Música, Tecno, Techno, Cibercultura, Ciberespaço, Internet, Cooperação, Cultura

A Música Tecno na Era da Internet

Anderson Carlos D. Sanches & Carlos Alberto Ribeiro Monero

Antes de ler o nosso trabalho, recomendamos a audição de Fat Boy Slim versus Rolling Stones

"A música tecno inventou uma nova modalidade de tradição, ou seja, uma forma original de tecer o laço cultural. Não é mais, como na tradição oral ou de gravação, uma repetição ou uma inspiração a partir de uma audição. Também não é mais como na tradição escrita, a relação de interpretação que se cria entre partitura e sua execução, nem a relação de referências, progressão e invenção competitiva que tem lugar entre os compositores. No tecno, cada ator do coletivo de criação extrai matéria sonora de um fluxo em circulação em uma vasta rede tecno-social. Essa matéria é misturada, arranjada, transformada, depois reinjetada na forma de uma peça "original" no fluxo de música digital em circulação. Assim, cada músico ou grupo de músicos funciona como um operador em um fluxo em transformação permanente em uma rede cíclica de cooperadores. Nunca antes, como ocorre nesse tipo de tradição digital, os criadores estiveram em relação tão íntima uns com os outros, já que o laço é traçado pela circulação do material musical e sonoro em si, e não apenas pela audição, imitação ou interpretação."

Pierre Lévy em Cibercultura

Resumo

O tecno, independentemente de sua conceituação musical, provoca a sociedade com novos conceitos, uma nova forma de tradição e questões da propriedade intelectual. Ele apresenta uma maneira inovadora e colaborativa de se produzir conteúdo musical, independente de uma região ou cultura específica. Agrega legiões de produtores/consumidores ao redor do mundo numa produção constante e de autores anônimos, mas conhecidos pelo seu estilo e velocidade de recriação. Este fenômeno somente foi possível devido ao crescimento e consolidação da Internet como veículo público e próprio de divulgação e disseminação de idéias e movimentos culturais. Este trabalho visa esclarecer seus precedentes tecnológicos, fatores motivadores, formas de produção e analisar os novos paradigmas propostos e suas influências na sociedade.

 

Introdução

Falar sobre música não é tarefa fácil, tendo em vista que para isso ou se é músico ou crítico de música. Como ouvinte poderíamos criar uma polêmica sobre gostos e preferências musicais, discussão esta que não nos levaria a um julgamento seguro, tendo em vista que gosto não se discute, lamenta-se. Logo, este trabalho não tem esta pretensão. Queremos sim discutir um fenômeno que vem crescendo nos últimos anos, característico de uma cooperação espontânea, somente possível com o advento da Internet.

A música Tecno é um movimento, um conceito musical, uma cooperação reveladora de novos talentos, anônimos no mundo comercial, porém importantes na formação de uma rede criadora e reciclável de um estoque musical e artístico nunca produzidos nesta escala. Há vários os fatores que nos levam a analisar este novo fenômeno.

Podemos começar analisando sua forma de produção e disseminação do conhecimento musical até a sua influência no desenvolvimento de novas iniciativas musicais e na própria cultura. A música é uma das principais formas de expressão cultural e de identidade de um povo. Através dela reconhecemos comportamentos, estilos, valores e crenças específicas de uma nação.

A música é uma linguagem que permite estabelecer um conceito sócio-político de distinção de classes sociais. Pode tanto ser identificável como uma manifestação popular como um processo de separação de um grupo elitista interessado em diferenciar-se das massas. A música possui um valor econômico regional ou global. Permite a geração de riquezas, tanto no aspecto autoral como de distribuição. É também um patrimônio cultural, pois consolida uma história e uma identidade social. 

Conforme mostra Pierre Lévy “o rock era anglo-americano, e tornou-se uma indústria. Isso não o impediu, contudo, de ser o porta-voz das aspirações de uma enorme parcela da juventude mundial”. 

Como o rock, a música Tecno traz uma intencionalidade, uma expressividade coletiva, uma caracterização cultural e social encontrada em periódicos movimentos libertadores das amarras centralizadoras do poder econômico. Outro fator importante de se observar é que o processo de produção alternativa de música não é um acontecimento tão recente.

Acredita-se que a primeira fase de ruptura em busca de uma música universal foi iniciada com a proliferação das gravações e da transmissão radiofônica. Já nos primeiros catálogos de discos, datando do início do século XX, podemos perceber uma paisagem musical mais fragmentada, porém mais "congelada", que a música Tecno.

