MARCIO AITH
DE WASHINGTON
Ao aplicarem dentro de seu próprio território sua recente lei contra o
financiamento do "terrorismo internacional", os EUA começam a relaxar
os princípios do sigilo bancário e da proteção judicial à propriedade,
dogmas sobre os quais montaram seu capitalismo financeiro.
Na última quarta-feira, o presidente George W. Bush anunciou a prisão de duas
pessoas em Boston (Massachusetts, na Costa Leste), fechou escritórios de duas
redes financeiras supostamente ligadas ao terrorismo em quatro Estados (Al
Barakaat e Al Taqwa) e congelou ativos financeiros de mais 62 indivíduos e
organizações.
Para obter de juízes os mandados que permitiram essa ofensiva, o governo não
precisou mostrar indícios ou provas de ligação com o terrorismo.
A nova lei, aprovada com oposição pontual da Associação dos Banqueiros
norte-americanos e do banco de investimentos J.P. Morgan, permite ao FBI (a polícia
federal norte-americana) congelar direitos de propriedade e quebrar sigilos com
a simples alegação de que dispõe de informações secretas.
A lei estendeu ainda para as corretoras (ou agências de remessas) as mesmas
regras que responsabilizam criminalmente os bancos pelos clientes e os obrigam a
estabelecer programas internos contra a lavagem de dinheiro.
Pressão no exterior
Para obter apoio da opinião pública à nova lei, Bush sugeriu que ela seria um
"alerta para o sistema financeiro mundial".
Seria uma pressão contra países como o Líbano, cujo sistema financeiro abriga
a maior parte dos ativos do grupo extremista Hizbollah, como a Suíça,
conhecido paraíso fiscal.
Embora os Estados Unidos não tenham jurisdição sobre bancos internacionais,
Bush alegou que, se os países ou instituições se recusarem a congelar
recursos de supostos terroristas, ficariam proibidos de "fazer negócios
com pessoas ou companhias norte-americanas".
No entanto a ofensiva da última quarta-feira indica que, mais do alertar o
mundo, a nova lei cria um instrumento eficaz no combate interno à lavagem de
dinheiro. Além disso, joga luz sobre o próprio sistema financeiro
norte-americano.
Pesquisa feita por Raymond Baker para o Instituto Brookings, em Washington,
estima que, dos cerca de US$ 500 bilhões a US$ 1 trilhão arrecadados
anualmente pelo crime organizado (máfias, corrupção, sonegação fiscal e
terrorismo), ao menos metade passa pelo sistema financeiro norte-americano.
Outro levantamento, divulgado na semana passada pelo GAO (o braço investigativo
do Congresso norte-americano), mostra que apenas 17% das 3.015 corretoras e 40%
dos 310 fundos mútuos existentes nos EUA mantêm medidas voluntárias contra a
lavagem de dinheiro - como obtenção prévia da identidade e da origem dos
clientes e comprovação da fonte dos recursos.
Lavagem à americana
O uso do sistema financeiro dos EUA como plataforma do crime organizado não é
assunto novo. Nos últimos dois anos, o Citibank, maior banco privado dos EUA,
foi obrigado a mudar todas as formas de fazer "private banking" (nome
dado ao modo de os bancos tratarem clientes com mais de US$ 10 milhões) depois
de sua clientela ter sido exposta ao público em rumorosos escândalos
internacionais de corrupção.
Entre os clientes do Citibank figuravam Omar Bongo, presidente do Gabão (África),
processado na França sob acusação de receber propina de companhia francesa;
os filhos do general e ex-ditador da Nigéria Sani Abacha (um dos quais
condenado por assassinato quando se tornou cliente do banco); Jaime Lusinchi,
ex-presidente da Venezuela acusado de corrupção; duas filhas de Suharto,
ex-ditador da Indonésia; general Alberto Stroessner, ex-ditador do Paraguai; e
Raul Salinas, irmão e agente financeiro do ex-presidente do México Carlos
Salinas, protagonista de um dos maiores casos de corrupção do país.
A novidade é que a nova lei, aprovada por Bush, dispensa grandes investigações
como condições prévias à quebra de sigilo e ao congelamento de ativos.