REFLEXÕES SOBRE A PENA DE MORTE

Valdemar W.Setzer
www.ime.usp.br/~vwsetzer
24/4/07

1. Introdução

Devido à comoção provocada pelo bárbaro assassinato do menino João Hélio no Rio de Janeiro, quando foi arrastado pelo cinto de segurança por assaltantes jovens que haviam roubado o carro de seus pais (ver meu artigo "Violência – o que fazer?", onde aponto para soluções para o problema da violência distintas das normalmente aventadas), muitas pessoas, inclusive acadêmicos, manifestaram-se a favor da reintrodução da pena de morte no Brasil.

Neste artigo, abordo as razões em geral levantadas a favor da pena de morte, e apresento dois grupos de razões contra a mesma: as triviais e as profundas. Nestas últimas o leitor encontrará minhas principais razões para ser contra a pena de morte.

2. Razões a favor da pena de morte

Os principais argumentos a favor da pena de morte são os seguintes (não vou comentá-los pois são óbvios).

F1. A pena de morte inibe os criminosos.

F2. Eliminam-se indivíduos indesejáveis à sociedade.

F3. Diminuem-se os custos com carceragem.

3. Razões triviais contra a pena de morte

C1. A pena de morte não tem efeito inibidor.

Aparentemente, esse é o caso em países em que ela existe. No entanto, no caso dos assassinos de João Hélio, sua intenção não era matar. Como escrevi no artigo citado acima, provavelmente eles saíram dirigindo o carro roubado em desabalada carreira, perdendo a capacidade de pensarem conscientemente no que estavam fazendo; é possível que estivessem reagindo como em jogos eletrônicos violentos, nos quais o jogador tem que reagir automaticamente, instintivamente, pois se pensar nas situações do jogo perde pontos ou é "morto" pelos "inimigos". Obviamente, a pena de morte só poderia inibir prováveis assassinos em casos de assassinatos premeditados.

C2. Há possibilidades de inocentes serem condenados à morte.

Um exemplo clássico dessa razão são os vários casos de condenações injustas que ocorreram nos EUA, tendo-se verificado a inocência do condenado depois que este foi executado.

C3. A pena de morte vai contra a cultura ocidental.

De fato, desenvolveu-se na cultura ocidental um sentimento muito forte de respeito pela liberdade, pela dignidade e pela vida humanas. A pena de morte parece ser um retrocesso a tempos passados. Qualquer retrocesso a tempos já passados leva a uma degeneração, pois o ser humano e a cultura não são mais os mesmos.

C4. O assassino tem que ser punido, isto é, sofrer pelo que fez (pelo menos, com a perda da liberdade).

Executando-se o assassino, ele não sofre mais.

4. Razões profundas contra a pena de morte

Estou de acordo com as razões triviais expostas acima. No entanto, tenho algumas razões profundas para ser contra a pena de morte.

C5. Imprevisibilidade do ser humano.

É impossível prever qual será o futuro de um ser humano. Existe um número enorme de casos em que, por exemplo, uma pessoa suplanta enormes dificuldades, que são aparentemente praticamente intransponíveis. São casos de doenças incuráveis, ou de dificuldades físicas e psicológicas, indicando que a pessoa jamais conseguiria, por exemplo, um sucesso na vida profissional ou social. São também casos de dificuldades financeiras, como por exemplo a necessidade de trabalhar precocemente, em lugar de estudar. No entanto, há pessoas que conseguem quase que milagrosamente ir contra todos os prognósticos negativos e realizar grandes feitos para a humanidade. Um caso concreto que logo vem à mente foi o de Hellen Keller que, apesar de cega e surda e muda desde os 2 anos de idade, tornou-se um exemplo mundial de vontade de viver e de altruísmo (ver, por exemplo, http://en.wikipedia.org/wiki/Helen_Keller). Um outro foi o de Anne Frank, uma menina ainda sem expressão, que se tornou, apesar da restrição à sua liberdade, um símbolo do sofrimento provocado pelo totalitarismo e desumanidade. Einstein não foi um estudante promissor, tendo sido reprovado inicialmente nos exames de ingresso à universidade; de um simples funcionário em um departamento de patentes, passou a um dos maiores gênios científicos de todos os tempos. Finalmente, outro caso, mais afeto ao nosso tema, foi o de Henri Charriàre, autor do famoso livro Pappillon que, condenado à prisão perpétua e ao degredo, escreveu uma obra que se tornou um símbolo para a luta pela liberdade.