As pessoas tinham o habito cultural de escutar aquilo que lhe era familiar, sem precisar educar sua audição com músicas provenientes de outros países. Cada país tinha seus cantores, suas canções e apreciava melodias e instrumentos específicos de sua região. A maioria dos discos com músicas populares era gravado por músicos locais, para um público geral. Apenas os discos com músicas eruditas eram vendidos e ouvidos internacionalmente. Depois de um século a situação mudou radicalmente, já que a música popular além de ser gravada fora de seu país de origem é também ouvida e comercializada em âmbito mundial.

Além disso, vemos diversos interpretes fazerem adaptações de versões originais para sua língua local, sem com isso mudar a sonoridade da música. Outros tentam realizar experiências realizando cruzamento de ritmos e estilos musicais. Estes fatores nos mostram que o movimento de composição similar a música Tecno já tinha sua origem em outras iniciativas.

Contudo, observamos que a Internet colabora sobremaneira na expansão e disseminação dessa nova forma de se produzir conteúdo musical.

Um Mundo Digital

O advento do digital, tornou possível a manipulação sonora por agentes que não necessariamente dominavam técnicas para produzir música (tocar instrumentos). Agora a música podia facilmente ser rearranjada, manipulada e misturada com outras composições, criando-se, a partir de música existente, composições originais.

 

O Movimento Tecno

A música Tecno tem suas origens numa manifestação social advinda das fábricas montadoras de automóveis em Chicago, nos EUA. É a percepção e união metafórica do barulho produzido pelas máquinas com os sons produzidos pelos homens.

O movimento Tecno procura mostrar que apesar de ser uma produção feita através de equipamentos digitais, reproduzidos com fragmentos sonoros, consegue despertar um sentimento no ouvinte que lhe faz interagir de forma mental ou corporal com o som produzido. Permite-lhe identificar um conceito musical por trás da repetição sonora. 

Para a música Tecno o que importa são os encaixes sonoros digitais, feitos através de equipamentos próprios, advindos de uma inspiração de várias fontes sonoras. A música Tecno é resultante de um trabalho recursivo de amostragem e arranjo de músicas já existentes.

Para alguns é a ciber-arte na sua mais pura manifestação, pois exige um compartilhamento de idéias e manifestações musicais, aprovação inquestionável da manipulação de qualquer material produzido, bem como a exploração e interpretação coletiva.

Sua universalidade é inquestionável, tendo em vista que o som extraído das composições pode ser facilmente reconhecido em qualquer parte do mundo, e aceito por todos os países que passaram pela revolução industrial. Máquinas e operários são figuras permanentes no cenário global.

Outra característica importante é que não há controle centralizado, tudo é disponibilizado na Internet e serve de matéria prima para novas composições. O novo pode deixar de ser novo em poucos segundos. Mas continua atual.

O formato MP3, idealizado para transportar conteúdo musical pela Internet, é uma iniciativa importante na compactação do conteúdo e da qualidade produzida do som.

Podemos perceber ainda que muitos autores não têm às vezes habilidade com instrumentos musicais tradicionais, como o violão, a flauta, o piano ou o tambor. Podem ser vistos como agentes digitais que materializam um trecho de uma obra através da montagem de vários fragmentos disponíveis na Internet.

Uma questão ainda não resolvida é se isto deixa de ser uma participação na construção do sentido, e passa a ser uma co-produção da obra, já que o autor é meramente um montador de frases digitais. Porem é falso pressupor que quem manipula estes códigos não tenha alguma habilidade musical. Uma premissa básica é a presença de ritmo no seu portifólio de competências.

Fica até impossível imaginar um autor de música Tecno que não tenha um mínimo de ritmo. A essência da música está no compasso e no seqüenciamento constante do som. São enxertados elementos diferenciados durante o processo de conclusão da obra. Estes elementos diferenciados é que mistificam o autor e o fazem especial perante o coletivo do qual participa. A música Tecno é o som da cibercultura.

De acordo com Pierre Lévy:

 

“A música Tecno inventou uma nova modalidade da tradição, ou seja, uma forma original de tecer o laço cultura. Não é mais, como na tradição oral ou de gravação, uma repetição ou uma inspiração a partir de uma audição. Também não é mais, como na tradição escrita, a relação de interpretação que se cria entre a partitura e sua execução, nem a relação de referência, progressão e invenção competitiva que tem lugar entre compositores. No Tecno, cada ator do coletivo de criação extrai matéria sonora de um fluxo em circulação em uma vasta rede tecno-social.”

