 países que participam
nesta semana da reunião anual do Fundo em Ottawa, no Canadá.
A mudança de tom tem seu significado. O discurso dos ricos nunca
foi
tão francamente favorável às teses dos países
pobres. Mas as
medidas práticas foram ainda mais eloqüentes. Nunca os lobbies
dos
agricultores franceses e dos fabricantes de aço dos Estados Unidos
ou
dos grandes laboratórios farmacêuticos foram tão diretamente
afrontados por uma decisão de peso mundial. Os delegados enviados
ao Catar aceitaram a idéia de, no prazo de três anos, concluir
uma
nova "rodada de negociação multilateral sobre comércio".
No jargão
diplomático, isso significa muita coisa. Significa principalmente
a
tomada de medidas efetivas cuja entrada em vigor independe da
vontade de governos, políticos ou empresas. São decisões
de um
fórum mundial. Só isso já seria uma vitória.
Mas a melhor parte é que
no Catar ficou acertada a agenda, os rumos que devem desaguar na
rodada de 2005. Esses rumos apontam para uma redenção dos
países
do Terceiro Mundo. Uma das bandeiras brasileiras vitoriosas no
encontro foi a aceitação da idéia de que a saúde
pública tem
precedência sobre o direito de patente de remédios. É
um passo
gigantesco para vencer a epidemia de Aids na África, pois permite
reduzir a um terço o custo dos tratamentos. A medida foi adotada
unilateralmente no Brasil por iniciativa do ministro da Saúde, José
Serra. Logo o exemplo foi seguido pela Índia. Na reunião
do Catar,
virou a norma mundial. "Essa mudança de atitude permite não
apenas
a redução do preço dos medicamentos. Ela abre espaço
também para
que países como o Brasil e a Índia ganhem projeção
na indústria
mundial de biotecnologia", afirma o cientista político Fernando
Abrucio, da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Outro avanço marcante foi na área da agricultura. Os países
europeus
nem sequer admitiam a possibilidade de discutir a redução
dos
subsídios que dão a seus fazendeiros, que chegam à
fabulosa cifra de
365 bilhões de dólares por ano - 1 bilhão de dólares
por dia. O
precedente foi aberto no encontro encerrado na quarta-feira em
Doha, quando se decidiu que esse será um dos temas da nova rodada
de negociações da OMC. Foi uma derrota especialmente amarga
para a França, que acostumou mal seus fazendeiros com doses
maciças de subsídios. O dinheiro estatal francês é
usado não apenas
para proteger o mercado local contra produtos agrícolas importados.
Fosse assim, e como se trata de defender uma cultura centenária
e
um modo de vida socialmente justo no campo, a posição da
França
até seria defensável. No Catar, porém, todo o foco
da decisão ficou
em cima da prática francesa de subsidiar as exportações
de produtos
agrícolas e assim massacrar os concorrentes do Terceiro Mundo no
mercado internacional. O caminho para 2005 está traçado.
Pela
primeira vez, os pobres têm a seu lado o FMI, o Banco Mundial e,
a se
fiar nas decisões tomadas no Catar, também a OMC. Foi uma
semana
histórica.