Essa imprevisibilidade engloba qualquer ação humana. Portanto, não se pode garantir que o pior assassino não venha um dia a regenerar-se, passando a ser um cidadão que possa novamente integrar-se sadiamente à sociedade e, quem sabe, dar uma contribuição positiva única para ela.

C6. Não sabemos o que é a vida humana.

A imprevisibilidade abordada no item anterior é conseqüência de um fato: não sabemos o que é a vida, em particular a vida humana. Temos uma noção intuitiva do que vem a ser a vida, em particular a vida humana, mas de modo algum temos uma teoria científica que a explique (a esse respeito, veja-se meu artigo "Desmistificação da onda do DNA") e que nos faça compreendê-la a ponto de podermos decidir se ela deve ser eliminada ou não. Rudolf Steiner (1861-1925, ver www.sab.org.br), em um de seus livros básicos, coloca uma observação muito profunda: se um certo animal é eliminado, a sua espécie não desaparece; todas as características da espécie perpetuam-se nos outros indivíduos da mesma. No entanto, cada ser humano é único no universo pois tem características próprias que não ocorrem em nenhum outro. É como se, principalmente do ponto de vista mental, cada ser humano fosse equivalente a toda uma espécie animal. Eliminar um ser humano é como eliminar toda uma espécie. Essa individualidade faz com que se possa concluir: se matarmos uma pessoa, algo de único desaparece no universo; que direito temos de decidir eliminá-la, se não compreendemos profundamente o que significa sua vida e se está na hora de ela desaparecer?

O conhecimento intuitivo de que, matando-se uma vaca, a espécie das vacas continua a mesma, talvez seja o motivo que leva certas pessoas a comerem carne de vaca. Por outro lado, o perigo do desaparecimento de uma espécie, como a de um certo tipo de baleia, faz com que certas pessoas reajam e lutem para que esse desaparecimento não ocorra. O reconhecimento de que cada indivíduo humano é como uma espécie animal deveria necessariamente levar à atitude moral de que não se devem matar pessoas.

Note-se que não são os animais que estão mudando o mundo, mas sim o ser humano – infelizmente, de muitos pontos de vista, para pior. Reforçando o que foi dito na razão C5, cada ser humano pode vir a ser um fator imprevisível para uma mudança positiva no mundo – independentemente do que ele tiver feito de negativo anteriormente.

C7. A visão espiritualista da natureza humana.

Existem duas visões de mundo mutuamente exclusivas (no sentido de que, se uma pessoa adotar uma, não pode adotar a outra) sobre o ser humano: as visões materialista e espiritualista. A visão materialista considera que qualquer coisa ou processo no universo, em particular o ser humano, é um sistema puramente físico, sujeito exclusivamente ao comportamento físico da matéria ou energia físicas. Note-se que é errado considerar o ser humano como sendo uma máquina, pois todas as máquinas foram projetadas e construídas por seres humanos (eventualmente, com ajuda de outras máquinas), e nenhum ser humano foi projetado ou construído (alguns podem até ter sido bem planejados pelos pais, mas certamente não foram projetados e nem construídos...). Por isso usei a expressão de que o ser humano seria, na concepção materialista, um "sistema físico" e não uma "máquina", como se costuma dizer modernamente (a antiga sabedoria impedia as pessoas de fazerem tal afirmação errônea – a primeira manifestação escrita parece ser a J.O. de La Méttrie, que em 1748 publicou seu livro L’Homme-machine).