 

Temos então três itens importantes neste novo cenário musical a saber:

 

1. A Interconexão através do uso da Internet, bem como o fluxo contínuo de material sonoro que circula entre os músicos e a possibilidade de digitalizar e tratar qualquer peça como sua propriedade.

2. A Comunidade Virtual que e forma para produzir, trocar e ouvir se próprio material, já que os acontecimento sociais adquirem uma importância na apresentação dos produtos musicais.

3. A Inteligência Coletiva que estende-se constantemente e integra progressivamente o conjunto do patrimônio musical gravado e disponível.

 

A Internet como um Canal de Distribuição

"The freedoms I speak of above has the greatest impact on people who create or wish to create music. A few years ago, when I started getting into making recordings, musicians were looking at analog 4-tracks and 8-tracks and saying, hey, we can now produce great sounding albums without spending a lot of money. Today, with digital recording in place, musicians can now produce recordings that sound as good or better than a major label record in their basements. And the digital world has become the great equaliser: musicians can also distribute this music widely, probably better than what a major label would do for the average musician."

Ram Samudrala, The Future of Music

A Internet consolidou-se além de fonte da matéria prima, um dos principais canais de distribuição da música eletrônica.

 

Operadores num Fluxo Constante

É cada vez mais freqüente que os músicos produzam sua música a partir da digitalização, amostragem (sampling) e da reordenação de sons, algumas vezes trechos inteiros, previamente obtidos do estoque das gravações existentes. A composição da música de forma eletrônica é um fractal, seguindo os seguintes princípios:

Retroalimentação: cada música final é usada como matéria prima para composição das próximas. A gravação deixou de ser o principal fim ou referência musical. Não é mais do que o traço efêmero (destinado a ser sampleado, deformado, misturado) de um ato particular no seio de um processo coletivo.

Auto-organização: Não existe um "músico" que faz a composição inteira, mas sim uma inteligência coletiva que se alimenta do estoque musical existente, sendo que cada pessoa anonimamente participa do processo de criação das partes. Cada um é ao mesmo tempo produtor de matéria-prima, transformador, autor, intérprete e ouvinte em um circuito instável e auto-organizado de criação cooperativa.

Auto-similaridade: Cada trecho da música possui uma história de composição que segue o mesmo padrão. Cada um dos subconjuntos do processo deixa aparecer uma forma semelhante à de sua configuração global. Não existe a "música final", mas sim referências intermediárias em um fluxo contínuo em circulação na vasta rede tecno-social. Essa matéria é misturada, arranjada, transformada, depois injetada na forma de uma peça nova no fluxo de música digital em circulação.

Podemos encontrar na música tecno os princípios do movimento social da cibercultura: interconexão, comunidade virtual e inteligência coletiva.

 

A Cibercultura

Não podemos negar que a Internet, além de trazer um profundo impacto nos processos de comunicação, pode ter colaborado com a consolidação desse fenômeno musical. Porém, não devemos afirmar que apenas o surgimento de um espaço coletivo global (ciberespaço) seja o responsável pela descoberta desse novo modo de expressão musical. Já a música tradicional é recebida por audição direta e difundida por imitação, evoluindo por reinvenção de temas e de gêneros entrelaçados.

Muitas vezes o interprete é mais reconhecido nas culturas ocidentais do que o próprio autor. Pela sua capacidade de renovação e mescla de vários estilos musicais. Sua exposição é maior e a identidade do povo se consolida na medida em que cria seu próprio personagem. Na Internet também podemos ter este tipo de personagem. Oculto na sua produção e ao mesmo tempo reconhecido por um codinome que lhe dá reconhecimento pela sua capacidade criativa. Porém, na forma tradicional de produção artística o compositor que assina a partitura lhe dá um caráter inédito e original, enquanto que no ciberespaço tudo pode ser copiado e transformado sem que se saiba quem criou ou definiu determinado conteúdo musical.

As formas de gravação consolidaram estes processos tradicionais de produção musical e estão ameaçadas pelas novas formas de composição e registro autoral.

