É perturbador verificar que os Estados Unidos, um dos berços da democracia
liberal do Ocidente, vivem uma terrível regressão em termos de direitos civis.
Evidentemente, ninguém poderia esperar que os sangrentos atentados de 11 de
setembro passassem sem reação. Já no dia 12 era possível prognosticar que as
polícias e agências federais encarregadas da segurança agiriam com mais
rigor. Eram também previsíveis episódios restritos de xenofobia. Mesmo o
endurecimento da legislação antiterror não soava como um despautério.
Tudo isso aconteceu. Nos EUA, cerca de mil pessoas foram detidas nas investigações
que se seguiram aos ataques. Umas 600 ainda estão presas, embora apenas três
tenham sido ligadas aos sequestros dos aviões usados na ação. Surgiram denúncias
de abuso policial.
Nas ruas, alguns árabes e membros de outras minorias chegaram a ser atacados,
em incidentes que causaram algumas mortes. O ambiente para estrangeiros e alguns
cidadãos, sobretudo os que aparentam vir do Oriente Médio, se deteriorou
apesar dos apelos do próprio presidente George W. Bush para que não se
confundissem os americanos de origem árabe com terroristas.
Foram aprovadas medidas que, com o propósito de facilitar a ação policial,
restringem direitos civis. Forças de segurança ganharam poderes para conduzir
buscas, deter e deportar pessoas sem autorização da Justiça. É verdade que o
pacote aprovado é menos draconiano do que o inicialmente cogitado. As medidas
valem por quatro anos.
Mas nada preocupa tanto quanto constatar que norte-americanos influentes já se
mostram prontos a aceitar a tortura contra supostos terroristas. E não são
apenas militaristas de direita. Mesmo um campeão dos direitos civis como o
advogado e professor de Harvard Alan Dershowitz, que defendeu O.J. Simpson,
preconiza o uso de tortura com autorização judicial. Na mesma trilha caminha
outro liberal, o jornalista Jonathan Alter, da "Newsweek".
É quase inacreditável que os EUA, que nos últimos anos procuraram ensinar o
mundo a exigir respeito aos direitos humanos, cheguem a considerar a
possibilidade de torturar presos. Alguém até poderia afirmar que os
norte-americanos são menos hipócritas, já que praticamente todas as polícias
do mundo torturam. O argumento é pífio. Há uma diferença entre o Estado que
não consegue evitar a tortura e o que a transforma em método oficial de
investigação, no que lembra a Inquisição e seus grotescos manuais que
ensinavam técnicas para seviciar acusados.
Para além do barbarismo, o método é totalmente ineficiente. Sob tortura,
qualquer um confessa qualquer coisa. Israel, que admite a tortura com autorização
da Justiça, em cerca de 5.000 casos jamais conseguiu desbaratar um único
atentado.
A América precisa combater o terrorismo, mas não pode, em nome da segurança,
retornar a uma idade das trevas. Se o fizer, os terroristas terão de algum modo
vencido.