1. Legitimidade Bush não foi eleito pela maioria do povo de seu país. Venceu graças à fraude mais descarada, típica de qualquer republiqueta de banana. No dia 20 de janeiro, quando prestou juramento para ser empossado como novo chefe da Casa Branca, Washington amanheceu ocupada por 7.000 agentes da polícia, por temor de manifestações. Foi uma cena sem precedentes nos Estados Unidos. Não é carismático, tem domínio bastante precário de seu próprio idioma e é amplamente conhecido por não ser exatamente brilhante — ele próprio já comentou as piadas que o descrevem como um completo idiota nos corredores da Casa Branca.

Pois bem, o atentado permitiu-lhe apresentar-se, pela primeira vez, como presidente de fato dos Estados Unidos. Certo: com muitas horas de atraso e com uma hesitação imperdoável em qualquer estadista, ainda mais em um momento tão crucial como aquele. Ainda assim, ele pôde falar como o representante maior da nação. Basta lembrar os gritos de "USA" dos operários enquanto Bush fazia uma caminhada por entre os escombros do World Trade Center.

O êxito do apelo à "união nacional" pode ser medido pela rapidez com que o Congresso aprovou a concessão de poderes ilimitados para utilizar "todos os recursos necessários" para "combater o terrorismo". Bush obteve a unanimidade no Senado e 420 votos da Câmara dos Deputados. O único voto contrário foi o da democrata Barbara Lee, da Califórnia, sob a alegação de que a medida, na prática, eliminava o equilíbrio entre os poderes e colocava em questão a própria essência da democracia americana. Tal coesão em torno de Bush seria absolutamente impensável até algumas horas antes do atentado.

 

2. Globalização Até o dia 11 de setembro, as instâncias que mandam no mundo globalizado — G-8, FMI, Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio — estavam cada vez mais isoladas e desmoralizadas, sob o impacto de crescentes mobilizações de rua. As manifestações de Gênova, que chegaram a mobilizar 300.000 pessoas após o assassinato do jovem italiano Carlo Giuliani, 23 anos, colocaram em um novo patamar o movimento contra a globalização. Os ricos estavam na defensiva, não tinham nenhuma proposta, não apresentavam nenhuma iniciativa.

Depois do atentado, as coisas mudaram, pelo menos momenta-neamente. Dentro dos Estados Unidos, foram imediatamente suspensas importantes manifestações previamente convocadas para o final de setembro. Muitas organizações ficaram temerosas de ser qualificadas como "antipatrióticas" ou mesmo de "terroristas".

Pior ainda: as polícias políticas começaram a agir com muito mais arrogância e desenvoltura contra os movimentos sociais e populares, nos Estados Unidos e em todo o mundo. Nem é necessário desenvolver aqui, em detalhes, a brutalidade das operações comandadas pelo FBI, que passou a criar "listas de suspeitos" sem explicar quem são eles, quais os motivos que fizeram com que assim fossem considerados, nem sequer explicitar os crimes de que são acusados. Basta ouvir ou ler com um mínimo de atenção as notícias que chegam de lá para dar-se conta do clima de demência histérica devidamente criado com o auxílio da mídia. Qualquer semelhança com o período macarthista, nos anos 50, não é mera coincidência.

No quadro da União Européia, já estava em curso uma operação de "criminalização" dos movimentos contra a globalização. Logo após os eventos em Gênova e duas semanas antes do atentado em Nova York, os ministros do Interior dos países membros da UE já haviam decidido utilizar contra todo e qualquer manifestante os recursos de inteligência antes empregados apenas contra os suspeitos de narcotráfico. Criaram o Sistema Schengen de Informação (SSI), fortemente criticado até mesmo por intelectuais liberais como um atentado ao direito de manifestação, expressão e de livre trânsito. Depois do atentado, o anunciado "reforço" das "medidas de vigilância contra o terror" apenas serviu de pretexto para ampliar o policiamento.

Mesmo nos países "periféricos" como o Brasil, o atentado serviu de pretexto para uma escalada sem precedentes da mentalidade policialesca. Subitamente, as notícias sobre os famosos "arquivos secretos" do Exército encontrados em Marabá sumiram das páginas dos jornais. Sob as ordens diretas de Fernando Henrique, que se apressou a prestar as condolências ao seu patrão Bush — os 70.000 mortos em Hiroxima e Nagasaki, os 3 milhões de mortos no Vietnã, os 100.000 mortos no Iraque, as dezenas de milhares de mortos no Sudão ainda esperam as "condolências" dos dignitários brasileiros —, o ministério da Justiça, a Polícia Federal e a Abin anunciam novas medidas "contra o terrorismo". É claro que, como esse conceito é amplo, logo qualquer opositor ao governo, por exemplo o MST, poderá ser acusado de "terrorista".