A Internet proporciona formas de comunicações diferentes daquelas que as mídias clássicas nos propuseram ao longo desses anos, bem como um espaço de comunicação que nos permite acessar, disponibilizar, acumular e encontrar estoques de informações volumosos.

Para Lévy o ciberespaço é o novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores. O termo especifica não apenas a infra-estrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de informações que ela abriga, assim como os seres humanos navegam e alimentam esse universo. Isto cria por sua vez um novo movimento cultural denominado de cibercultura.

O termo cibercultura define um conjunto de técnicas (materiais ou intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço. Pierre Lévy nos mostra a importância da compreensão do fenômeno da diversidade quando descreve que:

“Quando Noé, ou seja, cada um de nós, olha através da escotilha de sua arca, vê outras arcas, a perder de vista, no oceano agitado da comunicação digital. E cada uma dessas arcas contém uma seleção diferente. Cada uma quer preservar a diversidade. Cada uma quer transmitir. Estas arcas estarão eternamente à deriva na superfície das águas.” (Pág. 15)

Isto leva-nos a pensar que existe uma dificuldade em preservarmos a tradição da mesma forma que nossos antepassados faziam. O método de reunimo-nos no centro da aldeia para transmitir nossas idéias e culturas está ultrapassado. Fazemos isso atualmente através de salas de bate-papo ou enviando um e-mail para alguém. A digitalização instaura uma nova forma de criação e de audição musical.

Contudo, a música como expressão tradicional na regionalização das culturas antigas não está ameaçada pela digitalização e construção eletrônica de novos produtos musicais. Porém não existe mais a possibilidade de reunirmos vários elementos importantes para a nossa cultura musical e acharmos que estamos preservando ou resguardando nossos valores culturais. A velocidade com que as transformações ocorrem, principalmente pelo advento da Internet, colocam em xeque qualquer tentativa de se construir uma arca e nela colocarmos uma cultura musical representativa de todos os povos.

Tentar preservar uma tradição desta maneira é antes de mais nada, reconhecer um fenômeno espontâneo e globalizado como a música Tecno.

Para apoiar este conceito podemos citar, de Pierre Lévy, o seguinte:

“... a cibercultura expressa o surgimento de um novo universal, diferente das formas culturais que vieram antes dele no sentido de que ele se constrói sobre a indeterminação de um sentido global qualquer. Precisamos, de fato, colocá-lo dentro da perspectiva das mutações anteriores da comunicação.” (pág 15)

 

... a cibercultura leva a co-presença das mensagens de volta a seu contexto como ocorria nas sociedades orais, mas em outra escala, em uma órbita completamente diferente. Ela se constrói e se estende por meio da interconexão das mensagens entre si, por meio de sua vinculação permanente com as comunidades virtuais em criação, que lhe dão sentidos variados em uma renovação permanente.” (Pág. 15)

 

Uma Batalha Entre a Catedral e o Bazar

A alguns anos atrás, Eric S. Raymond escreveu um artigo chamado A Catedral e o Bazar. Ele não tratou sobre música, mas sim sobre software: como o modelo do "bazar" (milhares de programadores espalhados pela Internet escrevendo software por fatores inerente, como a dedicação por resolver problemas e/ou diversão) é superior ao modelo da "catedral" (onde um pequeno grupo de programadores controla o desenvolvimento de um pedaço de software). Raymond compara o modelo de desenvolvimento do Linux, o sistema operacional que surge como uma ameaça crível ao monopólio da Microsoft, com um bazar, e os principais esforços da Free Software Foundation, e outros desenvolvimentos comerciais, incluindo a Microsoft, com catedrais.

Existe uma analogia similar em relação a música, mas diferente em prática, porque o objetivo da musica não é utilidade. Podemos comparar o modelo da catedral, na música, com as grandes gravadoras, que impõe suas regras a seus músicos, como, "tem que vender bem", já que o objetivo delas é o lucro do negócio. Já os usuários gravadores de MP3, os músicos que distribuem seu trabalho pela Internet, os DJ, são todos parte do modelo bazar de desenvolvimento da música. Neste modelo o criador faz seu trabalho por várias razões, como amor a música ou um ego criativo, e não prioritariamente o lucro.

Os grandes selos muitas vezes utilizam-se do seu poder econômico para lançar artistas preferidos, ou massificar a demanda por um tipo de música ou artista, sempre visando o lucro. Com o modelo bazar, ou seja a produção da música a custos bastante baixos, e sua distribuição sem custo para o autor, possibilitou a emergência de novos músicos, ainda desconhecidos do grande público, mas cada vez mais procurados em páginas de MP3.