Por outro lado, uma visão espiritualista moderna do mundo admite, como hipótese de trabalho, que existem elementos não-físicos em qualquer ser vivo (daí ele ter vida), bem como processos não-físicos no universo. Para que essa visão seja moderna, adequada ao ser humano atual, ela não deve ser baseada em crenças ou misticismo. Uma pessoa que tem crenças adota certos pontos de vista sem questioná-los, como os dogmas. Uma pessoa mística é a que admite a existência de processos não-físicos baseando-se em um sentimento de que eles existem. Ambos não procuram compreender esses processos ou observar objetivamente sua manifestação. Não vou expor aqui as várias razões para eu ter adotado uma visão espiritualista moderna; remeto o leitor interessado ao meu artigo "Por que sou espiritualista", onde exponho detalhadamente essas razões.

Do ponto de vista materialista, a vida humana e o universo não podem fazer sentido; simplesmente existem, frutos do acaso na evolução. Em particular, é interessante notar como o neo-darwinismo, uma das manifestações do materialismo e também um de seus pilares, é baseado, por um lado, em mutações genéticas aleatórias, casuais, e por outro no determinismo da seleção natural. Ele considera que a evolução não tem objetivo, simplesmente ocorre, o que também retira totalmente qualquer sentido para a vida, em especial a vida humana.

Somente com uma visão de mundo espiritualista pode-se fazer a hipótese de que há um sentido para o universo e para a vida, e investigá-lo. Um dos sentidos para a vida humana poderia ser o desenvolvimento da individualidade superior, distinta da individualidade do corpo, das memórias, dos sentimentos, etc., que estaria presente em cada ser humano (mas não nos animais e nas plantas). É devido a ela que gêmeos univitelinos, isto é, com os mesmos genes, que foram criados juntos e estiveram nas mesmas classes, teriam interesses, ideais, profissão e vida em geral totalmente diferentes. O desenvolvimento dessa individualidade superior seria a razão para que ela esteja encarnada em um corpo físico.

Matar uma pessoa é impedir esse desenvolvimento. É óbvio que a sociedade tem que se proteger de um indivíduo que impede outros de se desenvolverem, por exemplo assassinando-os. Mas isso não significa que é necessário matar o assassino. Um confinamento – desde que seja digno – pode dar-lhe a oportunidade de reconhecer seu erro, arrepender-se e regenerar-se.

Isso nos leva a um ponto colateral fundamental: qual deveria ser a razão do confinamento de um criminoso? Se não me engano, isso está em nossas leis: o sistema prisional deve ter as finalidades de prover um confinamento, isto é, isolar socialmente o criminoso para que se impeça que a pessoa pratique outros atos criminosos enquanto ela tiver impulsos dessa natureza; deve servir de castigo, mostrando para o criminoso e o resto do mundo que vale mais a pena não cometer crimes; finalmente, deve ser correcional, isto é, provocar uma mudança na pessoa a fim de que ela deixe de ser criminosa e possa ser útil à sociedade.

Ora, condenando-se uma pessoa à morte, deixa-se de dar um castigo que sirva de exemplo para a vida futura dessa pessoa (o exemplo só valeria para os outros), impede-se que ela se conscientize plenamente do mal que fez – talvez um processo demorado –, e não se tem o efeito correcional. Tem-se falado da diminuição da maioridade penal. O que se deveria discutir é qual a melhor maneira de corrigir os desvios anti-sociais mostrados pelo menor, isto é, qual a melhor pena a ser aplicada. Nesse sentido, sou contra penas fixas, para menores ou adultos. O confinamento deveria durar, em qualquer caso, tanto quanto levasse para que a pessoa reconhecesse seu erro e mudasse de comportamento, tornando-se um ser positivamente social. É claro que não é fácil avaliar essas características, pois são psicológicas; mas isso poderia ser feito gradativamente, dando-se à pessoa a chance de mostrar que se regenerou. Acima de tudo, é preciso respeitar a dignidade humana – mesmo do pior assassino (apesar de ele não ter respeitado suas vítimas...). A propósito, do ponto de vista materialista, não faz sentido falar-se em dignidade humana, pois da matéria não pode advir dignidade. Por outro lado, animais e plantas não têm dignidade – há algo de não-físico no ser humano que não está presente nos outros dois, e que lhe confere características não existentes em plantas e animais: liberdade, auto-consciência e individualidade superior. Sem liberdade, não se pode falar em dignidade ou em responsabilidade. No entanto, da matéria não pode advir liberdade – ver o meu artigo citado "Por que sou espiritualista" para sugestões de experiências pessoais que levam qualquer pessoa a admitir que pode ser livre em seu pensamento, o que deveria indicar-lhe que a hipótese espiritualista tem fundamento, bem como considerações originais sobre como algo não-físico pode atuar sobre a matéria física.