 

3. Petróleo Bush e mais ainda o seu vice, Richard Cheney, são oil men, representantes diretos das empresas petrolíferas do Texas. Não por acaso, Cheney anunciou a disposição de abrir à exploração do petróleo as últimas regiões de preservação ambiental situadas no Alaska, com efeitos devastadores para o equilíbrio ecológico e ampliação do "efeito estufa". A submissão canina de Bush aos interesses dos petroleiros do Texas determinou a sua ruptura com o Protocolo de Kyoto, aprofundando ainda mais o isolamento dos Estados Unidos na comunidade das nações.

Ora, a luta pelo controle do petróleo mundial confere o norte da estratégia dos Estados Unidos para o golfo Pérsico e para a Ásia Central. E existe um país cuja localização geográfica é absolutamente estratégica, justamente por ser a região de passagem entre o Oriente Médio e a Ásia Central. Esse país se chama Afeganistão. O cerco dos Estados Unidos ao Taleban só aparentemente tem algo a ver com o "combate ao terrorismo". Trata-se, na verdade, de criar as condições geopolíticas para o controle das mais vastas reservas de petróleo do planeta, situadas em uma região que, historicamente, foi "área de influência" da Rússia czarista e depois da União Soviética.

Os cinco países da bacia do Cáspio — Azerbaijão, Cazaquistão, Irã, Rússia e Turcomenistão — possuem reservas estimadas em 200 bilhões de barris de petróleo e um volume comparável de gás. Apenas Azerbaijão, Cazaquistão e Turcomenistão contêm mais petróleo e gás do que o Golfo. As cinco maiores empresas petrolíferas dos Estados Unidos (Chevron, Conoco, Texaco, Mobil Oil e Unocal) concluíram ou estão concluindo uma série de acordos bilionários com esses países (exceto o Irã) para explorar suas reservas.

Fica fácil entender por que, em 1992, o senador norte-americano Robert Dole declarou que as "preocupações" dos Estados Unidos quanto às reservas de petróleo e gás mundial haviam se ampliado da região do Golfo "rumo ao norte, incluindo o Cáucaso, o Cazaquistão e a Sibéria". E, cinco anos depois, o senador Sam Brownback fez aprovar uma nova resolução, conhecida como Estratégia da Rota da Seda, segundo a qual os Estados Unidos deveriam "ampliar a sua presença" na bacia do Cáspio, à medida que são construídos novos oleodutos entre o Oriente e o Ocidente através daquela região. A Rota da Seda foi o caminho seguido por Marco Pólo para o Extremo Oriente, e abarca boa parte do Afeganistão. É também o petróleo, aliás, que explica os interesses em jogo na guerra da Rússia com a Chechênia. Por ali passam fontes e linhas de abastecimento de petróleo e gás iranianos e da bacia do mar Cáspio.

O atentado deu a Bush todos os pretextos para uma intervenção em grande escala naquela região, certamente impensável até 11 de setembro. O presidente russo Vladimir Putin, certamente pressionado pelos generais de seu país, ensaiou um tímido protesto contra o deslocamento maciço de forças militares dos Estados Unidos para aquela área. Mas Putin está economicamente prostrado e politicamente "amarrado" pelos compromissos no quadro do G-8.

 

4. Geopolítica Os Estados Unidos vinham sofrendo uma série de importantes reveses no quadro da ONU. Em março, foram expulsos de sua Comissão de Direitos Humanos, por ter votado sistematicamente contra todas as resoluções aprovadas por aquela instituição, desde 1948. Em junho, a Conferência de Bonn aprovou o Protocolo de Kyoto, por 178 votos contra um (Estados Unidos). Em seguida, os Estados Unidos foram levados a se retirar da Conferência contra o Racismo, de Durban, junto com Israel.

Agora, Bush deu o troco. Na prática, a arrogância imperialista dos Estados Unidos destruiu a ONU. Todas as medidas anunciadas por Washington após o 11 de setembro passaram à margem e ao largo daquela instituição. Claro, isso já tinha acontecido, em alguma medida, durante a guerra do Kosovo (quando as iniciativas foram tomadas no quadro da OTAN). Mas agora todas as máscaras caíram, definitivamente. Tio Sam não atribuiu nenhuma legitimidade à organização.

Isso é especialmente perigoso quando se considera que, com a operação militar atualmente em marcha, a Casa Branca tem um objetivo estratégico bastante preciso: lançar sólidas bases que lhe permitam controlar total ou parcialmente a Eurásia, região considerada absolutamente "estratégica", no século 21, pelo establishment intelectual americano. Só que, para realizar esse plano, os Estados Unidos ainda têm de criar um "cordão sanitário" em torno da Rússia. Esses objetivos foram anunciados em 1992, quando o Pentágono aprovou uma resolução, intitulada Defense Planning Guidance (Guia de Planejamento de Defesa), trechos da qual foram publicados no jornal The New York Times (de 3 de agosto de 1992). O documento estabelece como um dos objetivos centrais de Washington "neutralizar" e "impedir o renascimento" da rival Rússia. Isso tinha como uma das conseqüências imediatas "ampliar a presença" dos Estados Unidos nos países que faziam parte da União Soviética, assim como nos Bálcãs e no antigo Leste europeu.