 

E estes novos músicos? Não vão comer?

Usualmente tendemos a achar que os músicos ganham dinheiro vendendo seus cd e por direitos autorais sobre suas músicas. Mas não é somente assim. Músicos conhecidos, ganham muito dinheiro com apresentações e licenciamento de produtos. A totalidade destes músicos poderia continuar vivendo da sua carreira apenas com apresentações. 

O modelo de negócios das gravadoras é bastante impositivo e restritivo para com os músicos, sendo estes obrigados a gravar certas músicas, a fazer tantos álbuns em determinado período etc. Até hoje os cd de grandes selos nacionais não são numerados, o que não permite ao músico conferir o número real de cd vendidos. Além disto muitos músicos ganham comissão por somente 70% dos discos vendidos, os outros 30% são dados como perda pelas gravadoras, por quebra no transporte ou furtos. Isto levou muitos músicos a considerarem a montagem de um selo independente, e distribuir seus discos em bancas de jornais e pela Internet, a preços bastante inferiores que os das gravadoras, porém com um lucro para o artista muito superior, como vimos mais recentemente com Lobão (álbum "A Vida É Doce") e Supla (álbum "O Charada Brasileiro"). Estes dois tiveram sucesso nos discos lançados: Lobão vendeu mais discos que no seu álbum anterior e ganhou mais por cada um deles; o álbum independente de Supla foi seu disco mais vendido, apesar de não pagarem o popular "jaba" (propina que as gravadoras pagam as rádios, a título de "divulgação", para tocarem repetidamente músicas de seu interesse).

Esta novas forma de distribuição, através de bancas de jornal, se dá principalmente por que o contingente de pessoas no Brasil que ainda não acessa a Internet é muito grande. Mas e a venda do disco? A música desse tipo ainda não é livre, mas um disco nesta forma de gravação e distribuição já custa até 60% menos para o consumidor que os das grandes gravadoras, e por ser vendido em bancas pelas leis brasileiras, deve vir com um encarte impresso, um livrinho no caso do Lobão e um pôster no caso do Supla. Esta forma de distribuição nos parece bastante semelhante a distribuições do Linux como a nacional Conectiva. Nela você pode obter o sistema operacional com livros e manuais pela Internet gratuitamente ou comprar uma caixa com tudo isto dentro. Como no caso do uso da banca de jornal já que a maior parte dos brasileiros não tem acesso a Internet, a distribuição em cd se dá pelo fato de a maioria dos usuários da Internet não terem conexões de banda larga. A Conectiva ganha dinheiro com implementação de seu sistema operacional em empresas, serviços de suporte e revistas sobre Linux. Diferente do Linux, o cd não pode ser copiado, mas no caso do Lobão pode-se baixar suas músicas gratuitamente de sua página, constituindo o primeiro exemplo brasileiro de artista famoso que permite e incentiva a livre distribuição de suas músicas.

Até agora, vimos como músicos famosos podem prescindir de suas gravadoras e continuarem a se sustentar pelo seu trabalho. Mas e os músicos não tão conhecidos e em início de carreira? Dificilmente eles terão êxito lançando um CD independente. Mas a Internet pode fazer muito mais por eles que uma grande gravadora. Nela o artista pode divulgar largamente sua música, provavelmente de forma melhor do que uma gravadora faria para o músico comum. Estes músicos, a partir do momento em que se formar uma comunidade (tratada como "nicho" de mercado pelas grandes gravadoras) que goste de suas músicas, pode fazer apresentações e pedir doações pelo seu trabalho.

Como já foi dito, os músicos atualmente fazem dinheiro através de várias fontes: vendas de gravações, mercadorias e ingressos de apresentações, e direitos autorais da exploração comercial. Tornar a música grátis certamente não será prejudicial as vendas de mercadorias e ingressos, nem obrigatoriamente afetará o desempenho dos direitos autorais. Isto ao menos vai melhorar as vendas, já que as pessoas continuarão a apoiar os artistas que gostam indo aos seus concertos e comprando suas mercadorias. Lucros das vendas de gravações não serão afetados porque as pessoas serão encorajadas em comprar diretamente do artista pelos prêmios adicionais de encartes com letras e embalagem. Então a música livre pode ser usada como ferramenta de mercado para assegurar que os músicos não morram de fome. Numa abordagem onde as pessoas enviam ao artista uma "doação", se elas acham valor na música que copiam, isto é uma outra maneira direta de se fazer dinheiro. Isto pode se tornar uma prática enraizada na sociedade, como gorjetas, onde mesmo não sendo obrigatoriamente requerida para vários serviços, as pessoas as dão de qualquer maneira.