Não há nenhuma chance de se mudar uma pessoa para melhor tratando-a indignamente. Nosso sistema prisional mostra isso claramente: as condições desumanas e indignas dos presos fazem com que as prisões sejam verdadeiras escolas de crimes, e não escolas de cidadania. Em particular, elas deveriam prover trabalho, atividades sociais (de ajuda a outros) e artísticas, para que haja a reeducação necessária. Sem trabalho, sem a pessoa sentir-se socialmente útil e necessária, não há vida digna. Por outro lado, atividades artísticas bem feitas sempre, absolutamente sempre, elevam e dignificam o ser humano. Houve um exemplo disso justamente em um sistema correcional: na antiga FEBEM em São Paulo, o "Projeto Guri", uma iniciativa de se ensinar música e formar orquestras de jovens deu resultados absolutamente extraordinários no sentido da recuperação dos jovens envolvidos.

Quem sabe muitas pessoas estão sendo a favor da pena de morte, sem perceberem que isso é conseqüência inconsciente de seu conhecimento do resultado do nosso desumano sistema prisional, isto é, de que o prisioneiro será solto invariavelmente pior do que quando entrou na prisão. Devemos corrigir a raiz do mal ou criar paliativos desumanos? Nesse sentido, claramente uma boa parte da raiz está em nossa miséria social. Acabe-se com a miséria social e a criminalidade certamente vai diminuir, e muito. Regulamente-se o uso de drogas, e estas deixarão de provocar o crime. Em nossos corruptos sistemas parlamentar, governamental, judiciário, e policial, sinto uma comichão de pensar que não há interesse financeiro em terminar com o problema das drogas, assim como não há interesse em diminuir o terrível consumo de bebidas alcoólicas, por exemplo eliminando ou mesmo restringindo a sua propaganda (principalmente pela TV, esse veículo de condicionamento de comportamento); tanto drogas psicotrópicas como bebidas alcoólicas são causas preponderantes nos crimes e acidentes resultando em mortes.

A questão da miséria social leva a um problema complicado no Brasil. Se um preso é tratado dignamente na prisão, em muitos casos, senão na maioria deles, a vida prisional seria muito melhor da que a pessoa tinha antes do confinamento – e mais segura! Isso é mais um fator para a prioridade neste país ser acabar urgentemente com a miséria social. Mas isso passa por uma educação escolar decente. Faça-se uma experiência que eu fiz pontualmente: pergunte-se a tabuada para um aluno no fim do ensino fundamental ou no ensino médio público; se o jovem souber a tabuada, peça-se-lhe para fazer uma divisão. O terrível resultado, provavelmente semelhante ao que obtive com vários jovens, mostrará a falência de nosso sistema público de ensino (ver considerações sobre isso em meu artigo "Considerações sobre o projeto ‘um laptop por criança’").

5. Resumo

Sou contra a pena de morte, principalmente por ser espiritualista. Minha visão de mundo espiritualista faz-me adotar a hipótese de trabalho de que existe uma essência não física, individual, em cada ser humano. A vida humana não é um acaso, ela existe para que essa essência desenvolva-se. Matar uma pessoa é impedir esse desenvolvimento. Não temos o conhecimento necessário e suficiente dessa individualidade superior humana para concluir que uma pessoa deveria ser eliminada e deixar de se desenvolver.

Para proteger a sociedade, um criminoso deve ser confinado enquanto não mudar sua mentalidade e sua atitude. No entanto, deve-se dar a ele a chance de efetuar em si próprio essa mudança. Para isso, é absolutamente necessário que o preso seja tratado com dignidade. Porém, enquanto houver miséria social e educacional, é difícil falar em dignidade do preso e concretizá-la.