Essa perspectiva é também defendida por Zbigniew Brzezinski, ex-chefe do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos e um de seus mais influentes estrategistas. Brzezinski explicita três razões principais para "neutralizar" a Rússia: é o país que liga a Europa à Ásia, é dona de vastos recursos naturais (ainda mais, se contar com os países sob sua influência) e, sendo altamente instável do ponto de vista político, pode permitir que novos movimentos comunistas ou nacionalistas tomem o poder, assim como provar-se incapaz de conter a "expansão islâmica".

A "conquista da Eurásia" é a pedra angular de sua estratégia. "Cerca de 75 por cento da população mundial vive na Eurásia, que possui a maior parte dos recursos naturais do planeta... Ali estão 60 por cento do PIB do planeta e cerca de 75 por cento de suas reservas conhecidas de energia... Depois dos Estados Unidos, as outras seis maiores economias e os seis maiores investidores em armas estão localizados na Eurásia. Todos os poderes nucleares, exceto um, estão ali localizados" (Zbigniew Brzezinski, The Grand Chessboard: American Primacy and its Geostrategic Imperatives, Basic Books, Nova York, 1997).

Não há dúvida, portanto, de que a presença militar na Ásia Central não corresponde, em hipótese alguma, a uma "reação ao terrorismo". É resultado de uma estratégia de longo alcance, muito bem pensada, que lança mão do pretexto para se colocar em marcha. Daí também a fabricação do "Islã fanático". O "combate ao Islã" tem como real justificativa o solo geopolítico sobre o qual ele se desenvolve.

 

5. Indústria armamentista Esse ponto funciona apenas como um óbvio corolário do exposto nos quatro anteriores. É óbvio que os fabricantes de armas (e seus correlatos de espionagem) estão abrindo várias garrafas de champanhe. E também é óbvio que, se a operação toda ganhar a dimensão que Bush espera, a economia americana em recessão ganhará um novo fôlego. Sempre foi assim, e não há razão para ser diferente agora.

Assim, Bush e seus asseclas devem estar secretamente comemorando os efeitos do atentado de 11 de setembro. Não poderia receber melhor notícia. Irresistível, nesse ponto, fazer uma analogia com o incêndio da sede do parlamento alemão (Reichstag), na noite de 28 de fevereiro de 1933. Enquanto o prédio ainda ardia, Adolf Hitler, que acabara de assumir o poder, fez um dramático discurso: "Vocês têm aqui um exemplo do que a Europa e nós devemos esperar do comunismo. Sobre este cairá agora o punho duro e poderoso". Imediatamente, foram presos 4.000 militantes comunistas e outro tanto de social-democratas e liberais. Hitler, com grande senso de oportunidade política, aproveitou o momento para consolidar o poder nazista. Começava a sua ditadura.

Hitler responsabilizou os comunistas, antes de qualquer comprovação (como Bush, devidamente ancorado pela mídia histérica); também falou em nome da "Europa", contra o inimigo universal comunista (como Bush fala em nome da "civilização" e da "democracia" contra o Islã); e, finalmente, fez do julgamento uma farsa para justificar a sua própria ditadura. Até hoje existem dúvidas quanto à autoria do incêndio do Reichstag. Ao que parece, foi um ato isolado do comunista holandês Van der Lubbe, embora existam suspeitas de que tenha sido obra dos próprios homens de Hitler.

Não há, obviamente, evidências de que os "homens de Bush" armaram o atentado em Nova York e Washington. Mas nada prova o contrário. Osama bin Laden, o principal "suspeito", foi treinado pela CIA (serviço secreto) e, portanto, usa os seus métodos. Se foi mesmo ele o autor, como conseguiu montar tal operação sem ser detectado? Não seria essa a primeira vez, aliás, que os serviços secretos americanos teriam permitido a realização de um ataque, para com isso obter pretextos necessários aos seus objetivos (lembre-se de Pearl Harbor).

Independentemente de quem foi o culpado, o ato terrorista de 28 de fevereiro de 1933 foi ideal para a ascensão de Hitler, assim como o 11 de setembro de 2001 foi ideal para dar um impulso decisivo ao governo do medíocre Bush. Um filósofo alemão disse, certa vez, que a história sempre se repete como farsa. Tivesse ele a infelicidade de conhecer Bush júnior, que já é a versão tragicômica de seu pai (ele próprio, um emblema da decadência americana), o filósofo seria obrigado a dizer que não há limites para a farsa (e para a indecência) na história dos homens.

 

José Arbex Jr. é jornalista.