Como o modelo do bazar segue essa trajetória complexa, as soluções econômicas automaticamente advirão de uma maneira complementar. O comércio detesta um vácuo.

 

A Nova Tradição

A música tecno representa uma ruptura com as antigas tradições artísticas. Antes, o material existente, seja na forma oral, escrita ou gravada, era usado como inspiração e referência para a criação de novas músicas. Agora o próprio material existente entra na composição das novas músicas.

É como a idéia mítica das infinitas tartarugas, uma em cima da outra que suportam a terra. Ou a idéia de "pisando no ombro de gigantes".

Não é mais, como na tradição oral ou de gravação, uma repetição ou uma inspiração a partir de uma audição. Também não é mais como na tradição escrita, a relação de interpretação que se cria entre partitura e sua execução, nem a relação de referências, progressão e invenção competitiva que tem lugar entre os compositores. No tecno, cada ator do coletivo de criação extrai matéria sonora de um fluxo em circulação em uma vasta rede tecno-social. Essa matéria é misturada, arranjada, transformada, depois reinjetada na forma de uma peça "original" no fluxo de música digital em circulação.

Nunca antes, como ocorre nesse tipo de tradição digital, os criadores estiveram em relação tão íntima uns com os outros, já que o laço é traçado pela circulação do material musical e sonoro em si, e não apenas pela audição, imitação ou interpretação.

 

As Questões da Propriedade Intelectual e os Direitos Autorais

"From a creative perspective, I see all this going is that music becomes like language. Just as no one owns the English language, no one will own what music will become."

Ram Samudrala, The Future of Music

Um dos fatores de maior polêmica no campo da música na Internet é a propriedade intelectual e a referência aos direitos autorais. Mesmo assim, A música eletrônica está cada vez mais presente na rede sob a filosofia do bazar.

Tendo em vista que a produção e a disseminação de um repertório musical através da Internet traz um impacto direto sobre o mercado fonográfico, e a troca desse bem passa a ter um valor diferenciado para o consumidor, muitos autores e gravadoras estão preocupados em criar uma legislação específica que regularmente a venda e a taxa de impostos sobre estes produtos.

A característica marcante da música Tecno é a ruptura com a notação e os estúdios de gravação. Tradicionais e caros para diversos músicos amadores. Com a digitalização foi possível colocar ao alcance de vários músicos a possibilidade de realizar produções a um baixo custo. O estúdio digital, construído habitualmente na própria residência do músico, é comandado por um simples computador ligado a um seqüenciador. Encontramos também um “sampler” para a digitalização do som, programas de mixagem e arranjo, bem como um sintetizador.

Os músicos então, após produzirem seu material, podem colocá-lo diretamente na rede sem passar pelos intermediários que foram introduzidos pelo sistema tradicional de produção musical. Criam assim estoques enormes de conteúdo musical, disponível publicamente, para remontagem e material de inspiração.

Conforme Pierre Lévy:

“A música Tecno colhe seu material na grande reserva de amostras de sons. Se não fosse pelos problemas jurídico-financeiros que tolhem seus produtores, as hipermídias seriam muitas vezes construídas a partir de imagens e textos já disponíveis.”

 

Para isso, Aldo Barreto traz uma definição relevante para o conceito de estoques de informação:

 

“Conceituamos como estoques de informação toda a reunião de estruturas de informação. Estoques de informações representam, assim, um conjunto de itens de informação organizados (ou não), segundo um critério técnico, dos instrumentos de gestão da informação e com conteúdo que seja de interesse de uma comunidade de receptores. As estruturas de informação que se agregam nos estoques podem estar em diferentes níveis de completeza em relação a uma mesma peça de informação: ter o formato só da referência bibliográfica, ou do título, do resumo, indicadores por palavra-chave, ou o texto completo”.

Uma mesma estrutura de informação pode reunir um ou mais dos elementos indicados. Pode estar configurada em linguagem natural ou em uma metalinguagem para controle e localização, representada por um conjunto ou um subconjunto de código lingüístico comum à comunidade de usuários com a qual o estoque se relaciona.

Quanto mais o estoque de informação estiver codificado em uma metalinguagem mais estará ocultando a informação completa em linguagem natural. Um estoque de itens codificados servirá, principalmente, para direcionar o receptor para a informação útil, mas estabelece a necessidade de haver um duplo fluxo de comunicação.”

 

No caso da música Tecno esta estruturação é aleatória, não suscetível as regras tradicionais de produção musical. Não existe um critério técnico, pois a dinâmica impõem a construção de um novo modelo musical e quando distribuído na rede se transforma num novo modelo, fragmentado e reconstruído com base em idéias e pedaços digitais.

O fator relevante é sua importância na comunidade de receptores, ou seja, de interesse daquele conteúdo musical.

Quando afirma que “uma mesma estrutura de informação pode reunir um ou mais dos elementos indicados” corrobora com o conceito da união de fragmentos que acabam tornando-se um todo personalizado. Podemos até arriscar o conceito de metalinguagem, pois a origem do movimento Tecno vem das fábricas montadoras de automóveis em Chicago, nos EUA. Da percepção da união do som humano com o som das máquinas. O convívio do natural com o mecanicista.

Desta forma, é correto afirmar que quando há intensa produção através da metalinguagem maior será a dificuldade em se identificar o som natural, a sua verdadeira origem. Mas parece que no movimento Tecno este conceito de origem é ignorado e desprezível. O que importa mesmo é o resultado da soma das partes em um novo produto. O talento não está muitas vezes associado com o conteúdo musical e sim com o personagem que desenvolve uma técnica específica para criar conteúdo digital.

A importância dos estoques de informação permite-nos compreender o poder de se construir uma rede de troca e armazenamento aberta e descentralizada. Outro aspecto importante para o armazenamento e a distribuição de informações tem sua origem numa preocupação de limitação técnica, originada nos grandes volumes centralizados de bits num só computador.

Buscou-se então uma solução operacional que confronta-se diretamente com a economia da informação. Podemos relacioná-los da seguinte maneira:

 

1. Seleção: Quais são os itens de informação que contribuirão para a construção das música e que comporão os estoques de informação. Quais os critérios e a política de inclusão destes estoques? Quem irá selecionar e disponibilizar tais informações na rede, em nome dos receptores? De acordo com Aldo Barreto, “todo ato de selecionar uma parte de um todo representa um favorecimento daquela parte e um ocultamento do todo não favorecido na escolha”.

2. Transformação: É o processo de utilizar parte do documento original para criar o novo documento. Retiramos trechos de músicas e enxertamos estes blocos em outro documento, dando um novo sentido a criação. Este método modifica a integridade da estrutura da informação. Esta seleção esconde a informação.

3. Tradução: Momento no qual surge uma nova linguagem, uma nova música. O sentido é estabelecido e se percebe que onde antes tínhamos um linguagem natural, ganha-se através da digitalização um corpo metalingüístico. Compreendido por aqueles que produzem a música e por aqueles que consomem a música.

 

Fica evidente que uma nova visão conceitual da informação, através da música, afeta sua integridade e conseqüentemente pode afetar o processo de conhecimento como um todo.

 

Conclusão

As discussões advindas dos debates sobre a música tecno são muito ricas. Seria impossível prever o futuro da música por estarmos tratando de um sistema complexo adaptativo, que por definição não pode ser predito. Contudo é certo que o movimento tecno e tudo que advém dele, vão provocar uma renegociação das instituições como hoje as conhecemos. Muitas delinearão seus novos limites, outras vão sumir e outras tantas aparecer. Tudo depende de como a sociedade vai entender e tratar estas questões.

 

Bibliografia Impressa

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica, em: Magia, técnica, arte e política. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1985

LEMOS, André L. M. As estruturas antropológicas do cyberespaço.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo, Ed. 34, 2ª ed., 2000.

 

Bibliografia na Internet

Textos e discussão sobre música na Internet

The Future of Music

Techno.org

BARRETO, Aldo de Albuquerque. Os agregados de informação – Memória, esquecimento e estoques de informação. http://www.dgz.org.br/jun00/art_01.htm.

Músicas em MP3

mp3.com

free-music.com

Página do Lobão


Na maioria dos livros utilizados, Techno foi traduzido para Tecno. Resolvemos utilizar a segunda forma. ACDS & CARM